sábado, 5 de abril de 1997

A reza.

          Os títulos dos capítulos são: “A cidade”, “O regresso”, “Andanças de Ganapán”, “A máquina”, “O santo Ofício da Inquisição”. Eles se intercalam num total de trinta e nove para falar de Montevidéu e de seu destino nesses meados da década de 70 quando o livro foi escrito.

          “A cidade” são oito breves textos que refletem o hediondo de uma cidade dominada pela ditadura; “O regresso”, a trajetória de um militante que escapou da prisão e do país e volta para reiniciar a luta; “A máquina”, descreve sessões de tortura a que foi submetido, até morrer, o militante Fierro; “O Santo Ofício da Inquisição”, retoma textos compilados por J. T. Medina que deram origem as suas obras História del Tribunal del Santo Oficio de la Inquisición de Lima e El Tribunal del Santo Ofício de la Inquisición en las Provincias del Plata; “Andanças de Ganapán” acompanha os passos de Ganapán em busca de um trabalho que lhe permita viver.

          A narrativa se faz em primeira pessoa do singular ou plural, em segunda, em terceira pessoas que, por vezes, se mesclam conforme queiram significar um eu coletivo (“A cidade”) ou aproximar e afastar uma ação como em “A máquina”, usando, alternadamente, uma primeira ou uma terceira pessoa.

          Em primeira pessoa, o fluir da consciência de Fierro quando o torturam, a voz de Mariano ao contar para Clara como foi preso, como fugiu da prisão e se salvou. E o monólogo de Ganapán.É um dos seis capítulos de “Andanças de Ganapán” e, embora se inicie com uma frase interpelativa – Lembra-se da primeira vez que nos falamos? – como se o interlocutor fosse, realmente, dar uma resposta, se constitui um longo monólogo.Uma voz ingênua se dirige a Maria a quem nunca acendeu uma vela, a quem nunca ofereceu moeda alguma e cujas orações esqueceu. Logo, a tratará de Mãe de Deus, Mãe dos Mártires, Virgem Maria Santíssima, Rainha do Céu e da Terra, Virgem Santíssima transpassada de punhais pelas dores do mundo, a Senhora, que é sagrada.Quer lhe pedir ajuda para realizar um assalto, o primeiro de sua vida. Sabe que é um pedido que não irá agradar a quem é feito; imagina mesmo que ao escutá-lo deverá estar fazendo uma careta e explica que não agirá por infâmia mas, por necessidade.Voz adulta a revelar uma  alma de menino – gosto da senhora do meu jeito, acredito na senhora do meu jeito – mas de um menino desamparado que, assim, desamparado cresceu.

          Mais do que pedir uma ajuda, ele se derrama em confidências. Lembra-se dos castigos que recebeu no orfanato, da presença efêmera do pai, da fuga que o levou para a vida na rua. Lembra-se dos filhos que já não vê, da mulher que o abandonou, cansada da pobreza, do emprego perdido. Divaga sobre discos voadores, sobre a sua própria existência. Quer saber quem é, o que significa a sua vida, o transplantar dos ancestrais da África para a América, esses dias de logros sucessivos.

          O falar de um homem sozinho, atônito diante da miséria. De onde vem minha desgraça? Nasci torto ou me puseram mau olhado? Minha alegria foi embora, Virgem Santa, pelos buracos que tenho na alma. Estou feito uma tristeza andante. Para que vivo? Para que respiro?

          Sua interlocutora, porém, é silenciosa e ele acredita que está muito ocupada, arrancando os espinhos do mundo que são tantos.

          Na estrutura do romance La canción de nosotros de Eduardo Galeano (Buenos Aires, Sudamericana, 1975) ele é um narrador em primeira pessoa como Fierro, o torturado, como Mariano, o perseguido. Como eles, também não é escutado mas, pelo menos, para a divindade ele pode falar e, ainda que o silêncio seja a resposta, sempre poderá lhe sobrar uma ilusão.
 

Nenhum comentário:

Postar um comentário