domingo, 25 de abril de 1999

Versos em liberdade

            O breve texto foi escrito em 1979 e tem por título “La canción de los presos”. Anos depois, é parte do livro Contraseña, publicado pela Ediciones del Sol de Buenos Aires, em 1992. Nele, Eduardo Galeano fala desses poemas escritos em papel de cigarro que se esgueiraram da prisão El Penal de Libertad de Montevidéu, a principal cárcere de presos políticos da época ditatorial do Uruguai.
São versos anônimos, escritos por alguns dos muitos que foram apanhados pelo Sistema e que dão fé de ainda não terem sido plenamente alquebrados. Há o poema de amor singelo, pura simplicidade, no qual se engasta, certeiramente, a certeza da prisão que se apresenta como algo menor diante do sentimento confessado; há o que menciona, sem rodeios, a tortura; o que constata as contradições entre aqueles que torturam ou que, torturando, se apropriam da música e das canções dos artistas que pregam a liberdade, assobiando-as ou cantando-lhes as estrofes. Também, aqueles versos que falam da dignidade: do desejo de não expor ao inimigo a fraqueza das lágrimas. Ou, outros em que a solidão se mostra vencida pela capacidade de acreditar no diálogo, ainda que seja com os insetos,  pois eles, sim, podem circular, livremente, pela cela. Ainda, aqueles que testemunham, convictos, a solidariedade. A solidariedade que os fez lutar pelos demais e, então, sofrer as conseqüências de querer uma vida justa para todos. E que não esmoreceu diante das infâmias dos que delataram, dos que prenderam, dos que torturaram, muitas vezes até a morte, mas se alça para expressar uma profunda esperança ao convocar: Ânimo companheiros!/ se está o inimigo/ estamos nós! Antes de mais nada, porque aquele que faz versos, está certo de que na vida jamais se está verdadeiramente só.

A par da espontaneidade e da singeleza a fazer cada poema, a síntese da experiência de um ser humano, vivendo uma situação limite, a situação que lhe deu origem, o espaço em que veio à luz e os caminhos que percorreu para chegar, enfim, a seus destinatários, fazem dessa expressão algo de muito raro. Sobretudo, porque leva, ainda uma vez, a perceber e a reafirmar que as aproximações à Literatura Latino-americana não podem ser feitas seguindo os parâmetros do Primeiro Mundo, quando eles se limitam a estudar um texto, ignorando-lhes o contexto e limitando, assim, a sua compreensão, bem como a compreensão do espaço no qual foi engendrado.
Reler, vinte anos depois de ser publicado, esse texto de Eduardo Galeano e os poemas que ele dá a conhecer, permitem  perceber o quanto – no lirismo de que são feitos – eles possuem de beleza e de verdade. Também o quanto são testemunho do que aconteceu no Uruguai da ditadura, o quê não deve nem ser ignorado nem esquecido.

domingo, 18 de abril de 1999

Aforismos

          Em abril de 1989, foi publicado pela Banda Oriental de Montevidéu, um pequeno livro, Hombre a la orilla del mundo. Seu autor, Milton Schinca, poeta e dramaturgo, se iniciou, em 1956 na Literatura com Sancho Panza, gobernador de Barataria. Seguiram-se vários livros de poemas (Ese milagro, De la aventura, Esta hora urgente, Mundo cuestionado, Nora paz, Poemas Sex) e, em  prosa, Boulevard Sarandi;  logo, a peça de teatro Delmira y otras rupturas.
            Hombre a la orilla del mundo é um relato em forma de epistolário. Cartas sem data que se sucedem com vagas indicações de tempo, traduzido em expressões como dois dias depois, quatro dias depois, um mês depois, na semana seguinte. Do signatário dessas cartas não aparece jamais o nome e só algumas breves referências a episódios de sua vida permitem aproximar-se a uma identidade que mais  se adivinha do que se dá a conhecer nesse ex-governante, exilado de muitos anos num país inominado, regido pelo Mandatário. Embora não tenha rosto, nem história nem datas que o deixem se entrever, o autor das cartas se delineia como Prócer da Independência Uruguaia: o general Artigas.  Rápidas seqüências permitem tal identidade deduzir: o dizer-se confinado num pobre povoado onde chegou, escoltado por um oficial e vários soldados e sem nada nas mãos que lhe lembrasse a terra que deixara; ver-se como um general, um condutor de povos plantando repolhos na horta de sua casa; lembrar-se do que foi, aquele que lutou contra o espanhol, que teve o governo nas mãos. Lembranças que o levam a determinados momentos de seu passado (a morte da irmã, seu casamento), do proveito que teve na convivência de um sábio que visitou o seu país, das suas relações amorosas. Também, se indaga sobre o numero de homens que morreram porque levantou tal ou qual bandeira e como poderia se abster de condenar, ainda que passassem cem mil anos, cem mil séculos aqueles que, por gozar do Poder ou do dinheiro, traíram a causa da pátria.

