domingo, 27 de abril de 1997

O dicionário.


CONTRA-HISTÓRIA é simetricamente oposta à História Oficial. Ela é silenciosa, subalterna, sem registro, sem marcos públicos, salvo aqueles da história feito corpo dos atores e depositária nos fragmentos da memória. É construída por todos, em todos os dias, nas pequenas e nas grandes ações. Pode ser contraditória. A realidade não permite inúmeras leituras? O mesmo se dá com nossas experiências, com nossas vivências, com tnossas interpretações. Ela é sempre plural. Abre espaços para as minorias, deixa entrar os sentimentos, não tem medo de apresentar-se prosaica, relatando as coisas comuns, matéria da qual todos somos feitos.Do Dicionarinho nada convencional
 
          As palavras se encadeiam pelo sentido. A última do verbete evoca a primeira do seguinte. Assim é o Dicionarinho nada convencional de Arlene Renk, ainda inédito.

          Professora do Departamento de Educação e Ciências Humanas e Sociais da Universidade do Oeste de Santa Catarina, Campus Chapecó, Doutora em Antropologia Social pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, ela se inspirou no Dicionarinho maluco de Haroldo Maranhão para escrever sobre uma série de categorias de uso comum e sobre elas refletir.



          Partindo de uma frase da artista plástica Yoko Ono, a mulher é o negro do mundo, induzindo à pergunta por que o negro?, “negro” é então o seu primeiro verbete. A ele se seguem “Outro”, “Construção social”, “Mapa cognitivo”, “Etnocentrismo”, “Ditadura da estética”, “Padrões de herança” e tantos outros.

          Como trabalho que faz parte do Programa Interdepartamental OESTE NO PLURAL, o Oeste Catarinense é privilegiado. O verbete Manipulação termina com a pergunta como é construída a identidade social no Oeste Catarinense e o verbete Oeste Catarinense remete à data de 1917 quando foi assinado o acordo de paz entre o Paraná e Santa Catarina, definindo o limite entre os Estados, encerrando a Guerra do Contestado. Guerra do Contestadoque também é um verbete, ao qual se seguem outros à essa guerra relacionados. Os verbetes Des-locar, Pioneiro, Etnocidade remetem à migração no Oeste Catarinense como também, nas entrelinhas, os verbetes Brasileiro e Casamento se referem à região.

          Do conjunto, emergem observações – como lembrar esses camponeses de Átany, na Hungria, cuja aldeia eles consideravam como o centro do mundo; ou mencionar o Edito de 1549 de Henri II da França que regulamentava o uso do carmesim; ou se referir às negativas figuras femininas da mitologia: Lâmia, Harpias, Queres, Fraude. – que são, sumamente, oportunas quando está a ser tratado o Etnocentrismo, Cidadão, Mitologias.

          E outras, não menos oportunas: as que levam a pensar sobre o que, em geral, é comumente aceito embora não resista à mais leve e superficial análise: as inegáveis situações que obrigam crianças a um trabalho prematuro que lhes nega a infância; a baixa esperança de vida para uma grande parcela da população brasileira; a forma depreciativa no trato com o negro; as armadilhas que cerceiam a presença dos considerados indesejáveis (os índios, os pretos, os pobres); a descriminação para com a mulher; as condições de trabalho que agridem o trabalhador.

          Idéias, conceitos e fatos se intercalam nesses verbetes onde as perguntas mostram caminhos: Quem sabe possamos fazer um pequeno exercício de pensar as coisas ao avesso?, Ao invés da perspectiva maniqueísta por que não pensamos o pluralismo?, Não seria lícito pensar beleza quanto um conceito de trabalho?, E quem poderá fazer a história desses desinformados?”. E, onde breves textos funcionam como instigantes sínteses como a do verbete Outro: Os pobres podem ser o Outro para os ricos, e os loucos podem ser o Outro para aqueles que não se consideram loucos. E poderíamos arrolar infinitamente as “outridades” de nossa sociedade. O importante é resgatar que não se nasce Outro. Torna-se. Isto é, os outros são construídos socialmente.

          Sem dúvida, palavras de Um dicionarinho nada convencional. Um dicionário que, para alguns, talvez não seja necessário: sempre há uma elite informada e pensante no país. Todavia, para muitos, muitos, para os que não tem olhos para ver, nem ouvidos para escutar – e sabe-se quanto um sistema educativo crítico e honesto voltado para o país seria desejável – são páginas que, certamente, deveriam ser de leitura imprescindível.

domingo, 20 de abril de 1997

O poeta jovial.


Sic Transit 

Diariamente,
eu passo os cariocas para trás:
com a mania de levar vantagem,
dão sempre um passo a mais,desrespeitando
as faixas e os pardais. 

O que lhes interessa não é bem
o vermelho ou o verde que não vêem
e sim o pole-position da largada,
o charme da infração em cada esquina,
mas só sai mesmo em disparada
se ouve o toque de caça da buzina. 

Tranquilo
e obediente
eu saio sempre à frente
vibrando a lança
em prol do estilo 

         Ensinou nos Estados Unidos, