domingo, 30 de agosto de 1998

As sombras

           Fogo morto é construído em três partes: a primeira tem por título “O mestre José Amaro” e é ele, o seleiro, seu principal protagonista; a segunda, chama-se “O engenho de seu Lula” e tem como figura central o coronel Lula de Holanda Chacon, proprietário do engenho de Santa Fé; a terceira, “O capitão Vitorino” em que é ele o mais importante personagem. Cada uma dessas três partes é feita de muitos diálogos, cheios de vivacidade coloquial que, por vezes, obstruem o ritmo narrativo, tornam obscuro o relato ou até mesmo enfadonho. Mas, sempre, entre essa infindável sucessão de perguntas e respostas, se insere um texto narrativo. Então, o relato se agiliza, as descrições aparecem como verdadeiros quadros dinâmicos e o lirismo, se integra, enriquecedor.

           Tido como o romance de acabados perfis masculinos, como o dizem os próprios títulos dessas três partes que o compõem, Fogo morto, no entanto, desenha tipos femininos marcantes: Sinhá, Marta, Nenén e D. Amélia. Todos os quatro, entregues à perfeita submissão que os usos e a época exigiam.

           Sinhá e D. Amélia, respectivamente mulheres de Mestre José Amaro e do Capitão Lula de Holanda Chacon. Embora uma tenha se criado na riqueza e mantenha a sua posição de senhora de engenho e a outra sempre tenha sido pobre, é delas um destino que se iguala. Ambas são oprimidas e maltratadas pelo marido ainda que não ofereçam razões para isso.Sinhá – e o feixe de lenha às costas, e o cuidar da criação e a comida pronta na hora – é odiada pelo marido que para ela e a filha só tem palavras duras”, poucos agrados. Sofre os maus tratos calada , como escrava, sem direito a levantar a voz, a dar uma opinião para resolver uma coisa. A filha, Marta não era uma moça feia, não era  uma moça de fazer vergonha. Aprendera a ler, sabia escrever e bordar e costurar. Mas era triste e com mais de trinta anos nenhum rapaz que se aproximasse dela. E o pai a odiá-la por isso, porque não casara, porque não tinha nascido homem. E seu comportamento agressivo e mau em relação a ela e à mãe, provoca, igualmente nelas, um ódio convicto.

            Nenén, de cabelos loiros e olhos azuis, é a filha do senhor de engenho, adorada pelo pai. Era moça de mais de trinta anos, tão cavilosa, enterrada no quarto, lendo livros, com medo de gente”. Então, se engraçou pelo promotor que o pai achava não ser de boa família: era filho de alfaiate. E gritou e ameaçou, dizendo que preferia ver a filha morta num caixão do que vê-la casada com um tipo à-toa. Nenén se refugiou nas flores que cuidava, no meio das rosas, mudando plantas, aguando a terra, não queria saber de mais nada. O seu silêncio, a paz que se inventou não impediram que  caísse no ridículo quando o pai matou a tiros um animal parado em frente da casa, achando que era o pretendente recusado que insistia.

            E, desprezada, ignorada, D.Amélia a senhora do engenho decadente. Conforma-se com as impertinências do marido mas consciente de que tudo para ela era tristeza, humilhação, uma provação de Deus.

            Nesse mundo de homens que mandam e que decidem e querem obediência cega,  o mundo de Fogo morto, José Lins do Rego cria mulheres que são como sombras. Sombras que, no entanto, não se apagam diante dos desejos de poder e dos sentimentos de orgulho que as rodeiam, que as martirizam e que as limitam. Mostram-se inesquecíveis nessa marca não repudiada: a de saber submeter-se à infelicidade.

domingo, 23 de agosto de 1998

Os conceitos

           Bangüê (José Lins do Rego, José Olympio, 1993) é uma história  de fracassos. Do fracasso amoroso e daquele advindo da impossibilidade de administrar o engenho.

           Carlos de Melo volta para o Santa Rosa onde dominara o avô José Paulino, agora já velho, sem a autoridade e a força que lhe permitira a posse de nove engenhos, terras que para ele correr gastaria semanas.  Volta bacharel e revela-se um inútil a ler jornais na rede ou a dormitar o tempo inteiro. Somente abandona suas preguiças melancólicas com a chegada de Maria Alice. Jovem e recém casada, doente dos nervos, procura melhoras nos bons ares do engenho. Em casa dava para ficar triste num canto. E depois, sem motivo visível, mudava para uma alegria esfuziante”. Os médicos aconselharam uma temporada no campo.

            No engenho Santa Rosa ela se mostra cheia de vida e com essa vida envolve Carlos de Melo que, então, passa a  ter  olhos somente para ela. Mas, os meses passam e ela deve partir, retomando a sua situação de mulher casada. O avô morre e Carlos de Melo, transformado em rico herdeiro, toma posse do engenho para, em pouco tempo, levá-lo à ruína.

            São três momentos narrativos: a figura do velho José Paulino, os amores de Carlos de Melo com Maria Alice e a decadência do engenho. Como cenário, a paisagem e os tipos que a povoam.

            A paisagem é feita de pequenos rios, de árvores floridas, de um sol a banhar, com ternura o canavial, de orquídeas multicoloridas, trepando pelos troncos, de frutos vermelhos e amarelos, de uma caatinga verde que tomava cores de vida. E nela há sons de pássaros e de cigarras, nuvens de periquitos, colorindo o chão onde pousavam. E há perfumes: o pé de açafroa, coberto de flores, perfumando tudo; os cajueiros a florir, recendendo mais do que as cajazeiras; o jasmin-laranja, entrando janela a dentro com seu perfume de felicidade.

            Contrastando com esse esplendor, a miséria dos homens: “uma gente que não comia, que não tinha remédio, que viera da escravidão dos negros [...]”. Principalmente, uma gente medrosa que abaixa os olhos diante do patrão, que não se importa de catar no chão o dinheiro ali jogado mas que lhe é devido.

             Uma gente que, de pequena, é doente, chora, engatinha na lama, tem os bracinhos finos, as barrigas duras como pedras. Só crescem e se salvam quando Deus é servido. Transforma-se, então, nos moleques que atolados na lama fedorenta do curral, tratam do gado. Meninos magros e amarelos. Vão ser os cabras de eito, os homens pau para toda obra, desses que morrem como gente pobre, sem ninguém para ver.

            A vida boa era para os donos, os que mandavam nos outros. Os que se queixam sempre de seus cabras, uma gente ruim, preguiçosa, trapaceira, que só prestava mesmo no relho mas que os enriquecia com seu trabalho mal pago, com sua vida de fome e de miséria.

             Quando Maria Alice diz ao amante que eram explorados esses trabalhadores de seu engenho, o único que ele sabe fazer é perguntar se ela era comunista, pois achar que a família dele pagava uma ninharia, tinha apenas um significado: ela queria subverter o mundo.

              Maria Alice responde que ela era apenas humana.

domingo, 16 de agosto de 1998

O cenário

           É uma pequena estação de trem perdida no meio do mato. Somente os trens,    o das nove e o das duas da tarde lhe dam vida: o chefe da estação no seu posto, de boné com letras douradas; a mulher, vendendo café; as filhas, na janela, ostentando uma inesperada beleza e o cego, tocando sua rabeca. Perto, o chalé, uma casa construída por um superintendente da estrada de ferro para ali passar o verão. Incrustada na mata, rodeada de grandes eucaliptos que rumorejavam ao vento. Cigarras e pássaros fazem rumor que acaricia os nervos. Lá embaixo corre um rio por cima das pedras.
 
           Para ali fora Lourenço de Melo, predisposto, talvez, aos males da família – a mãe tuberculosa e o pai cardíaco – em busca de saúde.  Tinha vinte e quatro anos e medo da vida. E era a vida que explodia a seu redor no cheiro dos eucaliptos, no canto dos pássaros, na voz das cigarras, na exuberância das espécies: pau-d’arcos, canafístulas, mangueiras, sapotizeiros, eucaliptos, sapucaias nos seus tons de verdes.

           Aos poucos, Lola, como é chamado, vai se adentrando no mato, vai se interessando pelas pessoas que o rodeiam, vai esquecendo, um pouco, suas obsessões. Pela primeira vez se sentindo capaz de viver pelas próprias forças. E na vida ociosa que leva, insinuando-se a presença da mulher que o conduz a uma desconhecida vitalidade, a uma fonte de vida.
 
          Comprazendo-se em egoístas melancolias e  tristezas, deixa-se tocar pelos encantos  femininos – Margarida, muito branca, de olhos azuis e cabelos louros em cachos; Maria Paula, de tranças negras e olhos voluptuosos – e o mundo passa, para ele, a ser outro. Tem, agora, os olhos abertos para a vida, para os que lhe estão perto – as pessoas da estação – e para aqueles que percebe em seus passeios solitários ou que lhe vem bater à porta. Assim, aquela mulher na frente da casa que ele vê como um caco de vida, criando os filhos como cria os porcos, com restos. Ou essa outra, tuberculosa, um esqueleto tossindo, já no fim da vida. Ainda, a que, esfarrapada, e com os olhos roídos por uma doença esquisita, promete dar o filho pequeno, feio e doente.

            São efêmeras presenças como a dessa gente que passa na frente de seu chalé: Trabalhadores de enxada no ombro se botavam para o roçado. Viam-se de longe estes seres humanos como bichos, pobres bichos que o amor dos donos nem defendia da chuva. Os próprios animais tinham telheiros e árvores onde se recolhiam naquele tempo. E os homens lá iam de enxada, para o trabalho, como se o tempo não existisse, como se o sol e a chuva não valessem.
 
             Rápidas imagens a compor, junto com a exuberância da paisagem, o cenário onde domina Lourenço de Melo com suas inquietações doentias e seus amores. Mas, fortes o suficiente para impregnar esse romance de José Lins do Rego de uma inconfundível realidade brasileira.

      Pureza (Rio de Janeiro, José Olympio, 1994) foi publicado, pela primeira vez, em 1937.

 

domingo, 9 de agosto de 1998

Os párias

           Menino de engenho, já na quinquagésima edição da José Olympio do Rio de Janeiro, foi o primeiro romance publicado por José Lins do Rego. Ele o queria, inicialmente, um livro de memórias infantis – umas memórias que fossem as de todos os meninos de engenho nordestinos – ou a biografia de seu avô, expressão de patriarca rural do Nordeste. Mas, deu-se a vitória do romancista sobre o memorialista, diz Antonio Carlos Villaça, no texto que antecede o romance, na edição de 1994. E, Menino de engenho, nos seus quarenta breves capítulos, não somente entusiasmou a crítica de seu tempo como foi considerado obra geratriz de toda uma série de romances que compõem o “ciclo da cana de açúcar”.E a história de uma infância ao redor da qual gravita a vida rural, centrada na casa grande. Assim, embora o narrador fale algo de sua vida – a morte violenta da mãe, a loucura do pai, a sua ida para o engenho, as travessuras, os primeiros estudos, as iniciações ao amor – grande parte dos capítulos registram o que acontece no dia a dia: as visitas feitas e recebidas; as chuvas, enchendo o rio; as práticas religiosas e as crendices; as andanças do senhor de engenho às suas terras; a aplicação da justiça. 

´         E o retrato desse Brasil nordestino se faz, sobretudo, pela prática dos homens. O capítulo 32 é, então, exemplar. Trata da limpeza do eito, limpeza à enxada, por turmas, de uma plantação, diz o glossário de Ivan Cavalcanti Proença. Uns oitenta homens, comandados pelo feitor, trabalhando das seis da manhã até a boca da noite. Da calçada da casa-grande viam-se no meio do canavial aquelas cabeças de chapéu de palha velho, subindo e descendo, no ritmo do manejo da enxada. O almoço era às dez horas: farinha seca com bacalhau. Comiam na marmita de flandres, lambendo os beiços como se estivessem em banquetes. Depois de quinze minutos de descanso, pegavam no pesado outra vez. E a voz do senhor de engenho, dizendo para o feitor: Que está fazendo esta gente, seu José Felismino? Oitenta pessoas e o partido no mato? Nem eito de mulher. Mas eles não se importavam com os gritos que eram os de todos os dias, fizessem eles muito ou fizessem pouco.