          São esses assuntos de sua terra que resultaram incompreensíveis para o interlocutor que teve no passado e para quem ora escreve, sabendo que deve lhe resultar difícil entender as guerras intermináveis, tantos ódios e lutas, os enfrentamentos com os governos vizinhos e com os impérios da Europa. Espantos que, juntamente com esse viver no exílio – ouvindo sua língua num outro tom, escutando outros ditos, percebendo outros modos de se comunicar –, o fazem sentir a solidão a qual está condenado até o final de seus dias. Daí as reflexões que o passar do tempo vai ajudando a construir. Porque, ao constatar a chegada da velhice ele a vai definindo: a velhice nada mais é do que uma poda das faculdades, dos quefazeres, das recreações, dos afetos que vão ficando pelo caminho; o mais penoso e irritante da velhice é a insegurança em relação a nós mesmos; os velhos necessitam que nada ocorra no cotidiano de seus dias; a  velhice vai entendendo menos mas vai chegando com mais pureza até as coisas.

          Um refletir a conduzi-lo a constatações que se mostram como verdadeiros aforismos: o verdadeiro professor não se faz da noite para  o dia; o melhor ensinamento é mudo e se faz a partir do exemplo; o amor ainda quando não nos trouxesse mais que felicidades requereria de nós uma alerta e um cuidado da maior delicadeza; até onde somos o que somos e não o que os fatos nos mandam ser ?; há quem viva para representar que  vive. Certamente são palavras de quem já viveu, subentendendo um aprendizado que somente o passar dos anos pode concedert.

 Ao imaginar o homem que teve nas mãos, por alguns anos, grandes poderes de decisão nas margens do Prata, nos seus dias de confinamento em país estranho e distante da pátria, Milton Schinca parte de alguma passagem de sua biografia conhecida, de um ou outro dado real. Assim, o fato de ser o general Artigas um exímio cavaleiro ou de ter perdido, prematuramente a mulher ou de ter sofrido a traição de seus companheiros de luta. Parcas informações que são, no entanto, suficientes para concretizar esse perfil que a partir do momento em que Artigas perdendo-se no exílio, se torna irrecuperável para o historiador e que o ficcionista refaz, concedendo-lhe esse outro, inventado mas, perfeitamente verossímil: o de um homem que se observa, procura  se entender, busca um encontro consigo mesmo e se expressa num ato de simplicidade e de extrema coerência ao se desnudar nos humildes e pequenos momentos de seu cotidiano. E, nesse trazer à dimensão dos homens aquele que foi herói, Milton Schinca deixa-se ver como um narrador, perfeito conhecedor de seu ofício ao urdir uma trama em que o personagem que pertence à História se recria num sentir e num pensar próprio dos homens..

