domingo, 26 de abril de 1998

O enterro

           São dezoito contos e um mais bonito, mais perfeito que o outro. “Don Brón” é um dele  Don Brón é o latifundiário que, da imensidão de suas terras e das parcas e pobres casas do povoado, é senhor. Nesse conto é de sua morte que se trata.

          Ele morreu num domingo de manhã. Ou pelos anos, ou pelos remorsos. Dúvida não elucidada mas que delineia o personagem: velho e mau. Delineado, também, pelo que ocorre, então,no mundo em que vivia: o padre, pondo papel crepom nos santos da igreja em sinal de luto; os milicos, dando ordens à multidão disposta para o enterro; a arrogância da família ao mandar que todos se retirassem; a vaidade, ordenando que o defunto fosse embalsamado e fotografado.

          Completando o quadro, a voz do narrador – compenetrada, séria, ingênua – vindo de alguém que, de repente, diz nós, numa informação que o situa ao lado dos que observam o drama mas dele não fazem parte. Um drama que se apresenta em três tempos: primeiro, o velório com os recém chegados da capital, a viúva, os filhos, as seis velas, um defunto magrela e branco, de uniforme e medalhas. É quando os filhos interrompem o ritual de choros e visitas para trazer da Europa quem o embalsamasse. Depois de um mês, tudo recomeça: o desfile dos peões, prestando homenagem, os pêsames. É o segundo tempo, antecedendo o terceiro em que Don Brón vai ficando cada vez menor, aos poucos, até virar uma penugem no ar.

          Nesses três tempos, se acrescentando o fantástico ao real, a transformação do embalsamado em uma quase ilusória penugem. O inegável mundo dos homens, dividido entre os humildes e os ricos e prepotentes.
          
           No todo, a troça. Desde a definição do ritual do velório, hesitante, entre duas crenças, a persuasão dos milicos, aconselhando respeito por não se tratar de uma festa, a religiosidade estapafúrdia das velhas beatas, a venda de boinas e chapéus na porteira da fazenda e, finalmente, a “tragédia” com o defunto encolhendo. Troça que se intensifica com o tom. O narrado parece se sustentar na verossimilhança, como se fosse natural esse transformar-se um defunto em penugem.
             Na verdade, muitas coisas acontecem em Cuatrocasas, pequena cidade sumida entre dois latifúndios e pagando a eles um preço que os mandos e desmandos estipulam.

domingo, 19 de abril de 1998

História antiga

          No dia 30 de abril de 1982, na hora da sesta, um contingente, fortemente armado, irrompeu na casa e sem explicações ou considerações, embarcou Augusto Roa Bastos, sua companheira grávida e o filho pequeno, numa caminhonete e os levou para a fronteira. Eles eram, assim, expulsos do Paraguai pela vontade escura de seu déspota de então.

          Haviam chegado ao país, vindos da França onde viviam, no mês de março, inclusive com a vontade de registrar o menino no Registro Civil paraguaio. Foram recebidos com alegria e o escritor requisitado, convidado, entrevistado, festejado pelos seus conterrâneos. Mas, no Registro Civil lhe disseram que não podiam registrar o filho de um apátrida. E, apátrida, sem documentos, foi, por mais de um ano, Augusto Roa Bastos. Porque seu próprio país lhe negava os documentos a que tinha direito até que, em 1983, a Espanha lhe concede nacionalidade espanhola. Num artigo, publicado no El País, “Nacimiento de un ciudadano”, ele fala da sensação de nascer como cidadão livre num país livre. Tinha sessenta e seis anos dos quais trinta e seis vivendo no exílio. Primeiro, em Buenos Aires onde se refugiou para não ser preso no seu país e de onde teve que partir quando se iniciou, na Argentina, a guerra suja, para não se candidatar, como disse, a ser um desaparecido. Foi para a Europa que não apenas lhe ofereceu condições de trabalho como a cidadania, negada no país em que nascera.

          No entanto, é no seu país que desejaria Augusto Roa Bastos finalizar os seus dias, como diz a Ruben Bareiro Saguier, na entrevista  que deu origem ao livro Augusto Roa Bastos (Montevidéu, Trilce, 1989), trabalhando como professor primário na pequena escola de seu povoado.
           Talvez, nesse momento, o seu desejo fosse uma utopia porque retornar ao Paraguai lhe estava proibido mas, por outro lado, o país sempre estivera presente para ele, quando  escreveu El trueno entre las hojas, num sótão de Buenos  Aires ou as demais obras, no lento caminho do exílio que foi percorrendo. Presente, sempre, essa terra vermelha que viu desaparecer do avião que o afastava de Assunção, paisagem do país da profecia e do mistério que lhe ficou gravada. Tanto, que seu primeiro livro de contos nasce sob a égide de uma lenda indígena: O trovão cai e fica entre as folhas. Os animais comem as folhas e ficam violentos. Os homens comem os animais e ficam violentos. A terra come os homens e começa a rugir como o trovão. Espécie de síntese do que serão seus relatos: a natureza a devorar seus filhos, os próprios homens a se destruírem numa sociedade primitiva e bárbara.

