domingo, 24 de maio de 1998

Um romance redescoberto


          A Mercado Aberto de Porto Alegre acaba de publicar História de um louco amor de  Horacio Quiroga . O romance  foi publicado no ano de 1908, em Buenos Aires. Como o titulo o indica é a história de um amor e de um amor que, no original (Historia de un amor turbio ) o adjetivo qualifica de turvo, conturbado, confuso e não louco como quer o tradutor. Rohán, o personagem masculino corteja Mercedes, provocando o amor de Eglé, então menina de oito anos.  Uma longa ausência interrompe esses afetos e, oito anos depois, irá cortejar Eglé embora continue  no jogo de sedução, do qual não estão ausentes os beijos com Mercedes. O romance com Eglé fracassa e, novamente, ele se afasta. Outros anos se passam, agora dez e, numa visita que faz às irmãs, comprova que se tonou impossível reviver o amor que havia sentido.

          Na verdade, mais do que uma história de amor talvez fosse preferível dizer que se trata de um esboçar das relações que Rohán institui com o amor.  Relações que se apresentam, sempre, equívocas.

          Não há um só diálogo em que as almas se mostrem transparentes. As palavras são sempre dúbias e estabelecem o ponto de vista narrativo em que o leitor permanece à margem do desejo, dos sentimentos, do pensar do personagem.

          Primeiro, Rohán se insinua para Mercedes e nas freqüentes visitas surgem momentos que se aproximam de uma declaração de amor.  No entanto, dela,  ambos como que fazem questão de fugir. Depois, a beleza de Eglé, adolescente, o atrai e o leva a  uma aproximação que será todo um itinerário de percalços amorosos: palavras caladas, outras mal interpretadas ou dissimulando sentimentos ou trapaceando para escondê-los. São gestos apenas percebidos – pálpebras que estremecem, um olhar que se perde, um movimento impaciente – insinuando emoções.

          Pode acontecer que Rohán acredite amar Mercedes para , imediatamente, sentir que seu amor é por Eglé. Mas, esse amor por ela é cheio de dúvidas e inseguranças e preconceitos que se mesclam a sentimentos de impaciência, aborrecimento, gratidão, pena, ciúmes e ódio e que irá se deteriorar até um rompimento inesperado e definitivo.

          Constituído de pequenos momentos, de rápidas cenas amorosas e, sobretudo, dos estados de alma de Rohán, Historia de un amor turbio é, principalmente, o belo e profundo estudo de um perfil masculino.

          E isto talvez não tenha sido entendido pelos seus contemporâneos. A crítica latino-americana da época houve por bem afirmar que Horacio Quiroga foi um mau romancista e tanto Historia de un amor turbio como Pasado amor (1926) foram relegados diante das qualidades atribuídas a seus contos.
           
            No entanto, já em 1968, Emir Rodriguez Monegal no Prólogo ao romance, edição do Ministério da Cultura do Uruguai, tenta uma reconsideração de seu juízo crítico que baseia em aproximações com aspectos da biografia de Horacio Quiroga. Embora sem ter tido seguidores, seu estudo significou um breve alerta porque uma análise mais cuidadosa dessas duas obras evidencia-lhes  atributos que foram ignorados por aqueles que sobre elas opinaram apressada ou inadequadamente.

              Agora, aos noventa anos de publicada,  Historia de un amor turbio, ao ser traduzida para o português, atravessou fronteiras. Vista por outros olhos e numa outra época receberá apreciações que irão instituir uma mudança no seu destino. Certamente, não  mais se apresentará como o de uma obra menor.

                       

domingo, 17 de maio de 1998

Cantar Montevideu

          É um repassar de textos.  Desde os primeiros, quando Montevidéu não passava de um amontoado de casas até aqueles escritos nestes últimos anos: Montevideo, la malbienquerida de Ana Ribeiro que a Academia Nacional do Uruguai publicou em 1997.

          São cento e oitenta e seis páginas nas quais Montevidéu foi narrada, descrita, interpretada, discutida por viajantes, cronistas, escritores, por vozes anônimas ou coletivas.  Há quem note a sua paisagem; há quem note a sua gente; há quem note os seus costumes. E ela vai se desenhando no lento passar do tempo, vai se mostrando, transformada.

          Cidade cobiçada na Colônia, defende-se dos cercos. No século XIX, luta pela independência. Mais tarde, massacrada por outras opressões, nada pode fazer a não ser se submeter.  Depois, reagir, se libertar.

          Sob a rubrica “Ciudad posmoderna”, a cidade da maioria calada quando as palavras são, sobretudo, retalhos, flashes entrecortados, mistura de lembranças e cartas velhas, vozes e figuras de rádio e televisão e muito silêncio fraturando a memória. Porque a Democracia ao cair abatida pelo golpe militar levou os escritores ou a se submeterem à censura e a se auto-censurarem ou a partirem  para o exílio. Então, diz Antonio  Muñoz Molina, Montevidéu se converteu assim numa cidade desejada ou recusada, reconstruída no exílio, povoada primeiro  de ausências e logo de regresso. São os poemas de Mario Benedetti, são os textos de  La canción de nosotros  de Eduardo Galeano.

           Foram doze anos de silêncio até que as vozes  puderam, outra vez, irromper. E, embora, para os escritores, o início de uma reconquista da qual não esteve ausente a melancolia de um reencontro, por vezes, desiludido, Montevidéu foi, outra vez, mensurada, diagnosticada, cantada, resgatada.

           Suas distintas faces se sucedem desenhadas pelas emoções dos que deixaram os testemunhos. Hábil e perspicaz, Ana Ribeiro os colige e seu livro se esmera em tornar possível a trajetória de uma cidade que nesse descobrir-se deixa ver algo que é comum a todas as outras  e, também, a nenhuma.