domingo, 11 de abril de 1999

A lição

          Angeles Mastretta nasceu  no dia 9 de outubro de 1949 na cidade de Puebla, no México. Formada em Jornalismo, com trabalhos publicados em Nexos, Excelsior, Unomasuno, La Jornada, Proceso, o seu primeiro romance, Arráncame la vida, data de 1985.Constituiu-se um êxito absoluto nas suas sucessivas edições, recebeu o Prêmio Mazatlán e foi traduzido para onze idiomas. Em 1990, foi lançado Mujeres de ojos grandes e, em 1994, Puerto libre, ambos coleções de contos. Mal de amores apareceu em 1995 e, em maio de 1998, já estava na sua décima edição. Conta a história de amor de Emilia Sauri e Daniel Cuenca. Como pano de fundo, a Revolução Mexicana e, nela, a trajetória de um e de outro se enovelando nos encontros que os unem de vez em quando.
O narrar de Mal de amores está centrado em Emilia. Seu pai é dono de uma farmácia, com cheiro de madeiras e brilhos de porcelanas, na qual não falta nada. No tempo em que perambulara pela Europa, havia juntado os principais remédios de cada lugar. Também, aprendera fórmulas para obter muitos deles e podia distinguir a utilidade de cada pó que trouxera. E aí, entre seus frascos brancos e centenas de caixinhas numeradas, cresceu Emilia, tirando o pó das estantes e lendo os livros de Medicina que encontrava sobre as mesas. Depois, foi aprendendo com o doutor, velho amigo da família, o que ele podia lhe ensinar de sua profissão. E os conhecimentos que adquiriu, sempre os usou Emilia quando as circunstâncias o exigiram. Primeiro, foi o jovem ferido pela polícia que levaram para a farmácia, ensangüentado. Ela teve as mãos precisas e os gestos certos para ajudar o doutor a salvá-lo. Depois, no povoado terroso, quente e arisco, que cheirava a cana de açúcar e era feito de casas de barro e de gente pobre, para onde fora, acompanhando Daniel, sempre a fazer a Revolução, ela ensinou a curar febres, a ferver a água, a aliviar as dores de cabeça, a costurar uma ferida, a distinguir as plantas venenosas das que podem curar. Muita gente do povoado quis consultar e ela, todas as manhãs, instalava um consultório improvisado perto da porta da cantina e examinava tantos doentes quanto apareciam. À tarde, visitava um por um dos que não podiam levantar. E, todo o dia, se desesperava pela ignorância que a impedia de curar por meio das plantas que ali perto cresciam e, por isso, cada madrugada saía a procura das folhas conhecidas. Mas as doenças eram muitas e, por vezes, ela nem lhes sabia o nome e ficava sem poder agir, sendo capaz somente de maldizer.
          E, outra vez, segue Daniel a buscar a Luta, agora para um povoado “calado e silvestre; outra vez, um espetáculo feito para fazer chorar de impotência – braços semi-arrancados, mãos sem dedos, troncos com as pernas apodrecendo, cabeças sem orelha, tripas de fora – que ela exorcisava, procurando a solução para cada sofrimento que se rendia às suas mãos. Mas, vencida sempre, porque nos seus braços morreram duas crianças cujo único mal fora a falta de água limpa; porque mandou para morrer em casa umas seis pessoas que se tivessem passado dez dias num hospital civilizado teriam se curado. Quando deixou o povoado com Daniel na sua insaciável e inatingível busca de justiça e liberdade, o trem que os levava também era cheio de doentes e feridos de guerra. Escutar suas queixas e lhes fazer recomendações para quando descessem do trem, era tudo o que ela podia oferecer. Ao chegar na cidade do México, entre uma e outra hora de amor com Daniel, sempre a partir, foi ao Hospital da Cruz Vermelha trabalhar na profissão da qual não tinha sequer o título mas que exercia com orgulho e sapiência.

            Seu caminho termina em Puebla onde começara e, aí, pode ser feliz sem Daniel, nesse hospital alternativo em que se congregavam, para curar, os médicos com diploma, os que se dedicavam à homeopatia, as autoridades indígenas e uma parteira mais apta para o transe de tirar filhos do que o mais afamado médico novaiorquino. Emilia tinha de suas, muitas certezas e não esquecera aquela,  aprendida com o doutor que lhe ensinara os primeiros passos na arte de curar, quando ainda era mocinha: que ninguém cura sem o desejo intenso e inteiro de fazê-lo, que nenhum médico pode se permitir viver longe desse desejo.

domingo, 4 de abril de 1999

A hegemonia

           O último texto que Antonio Cornejo Polar escreveu, “Mestizaje e hibridez: los riesgos de las metáforas”, foi lido no Congresso da LASA (Latin American Studies Association), realizado em Guadalajara, México, em 1997 e publicado no volume Perfil  y entraña de Antonio Cornejo Polar (Lima, 1998).