          Compromete-se Augusto Roa Bastos com essa realidade, a de seu país, jogando-se, assim, numa criação, perfeitamente, revolucionária. E  os que se crêem donos do país não o perdoam e, então, qualquer pretexto é válido para justificar uma perseguição.

            Em 1982, foi acusado de ter viajado a Cuba duas vezes, o que não era verdade; foi acusado de tentar influenciar a juventude paraguaia na direção do comunismo o que tampouco era verdade, porque Augusto Roa Bastos jamais se prendeu a dogmas, a partidos. O compromisso que assumiu foi com o homem  que, no seu país, é, sobretudo, um injustiçado. E por ele e por suas verdades, é que escreve.

             Então, os sombrios e escusos donos do Poder o expulsam de sua terra. Todavia, ele não a esquece e, com suas mágicas palavras, a recria e nesse seu trabalho lhe concede glórias.

             Mas, os esbirros do Continente, acreditando-se os seus eternos donos, se permitem dessas glórias prescindir.



domingo, 12 de abril de 1998

Horacio Quiroga: o escritor das duas margens

           Em 1995, a Academia de Letras e os Diretores Associados publicaram, em Montevidéu, Horacio Quiroga por uruguayos, com seleção, prólogo e notas de Leonardo Garet: mais de quatrocentas páginas, contendo estudos sobre a vida e a obra daquele que é considerado um dos melhores contistas da América hispânica. Uma antologia imprescindível. Não apenas pelo excelente nível de alguns trabalhos, mas pelo fato de que esses textos jornalísticos, esses estudos, homenagens e prólogos, essas aproximações críticas seriam de difícil – por vezes quase de impossível – acesso, não tivessem sido reunidos por Leonardo Garet.

          São trabalhos publicados desde 1930 até 1994. Das décadas de 60, 70, 80 são a maior parte deles (muitos de 1887, cinqüentenário de morte de Horacio Quiroga) e alguns das décadas de 40, 50, 90. Os mais antigos são de 1930, data em que a maior parte da obra de Horacio Quiroga já havia sido publicada: “Horacio Quiroga narrador de cuentos” e “El consistorio del gay saber”.

          O primeiro foi escrito por Carlos María Princivalle. Comenta Arrecifes de coral, publicado em Montevidéu em 1901 e El crímen del otro , de 1904, Historia de un amor turbio  de 1908 e Cuentos de amor, de locura y de muerte, de 1917, publicados em Buenos Aires. Não concede valor ao livro de versos, considera El crímen del outro um livro mosaico, agrupando contos dos mais variados estilos, demonstrando que literariamente  Horacio Quiroga se encontrou, pois o conto será a sua linguagem. Ignora Los perseguidos, publicado em 1905 e, sobre Historia de un amor turbio diz tratar-se de  um ensaio de romance, um conto longo demais. Então, opina sobre Cuentos de amor, de locura y de muerte. Refere-se à temática – o patológico, o estranho, o autobiográfico, a natureza – e à obsessão de Horacio Quiroga pela profundidade e pela sombra. Conclui que os fortes e saudáveis ares da mata lhe deram a plena saúde artística, demonstrando não ignorar que o escritor já vivia retirado nas selvas de Misiones.

          Tratam-se de assertivas pertinentes e cordiais. Estranhas somente por ignorarem a quase dezena de obras de Horacio Quiroga, publicadas na Argentina até essa data. O mesmo irá acontecer no outro trabalho desse mesmo ano.

          Alberto Zum Felde, no seu livro Proceso intelectual del Uruguay, se refere ao “Consistorio del gay saber”(cenáculo que congregava por volta de 1901, jovens oficiantes das novas escolas literárias) onde pontificava Horacio Quiroga. De seu primeiro livro, Arrecifes de coral, diz que é funambulesco e extravagante e que a crítica o recebeu pouco menos que a pedrada. Mas, diz também, que nos poemas do livro fulguram relâmpagos e chispas de um talento original e profundo que irá revelar o melhor contista platense. O termo platense significa, no texto, as duas margens do Prata, as argentinas e as uruguaias. Dos contos  e dos romances de Horacio Quiroga, nada irá comentar. Mais adiante, o crítico se referirá ao fato de que Horacio Quiroga, radicado na Argentina e vinculado a seu ambiente literário de tal forma que nas crônicas e críticas é dado como argentino – e tendo ele aceitado tal cidadania intelectual – sua obra e sua personalidade não pertencem já à história de nossas letras.

          Sem dúvida, coerente com as suas omissões e com as de Carlos María Princivalle, eis a síntese de todo um sentimento em relação a Horacio Quiroga que, por algum tempo, o irá manter esquecido ou ignorado dos uruguaios. Daí, a valiosa contribuição de Leonardo Garet, demonstrando que houve um interesse por parte de seus compatriotas, que talvez tenha sido discreto, mas que é extremamente valioso conhecer.