            Parte do Continente – os textos assim o mostram – Montevidéu é uma cidade que tem a marca do incompleto e do inconfundível.

domingo, 10 de maio de 1998

A Inquisição nos trópicos

           Francisco Abiaru, náufrago de uma pirágua, é salvo das  águas do Rio da  Prata por um navio português. Içado por uma corda, agarrado ao Cristo de madeira que esculpira nas Missões é, semi-desfalecido, largado no tombadilho do navio.

          Aí tem início o caminho de seus dias futuros. Por ser índio missioneiro, por ter o seu Cristo os olhos amendoados é preso e, assim, segue para o Rio de Janeiro onde nos cárceres da Inquisição deverá responder por heresia.

          É o que irá contar Luiz Antonio de Assis Brasil no seu Breviário das terras do Brasil: uma aventura nos tempos da Inquisição, publicado pela L& PM de Porto Alegre, no fim do ano passado.
          O drama de Francisco Abiaru na prisão, se entrelaça com o do  Padre Vasco Antonio da Costa, da Rainha Hécuba, do Mestre Domingos, do holandês voador, com o do Vigário Geral. Todos eles se enleando nas tramas que leis ditadas por vontades esdrúxulas instituíam nesse século XVII ainda sob a Jurisdição da Inquisição. Sobre tudo, o medo reina entre eles e cada um a seu modo ou a ele se submete ou busca uma salvação para fugir das ordens que atravessaram o Atlântico para se instalar no Brasil-colônia.

          No romance de Assis Brasil, elas se mostram como que menos cruéis, como que menos severas na convivência com as cores e com as luzes. A figura do índio guarani, os tons exuberantes e os perfumes da natureza tropical diluem os horrores da prisão e dos rituais  que aparecem como se mais do que ditos fossem insinuados.  Os próprios inquisidores se suavizam, as penas se reduzem e ao holandês voador, como ao índio é oferecida a salvação. Eles se lançam  ao espaço numa nave artesanal de fazendas coloridas que se afasta dos seus juízes em graciosas evoluções.

          Nesse dia, que seria o dos castigos, a baía da Guanabara refulgia de águas belíssimas. A vista alcançando a imensidão do mar e a grandeza do céu, dissolvendo-se toda a paisagem numa largueza onde se desconhecem os limites entre a terra, a água e o ar.

          A ficção permitiu o belo e o alentador de uma nave - algo prenhe de loucas esperanças – a voar para o seu destino. Assim finaliza  Breviário das terras do Brasil; uma aventura nos tempos da  Inquisição. Para trás, no silêncio dos Arquivos, ainda por se conhecer, os turvos, os funestos, os sombrios meandros da Inquisição no Brasil.

domingo, 3 de maio de 1998

O dizer do mestre

           Acaba de morrer no dia 20 deste mês, em Coyoacan, o mexicano Octavio Paz. Detentor dos mais importantes prêmios literários, inclusive o Nobel de 1990, é autor de “Piedra del sol”, considerado um dos poemas chaves da lírica latino-americana atual. Publicou La libertad bajo palabra, Salamandra, Ladera triste, Topoemas, Discos visuales, livros de poemas aos quais se acrescenta uma imensa e profunda obra ensaística o que o torna um autor incomum no Continente.

            E, no Continente, foi uma figura de intelectual de raro e abrangente valor cuja atitude crítica, contida na sua poesia e nos seus ensaios, se alimenta de uma ímpar pluralidade de experiências: escritos aos quatorze anos, viagens, aulas em universidades norte-americanas e européias, criação e direção de revistas, traduções, o levaram a ser um  escritor definido por Carlos Fuentes como peregrino das civilizações. Octavio Paz volta-se para autores da França, Inglaterra, Estados Unidos, Itália, Japão, Índia, Portugal sem se afastar daqueles latino-americanos e dos conflitos em que se submerge o seu Continente. Como exemplo disso, o ensaio “Conquista e colonia”, publicado em 1971, pela Alianza  Editorial de Madrid em Los signos en rotación y otros ensayos. Nele, busca a explicação para essa espécie de mistério que foi o aniquilamento dos povos primitivos do México pela dominação espanhola.
             
              Analisa os antecedentes – esse Estado teocrático e militar, impregnado de religião que existia antes da chegada dos espanhóis, essa rivalidade pulsando entre os diferentes povos pré-colombianos, essa atração de Montezuma que o leva a receber Hernán Cortéz em vez de repudiá-lo – e  refaz o caminho de dúvida e desamparo em que tombaram os ameríndios, o caminho de contradições que percorriam os espanhóis, presos, ainda, entre o Medievo e o Renascimento. E, chega a uma síntese singular ao afirmar que, seja a partir da perspectiva indígena,  seja a partir da perspectiva espanhola, a Conquista se constituiu a expressão de uma vontade unitária. Daí resulta uma clara apologia dos ditames ibéricos principalmente quando diz que o espanhol não negou um espaço na sociedade ao indígena batizado, o que não ocorreu com os anglo-saxões na América do Norte ainda que reconheça que eles  jamais deixaram de se basear numa ordem imposta: ou social ou econômica ou jurídica ou religiosa. E ninguém ignora quanto a tais ditames  foram os indígenas submetidos e submetidos a ferro e a fogo, levados à destruição. Verdades que o brilhante e belo texto de Octavio Paz, ainda que colmado de argumentos e razões, não consegue fazer esquecer e fazer aceitar como vontade unitária da conquista o que foi, antes de mais nada, injustiça, crueldade e despotismo.