domingo, 1 de fevereiro de 1998

O retrato

          Seu nome é Carlota Ferreira e, em 1883, quando tinha trinta e oito anos, foi pintado o seu retrato pelo grande e famoso pintor uruguaio Juan Manuel Blanes. Exposto no Museu Nacional de Artes Visuais de Montevidéu é o que dela permanece. Porque sua história, instigante e contraditória se perdeu no tempo.

          Em Mujeres uruguayas. El retrato femenino de nuestra historia (Montevideo, Alfaguara, 1997) lhe é dedicado um capítulo onde se conta de seus quatro casamentos, de suas audazes aventuras, dos incríveis sucessos que lhe são atribuídos, de como as pegadas de sua exuberância desaparecem na história de Salto, ao não existirem a memória ou o legado de seus descendentes.

           No artigo de Laura Gandolfo, o primeiro a ser dito é sobre esse retrato que a imortalizou onde seus braços grossos e poderosos saem das curtas mangas do ajustado vestido. O ramo de flores repousa sobre o peito avultado, um conjunto de oito botões de rosa que fazem com que se destaque o pescoço maciço. O vestido também é cor de rosa e se esmera em apertar a cintura para desenhar ali linhas côncavas. As mãos levam luvas  brancas que se estendem sobre os antebraços e pulseiras douradas. Os olhos aparecem ensombrecidos pelo cabelo negro e recolhido na testa, num rosto sereno mas com ar desafiante. A boca é carnuda, rosada e está levemente entreaberta. A figura sobressai iluminada e nívea sobre um fundo opaco”.

            As sessões em que pousou para o artista são contadas por Maria Esther de Miguel no seu romance El general el pintor y la dama (Buenos  Aires, Planeta, 1997), pela voz do filho do pintor que, espiando pela fresta da porta, no espelho que a refletia a vê, de pé, sobre um fundo de damasco levemente esverdeado. Na contemplação, aprecia os detalhes, o encanto que lhe era impossível precisar se vinha da mulher que pousava, da habilidade do pintor ou do enigmático sortilégio do espelho.

             Certamente com prazer, descreve, então, o que vê: O traje de Carlota era de seda branca e bordada, com enfeites de renda também brancos, mas ao longo da saia o branco se tornava cor de rosa ou talvez lilás para se harmonizar com o ramo de rosas, de um decidido tom pálido aparecendo no decote. Uma longa fileira de minúsculos botões acentuava o talhe apertado da blusa. A saia descia em sugestivo drapeado e logo se perdia num grande laço também em tom  rosa. As mãos da dama e os antebraços primorosamente enluvados em pálida camurça luziam pulseiras e jóias. Caiam bem tais complementos porque essas eram mãos de mulher acostumada ao gozo das boas coisas e aos refinamentos da elegância. Das luvas emergiam na sua opulência carnal, como de uma taça a flor, os braços da dama, de carnes firmes e decidida tonalidade rósea.

                Porém, mais do que descrever o modelo do pai, Nicanor, o jovem filho do pintor, se compraz em contar o que sentia por ela: uma atração que o faz vencer a timidez para procurar lhe falar. Carlota Ferreira o acolhe tão bem que durante três dias permanecem encerrados em seu quarto de hotel num delírio que os irá levar ao casamento embora sejam muitos os anos que medeiam entre os dois.

                 Na fabulação que o gênero lhe permite, Maria Esther de Miguel narra a vida que levaram em Buenos Aires até a ruptura, a volta de Nicanor para casa, em Montevidéu o que levou Carlota Joaquina conseguir a anulação do casamento. Nas páginas que lhe contam a história em Mujeres uruguayas, sua trajetória se completa: um caminho de  conquistas amorosas e desregramentos até seu final trágico e decadente.

                  Sempre esplêndido, o retrato que lhe fez Juan Maneul Blanes,  enfatizando uma beleza de carnes audazmente rosadas, certamente própria dos padrões estéticos de seu tempo.

                   Daí essa paixão também despertada no jovem Nicanor que lhe exalta a beleza e os sentimentos mas que, virilmente, diante da traição a abandona para se refugiar entre os seus e depois partir para a Europa onde desaparece. Jamais pode ser encontrado e as razões que o levaram a se esconder de todos podem ser imaginadas mas pouco de seus sentimentos ou de seu drama foi descoberto.

                    Da mulher que amou e que, talvez, o tenha levado a se perder, ficou o retrato: Carlota Ferreira de pé, com o corpo perfilado e o rosto de frente como para luzir-lhe as belezas.

                     Porque dizia seu pai, o pintor: não se pintam retratos para que vivam um pouco  e nada mais. São pintados para viver eternamente.

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