            No entanto, se Horacio Quiroga viveu grande parte da vida na Argentina onde produziu, praticamente, toda a sua obra, com certeza é lá onde devem abundar juízos críticos sobre ela. Assim, quem sabe fosse oportuno pensar num “Horacio Quiroga por argentinos” para mensurar, também, a presença do escritor no país que ele – não se trata , agora, de discutir as razões – escolheu para viver e onde foi acolhido. Um acréscimo que seria sem dúvida bem-vindo. Evidentemente, supriria prejudiciais lacunas, possibilitando a aproximação mais ampla e profunda de uma obra que foi sendo reconhecida ao longo do tempo e hoje, nas duas margens do Prata, continua a despertar o interesse que seu inegável valor faz merecedor.

domingo, 5 de abril de 1998

Dois esboços

          Em 1947 é editado, pela Sudamericana de Buenos Aires, um volume chamado Nadie encendia las lámparas, formado pelos melhores contos escritos, até então, por Felisberto Hernández. Diz, na biografia que escreveu sobre ele, Norah Giraldi Dei Cas, que o passar dos anos fez saber que foi um livro lido com avidez por Gabriel García Márquez e seu grupo de Barranquilla, por Julio Cortázar, por Juan Rulfo.

           No ano anterior, o escritor uruguaio havia recebido uma bolsa para estudar em Paris. Em outubro, no “ Formose”, viaja para a Europa e, no dia 8 desse mês, o navio aporta no Rio de Janeiro onde faz uma escala. Chegou à noite e dois dias depois, Felisberto Hernández escreve algumas linhas que fazem parte do Diario de un sinvergüenza y últimas invenciones, publicado pela Arca de Montevideu, em 1974.

            Fala primeiro das luzes vislumbradas, filas bem alinhadas e, também de outras, semeadas caprichosamente, das formas escuras dos morros, como grandes lobos de mar ou como animais antidiluvianos, deitados na baía e meio cobertos pelas águas”. No dia seguinte, um amanhecer cinzento que fazia com que a paisagem parecesse suja, percebe arranha-céus e, entre eles, os morros com ruas de terra e casas velhas; noutros morros, as casas estavam amontoadas como pessoas pobres com cores desbotadas. Na beira do cais, vê muita gente que generaliza – são pequenos e escuros – o que não o impede de observar detalhes: chapéu de palha cor de rosa de um, boné preto de jóquei de outro. Quando começa o chuvisqueiro, se fixa nos guarda-chuvas semelhantes, no seu entender, a flores negras, artificiais e sujas.
          Realmente sujo, o bonde que tomou ao desembarcar e do qual lhe chamou a atenção a forma como eram cobradas as passagens: uma espécie de relógio, colocado diante dos passageiros e que marcava o número daquelas que iam sendo pagas.  Para cada uma, um golpe de sineta que não soava da mesma forma quando era solicitada uma parada.                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                         Da Cidade Maravilhosa, então, somente ficaram registrados esses poucos traços da paisagem, essa curiosa maneira de cobrar o bonde e esses tipos humanos com os quais teve contato: aquele que lhe conferiu o passaporte ( um brasileiro pequeno, nervoso, negrusco e enrugado)  e esse outro que lhe vendeu e aos seus acompanhantes, a passagem no bonde (pequeno, negro, de cara desfeita). Impressões do dia 10 de outubro e que irão se acrescentar àquelas que escreveu na manhã anterior, numa carta em que diz estar na baía do Rio de  Janeiro, de onde, entusiasmado, afirma que o “espetáculo é  o único verdadeiramente fantástico no mundo. Lastima que os destinatários da carta não possam ver o que nenhuma fotografia é capaz de reproduzir: as montanhas apareciam como imensos fantasmas, mas é tal a variedade nas surpresas, nas dimensões, nos espaços iluminados em formas tão inesperadas que se está o tempo inteiro com a pele eriçada.

                        Na verdade, como diz Norah Giraldi de Dei Cas, as cartas a sua mãe deveriam, também, fazer parte desse diário de viagem que Felisberto Hernández pretendia elaborar e que, em relação ao Brasil, se constituiu apenas  desses pequenos textos. Textos que mostram o escritor em dois momentos: um, em que observa e se atém ao que vê e, o quê vê,  não o entusiasma. É o que irá escrever nas suas notas de viagem; o outro, o da emoção, quando se deixa impressionar pela paisagem do Rio de Janeiro a ponto de sentir a pele eriçada e disso faz confidência, em carta, à família.

                        É um efêmero olhar cambiante que deixará  entrever  como que duas cidades: uma acinzentada e a outra, radiosa. Sem dúvida, um breve testemunho de uma breve experiência pois o navio parte e o Brasil continuará a ser para ele um desconhecido. Assim, como sua grande obra magistral  ficará desconhecida dos brasileiros.

                        É que as fronteiras do Continente parecem sempre fadadas a serem intransponíveis.