domingo, 5 de julho de 1998

A ilusão


                                                                       Ficou enfim pronto o aparelho do holandês
                                                                    voador, é assim e assim grande e bonito, e
                                                                    parece que pode voar.
 
 
          Acusado de heresia por esculpir santos com fisionomia indígena - fazer santos que contrariam toda fé - o índio guarani Francisco Abiaru é atirado nas masmorras do Rio de Janeiro e, lá, espera julgamento. Como Petrus Cornelius, o holandês calvinista. Homens importantes mandaram que o deixassem solto no pátio da cadeia. Ele, então, trepa no beiral para chamar a  atenção e obter o que deseja: uns panos, linhas, varas de taquara e um agulhão grosso. Quer construir a sua máquina voadora.

          Francisco Abiaru convence o guarda da conveniência de lhe dar o que deseja e pouco a pouco vai obtendo essas fazendas que o holandês armazena entre seus trapos. E o artefacto vai se fazendo.

          Quando chega a Visitação do Santo Ofício está terminado: um bicho, um desenho imprudente, um delírio. Que seu autor entende e explica na certeza de que voará . E, nas suas  certezas, permanece alheio ao poder da ordem que o mantém preso: poderosa e intrincada Ordem acima de qualquer ordem, odiada e temida, que  julga, prende e mata e é dirigida ninguém sabe como e que se dedica a manter a pureza da fé, e que todos na  Colônia portuguesa querem mais é destruir, sendo ela entretanto indestrutível como o Demônio, tudo vê, tudo enxerga e que tem  Familiares (nome tão enganosamente suave) por todos os lados cuja função é delatar suspeitos e que tem mais poder que o Rei, e a cujo nome todos tremem de pavor e que leva o cálido nome de Santo Ofício ou mais vulgarmente Inquisição.


          Por essa  ordem será interrogado. O Visitador que viera ao Brasil para verificar o estado das almas de uma terra assim carente  de apoio  espiritual o inquire. E teve que render-se a sua loucura e curvar-se ao seu desejo: Pois que assim seja. Voarás com tua máquina. Assim aconteceu. Indiferente ao ritual que o julga, e aos outros acusados, Petrus Cornelius pede para armar seu artefacto e pede que o índio guarani o ajude. Juntos são amarrados na máquina voadora e juntos correm até a proeminência da pedra e se lançam no espaço aéreo. Partem em graciosas evoluções em meio às nuvens.

            Desta maneira termina Breviário das terras do Brasil: uma aventura nos tempos da Inquisição, romance de Luiz Antonio de Assis Brasil, publicado, em 1997, pela L&PM de Porto Alegre. Um final auspicioso nesse afastar-se de um tribunal do Santo Ofício, sem mesmo saber da absolvição, em asas coloridas.

            Começara com o naufrágio da pequena embarcação, no rio da Prata, em que Francisco Abiaru carregava o Cristo de madeira. Salvo pela galera Nossa Senhora da Glória, a imagem que havia lavrado com as próprias mãos, escandaliza o frade,  magro e de estranha cabeça raspada, cingida por uma breve coroa de cabelo, ao fixá-la nos seus olhos amendoados. Influenciando o capitão, o decide a levar preso o índio para o Rio de Janeiro e lá, ainda que sem ordem decretada e sim de boca o jogam numa enxovia recoberta de pedra no chão, no teto e nas paredes.

            Mas, Francisco Abiaru não está sozinho, pois, recolhidos, também ali estão gentes de todo feitio, feiticeiros, mulheres de má vida, ladrões, blasfemadores, sodomitas, inventores de máquina, padres amancebados que dizem que o comércio carnal não é pecado, judeus ainda  não conversos, muçulmanos que estiram seus tapetes ao solo e oram a Maomé, negros que não abandonam seus deuses da África, hereges de Calvino, João Huss e Lutero e adivinhadores do futuro.

            Muitos deles são passíveis, como ele, de comparecer ao Tribunal da Inquisição por verdadeiros ou por falsos crimes. Mas o Visitador chegara brando. No morro da Gávea, onde instalou a sessão final da Mesa do Santo Ofício com a pompa devida – e grande mesa, candelabro, toalha de veludo, cadeiras de braço e altos espaldares, jarros e bacias – absolveu a todos com um grande sinal da cruz.

            No dia claro, na grande pedra plana como um piso de sala, sobranceira à cidade e à baía  refulgente de azuis belíssimos, prevalecendo o perdão, para seu projeto louco voou Petrus Cornelius e levou o índio guarani.

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