             Prestando-lhe uma homenagem  “in memoriam”, a revista Casa de las Américas (número 212, julho-setembro de 1998) publica a segunda parte desse texto sob o título “Del testamento intelectual de Antonio Cornejo Polar”. Na verdade, apenas umas poucas linhas, agrupadas em sete parágrafos, mas cuja importância reside nesse constatar que os textos latino-americanos são analisados segundo artefatos críticos sofisticados, escritos em inglês e, de acordo com os velhos modelos industriais, devolvidos ao seu espaço natural que, então, deve passar a entendê-los conforme os cânones que lhe são estranhos.       
 

              Lecionando o crítico peruano na Universidad Mayor de San Marcos em Lima e na University of California, em Berkley, Estados Unidos, pode, a partir dessa dupla experiência, observar os estudos literários, produzidos num e noutro contexto e constatar as situações que determinaram a crítica assim produzida. E assinala algumas situações que a irão definir: nos Estados Unidos, a abstração de uma produção crítica latino-americana, preterida pela bibliografia em língua inglesa, consequentemente, textos latino-americanos estudados, sobretudo, a partir de uma metodologia crítica em inglês. Na América Latina, o desconhecimento da língua inglesa por parte de um grande número de estudiosos que, então, ignoram ou apenas conhecem, com atraso, os aportes escritos nessa língua o quê os marginaliza.

            Fica estabelecida, desse modo, uma hegemonia: a da crítica em inglês. A partir dessa constatação de Antonio Cornejo Polar é fácil lembrar o que ninguém ignora: quanto a produção intelectual latino-americana continua atrelada aos centros irradiadores de cultura do hemisfério norte. Tampouco ninguém ignora o quanto as fronteiras culturais entre os países do Continente são intransponíveis. Verdadeira muralha a separar os países entre eles, a mesma que os irá levar a uma subserviência que não lhes permitirá se dar conta de que a produção do Continente deve ser considerada a partir de seus próprios pressupostos críticos e sem deixar de levar em consideração o contexto em que se originam.

          Antonio Cornejo Polar se refere, por exemplo, à maneira como as ditaduras ( a censura, a marginalização do intelectual) e o neoliberalismo (política de empobrecimento das instituições culturais públicas) destruíram as bases materiais para o desenvolvimento da crítica e, sabe-se como induziram, ainda mais, à submissão das idéias alienígenas. O resultado é a inexistência, na grande maioria dos casos, de uma posição crítica e metodológica, verdadeiramente enraizada na América Latina. O que predomina – e isto o diz Antonio Cornejo Polar – é um estranho artefato totalmente feito em inglês, precisamente no idioma da hegemonia que fala para si mesmo do marginal, subalterno, pós colonial que a assim considerada elite aceita e procura imitar sem se dar conta de seus reais significados. Deixa-se, convicta, seduzir por algo que mal ou pouco entende, sendo-lhe suficiente saber de onde provém as idéias e teorias para assumi-las com entusiasmo.

          Antonio Cornejo Polar termina as breves considerações, desejando que suas palavras não sejam tomadas como um presságio, mas como um cordial aviso do que seria o esfarrapado e pouco honroso final do hispano-americanismo.

          Tendo em vista que hoje o mundo se mostra nas mãos de um único dono e que ele se atribui o direito de tudo determinar, infelizmente, é ilusório pensar que, em se tratando da cultura, poderia ser diferente. Se uns poucos podem perceber o quê significa a hegemonia reinante e se dispor a navegar contra a maré, isso é dar testemunho de esperança. E certamente da esperança, desde sempre, o Continente se alimentou.