domingo, 12 de julho de 1998

Retratos da pobreza

       Água estagnada, lixo, o canteiro de alvaces amarelas,
    a sombra da mangueira. Por cima do muro baixo ao fundo,
    vem-se pipas,montes de cisco e cacos de vidro,um homem
    triste que enche dornas sob um telheiro, uma mulher magra
.
    Gracicliano Ramos.
       
Graciliano Ramos tinha quarenta e quatro anos e fora preso por suas opiniões políticas quando, em 1936, aparece Angústia. É o terceiro de seus livros publicados, um romance, verdadeiramente, denso e cruel que Antônio Cândido qualifica de tumultuosa exuberância. Como Caetés e São Bernardo, é escrito na primeira pessoa: um longo monólogo de Luiz da Silva, contando de seu viver rasteiro, miserável, solitário, tristonho, nessa Maceió de tons sombrios e deprimentes.

            Ele vive numa pobre casa de aluguel, inconveniente, cheia de barulhos, parece mal assombrada. De vez em quando, o madeirame, eivado de bichos, estala. E pululam os ratos pelo chão e pelos armários. E pululam as pulgas, e as cadeiras são ordinárias, não há quadros nem tapetes.

            Funcionário público, homem de ocupação marcado pelo regulamento, tem os olhos baços, o nariz grosso, um sorriso besta, é mal vestido e mal calçado. Rabiscando artigos de jornal, Luiz da Silva possui uma visão de mundo que vai pouco além do quintal de sua casa e se fecha num círculo de relações, no qual não cabem muitos: a criada Vitória; Ivo, o eventual conviva; Moisés, o judeu da prestação e logo os vizinhos e Julião Tavares, que impõe sua presença, e os tipos que vislumbra no café onde vai para se distrair.

            Em determinado momento de seu monólogo, diz onde mora: Rua do Macena, perto da usina elétrica. E acrescenta: a casa onde moramos não tem importância grande demais. Para a sua história o que vale é o quintal. Pois, ali, é que viu Marina pela primeira vez. Ali, falou com ela e lhe fez carinhos. Mas, também, é dali que seu olhar irá fixar, quantas vezes, os monturos, a água estagnada, o monte de lixo, as florzinhas desbotadas, as roseiras maltratadas, os montes de cisco, os cacos de vidro, o canteiro de alfaces amarelas, a mulher a lavar garrafas, o homem a encher as dornas.

 Referências que aparecem e tornam a aparecer num repetir-se que não deixa esquecer a intenção de documentar essa espécie de submundo -t tudo tão pobre e sujo e feio e triste - em que se movimenta Luiz da Silva.

            Porque, se a narrativa se faz de um fugaz romance, de lembranças do passado, da mediocridade de um melancólico viver cotidiano e de um crime, aparentemente passional, as notações sobre uma realidade degradada estão presentes com uma força que não permite ignorar as incongruências sociais. Embora se trate de um romance em que, mais do que indagar-se sobre si mesmo, quer dizer das relações com o outro.

            Tecnicamente, diz Antônio Cândido, é seu livro mais complexo. Sem dúvida, nele se mostra Graciliano Ramos, senhor absoluto de seus recursos narrativos e esse entrelaçamento, tão solidamente burilado entre o mostrar as agruras da alma e o perceber a vida penosa dos marginalizados, se constitui um todo em que emerge uma adequação perfeita.

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