Ficou
enfim pronto o aparelho do holandês
voador, é assim e assim grande e bonito, e
parece que pode voar.
Acusado de
heresia por esculpir santos com fisionomia indígena - fazer santos que contrariam
toda fé - o índio guarani Francisco Abiaru é atirado nas masmorras do Rio
de Janeiro e, lá, espera julgamento. Como Petrus Cornelius, o holandês
calvinista. Homens importantes mandaram que o deixassem solto no pátio da
cadeia. Ele, então, trepa no beiral para chamar a atenção e obter o que deseja: uns panos, linhas, varas de taquara e um
agulhão grosso. Quer construir a sua máquina voadora.
Francisco
Abiaru convence o guarda da conveniência de lhe dar o que deseja e pouco a
pouco vai obtendo essas fazendas que o holandês armazena entre seus trapos. E o artefacto vai se fazendo.
Quando
chega a Visitação do Santo Ofício está terminado: um bicho, um desenho imprudente,
um delírio. Que seu autor entende e explica na certeza de que voará . E,
nas suas certezas, permanece alheio ao
poder da ordem que o mantém preso: poderosa
e intrincada Ordem acima de qualquer ordem, odiada e temida, que julga, prende e mata e é dirigida ninguém
sabe como e que se dedica a manter a pureza da fé, e que todos na Colônia portuguesa querem mais é destruir,
sendo ela entretanto indestrutível como o Demônio, tudo vê, tudo enxerga e que
tem Familiares (nome tão enganosamente
suave) por todos os lados cuja função é delatar suspeitos e que tem mais poder
que o Rei, e a cujo nome todos tremem de pavor e que leva o cálido nome de
Santo Ofício ou mais vulgarmente Inquisição.
Por essa ordem será interrogado. O Visitador que viera
ao Brasil para verificar o estado das almas de uma terra assim
carente de apoio espiritual o inquire. E teve que
render-se a sua loucura e curvar-se ao seu desejo: Pois que assim seja. Voarás com tua máquina. Assim aconteceu.
Indiferente ao ritual que o julga, e aos outros acusados, Petrus Cornelius pede
para armar seu artefacto e pede que o índio guarani o ajude. Juntos são
amarrados na máquina voadora e juntos correm até a proeminência da pedra e se
lançam no espaço aéreo. Partem em graciosas
evoluções em meio às nuvens.
Desta
maneira termina Breviário das terras do
Brasil: uma aventura nos tempos da Inquisição,
romance de Luiz Antonio de Assis Brasil, publicado, em 1997, pela L&PM de
Porto Alegre. Um final auspicioso nesse afastar-se de um tribunal do Santo
Ofício, sem mesmo saber da absolvição, em asas coloridas.
Começara
com o naufrágio da pequena embarcação, no rio da Prata, em que Francisco Abiaru
carregava o Cristo de madeira. Salvo pela galera Nossa Senhora da Glória, a
imagem que havia lavrado com as próprias mãos, escandaliza o frade, magro e
de estranha cabeça raspada, cingida
por uma breve coroa de cabelo, ao fixá-la nos seus olhos amendoados.
Influenciando o capitão, o decide a levar preso o índio para o Rio de Janeiro e
lá, ainda que sem ordem decretada e sim de boca o jogam numa enxovia recoberta de pedra no chão, no
teto e nas paredes.
Mas,
Francisco Abiaru não está sozinho, pois, recolhidos, também ali estão gentes de todo feitio, feiticeiros, mulheres
de má vida, ladrões, blasfemadores, sodomitas, inventores de máquina, padres
amancebados que dizem que o comércio carnal não é pecado, judeus ainda não conversos, muçulmanos que estiram seus
tapetes ao solo e oram a Maomé, negros que não abandonam seus deuses da África,
hereges de Calvino, João Huss e Lutero e adivinhadores do futuro.
Muitos
deles são passíveis, como ele, de comparecer ao Tribunal da Inquisição por
verdadeiros ou por falsos crimes. Mas o Visitador chegara brando. No morro da
Gávea, onde instalou a sessão final da Mesa do Santo Ofício com a pompa devida
– e grande mesa, candelabro, toalha de veludo, cadeiras de braço e altos
espaldares, jarros e bacias – absolveu a todos com um grande sinal da cruz.
No dia
claro, na grande pedra plana como um piso
de sala, sobranceira à cidade e à baía refulgente
de azuis belíssimos, prevalecendo o perdão, para seu projeto louco voou
Petrus Cornelius e levou o índio guarani.
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