domingo, 9 de agosto de 1998

Os párias

           Menino de engenho, já na quinquagésima edição da José Olympio do Rio de Janeiro, foi o primeiro romance publicado por José Lins do Rego. Ele o queria, inicialmente, um livro de memórias infantis – umas memórias que fossem as de todos os meninos de engenho nordestinos – ou a biografia de seu avô, expressão de patriarca rural do Nordeste. Mas, deu-se a vitória do romancista sobre o memorialista, diz Antonio Carlos Villaça, no texto que antecede o romance, na edição de 1994. E, Menino de engenho, nos seus quarenta breves capítulos, não somente entusiasmou a crítica de seu tempo como foi considerado obra geratriz de toda uma série de romances que compõem o “ciclo da cana de açúcar”.E a história de uma infância ao redor da qual gravita a vida rural, centrada na casa grande. Assim, embora o narrador fale algo de sua vida – a morte violenta da mãe, a loucura do pai, a sua ida para o engenho, as travessuras, os primeiros estudos, as iniciações ao amor – grande parte dos capítulos registram o que acontece no dia a dia: as visitas feitas e recebidas; as chuvas, enchendo o rio; as práticas religiosas e as crendices; as andanças do senhor de engenho às suas terras; a aplicação da justiça. 

´         E o retrato desse Brasil nordestino se faz, sobretudo, pela prática dos homens. O capítulo 32 é, então, exemplar. Trata da limpeza do eito, limpeza à enxada, por turmas, de uma plantação, diz o glossário de Ivan Cavalcanti Proença. Uns oitenta homens, comandados pelo feitor, trabalhando das seis da manhã até a boca da noite. Da calçada da casa-grande viam-se no meio do canavial aquelas cabeças de chapéu de palha velho, subindo e descendo, no ritmo do manejo da enxada. O almoço era às dez horas: farinha seca com bacalhau. Comiam na marmita de flandres, lambendo os beiços como se estivessem em banquetes. Depois de quinze minutos de descanso, pegavam no pesado outra vez. E a voz do senhor de engenho, dizendo para o feitor: Que está fazendo esta gente, seu José Felismino? Oitenta pessoas e o partido no mato? Nem eito de mulher. Mas eles não se importavam com os gritos que eram os de todos os dias, fizessem eles muito ou fizessem pouco.

                        A dicotomia senhor de engenho/trabalhadores, claramente expressa nessa seqüência, está, também, presente quando o narrador fala dos cachorros. Cachorrinhos magros acompanhavam seus donos no eito mas não se arriscavam a entrar no terreiro da casa grande:   Os cachorros gordos do engenho não davam trégua aos seus infelizes irmãos de pobreza.


                        Aparece, principalmente, nos dois últimos parágrafos do capítulo, nítida, percebida nas expressões pequenos-burgueses/párias quando o narrador lembra que em tempos de emergência eles trabalhavam ombro a ombro nos canaviais. Os que algo possuíam – foreiros e  lavradores – trabalhavam de graça para fugir da indignidade do eito. Os demais, o exército de esfarrapados, recebiam cachaça nos dias de chuva e voltavam para casa para o sono miserável da cama de vara.


                        São constatações. Um testemunho desprovido de sentimentos, desprovido de um julgamento sobre o direito que se atribuía o senhor de engenho de descompor os subalternos como malfeitores, de exigir rendimento de moços e velhos na desproporcional jornada de trabalho. E a síntese dessa visão descompromissada está no texto que finaliza o capítulo, expressão acabada do pensar de uma classe: O costume de ver todo dia esta gente na sua degradação me habituava com sua desgraça. Nunca, menino, tive pena deles. Achava muito natural que vivessem dormindo em chiqueiros, comendo um nada, trabalhando como burros de carga. A minha compreensão da vida fazia-me ver nisto uma obra de Deus. Eles nasceram assim porque Deus quisera, e porque Deus quisera nós éramos brancos e mandávamos neles. Mandávamos também nos bois, nos burros, nos matos.


 

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