                        A dicotomia senhor de engenho/trabalhadores, claramente expressa nessa seqüência, está, também, presente quando o narrador fala dos cachorros. Cachorrinhos magros acompanhavam seus donos no eito mas não se arriscavam a entrar no terreiro da casa grande:   Os cachorros gordos do engenho não davam trégua aos seus infelizes irmãos de pobreza.


                        Aparece, principalmente, nos dois últimos parágrafos do capítulo, nítida, percebida nas expressões pequenos-burgueses/párias quando o narrador lembra que em tempos de emergência eles trabalhavam ombro a ombro nos canaviais. Os que algo possuíam – foreiros e  lavradores – trabalhavam de graça para fugir da indignidade do eito. Os demais, o exército de esfarrapados, recebiam cachaça nos dias de chuva e voltavam para casa para o sono miserável da cama de vara.


                        São constatações. Um testemunho desprovido de sentimentos, desprovido de um julgamento sobre o direito que se atribuía o senhor de engenho de descompor os subalternos como malfeitores, de exigir rendimento de moços e velhos na desproporcional jornada de trabalho. E a síntese dessa visão descompromissada está no texto que finaliza o capítulo, expressão acabada do pensar de uma classe: O costume de ver todo dia esta gente na sua degradação me habituava com sua desgraça. Nunca, menino, tive pena deles. Achava muito natural que vivessem dormindo em chiqueiros, comendo um nada, trabalhando como burros de carga. A minha compreensão da vida fazia-me ver nisto uma obra de Deus. Eles nasceram assim porque Deus quisera, e porque Deus quisera nós éramos brancos e mandávamos neles. Mandávamos também nos bois, nos burros, nos matos.


 

domingo, 2 de agosto de 1998

Deleitosa brincadeira

          Em 1974, em quarta edição e Segunda, na Editora Sudamericana de Buenos Aires, foi publicado Dailan Kifki, de Maria Elena Walsh. Quase duzentas páginas de encantamento.
           A história, contada por uma voz feminina e juvenil, é uma sucessão de pacíficas aventuras. Primeiro, a chegada do elefante Dailan Kifki com a carta explicativa pendurada na orelha. Como seu dono não tinha como dar-lhe de comer, o entregava, confiando no bom coração da destinatária: que lhe desse sopinha de aveia e lhe permitisse ver desenhos animados, programas que ele adorava. Depois, o resto: o elefante empanturrado de tanto comer arroz com leite, obrigando a nova dona a chamar os bombeiros; o elefante adormecido sobre a muda de feijão recém semeado que, ao crescer, transformou-se em árvore; o elefante a voar com as asas que lhe foram feitas para descer da árvore; os trâmites para fazê-lo voltar à terra; seu retorno e os festejos que dessa sua volta advieram. Finalmente, esse final feliz, o casamento da narradora com o bombeiro.

            É um relato que provoca sorrisos. Ou pelo decantado recurso de um gesto ou expressão que se repete, ou pela rima que se instala no meio das frases chãs, ou por situações imprevistas.

            É um mundo onde reina a ingenuidade. Como se todos os adultos tivessem crescido na bondade, salvos da mediocridade áspera e desoladora. Entre todos os personagens, há como que o milagre da compreensão, acontecida sem arestas, a partir das palavras da senhorita narradora, sensibilizada por esse elefante que lhe apareceu à porta da casa.  Eo carinho predomina, surpreendente, nas relações instauradas entre ela e o bombeiro, o chefe de polícia, o prefeito da cidade, o embaixador e tantos outros chamados para ajudar a volta do elefante que voava pelos céus, mais o bombeiro.

             Na imaginação, no colorido, no pueril que conduzem o relato há algo de deleitoso, de sedutor. Mas é, sobretudo, na recusa em retratar o mundo dos adultos e em reproduzir a tradicional e maniqueísta – e o mal e o bem – moral, buscando proselitismos que Dailan Kifki se mostra uma história de ingênua magia. Perfeitamente liberta dos lugares comuns que são próprios de grande parte da Literatura Infantil e prenhe de todas as ternuras.

              A essas qualidades se acrescenta o sortilégio dos desenhos, assinados por Vilar. Traços finos, risonhos, graciosos, sempre em tons de rosa e em negro. Um todo, palavras e desenhos, feito para a alegria.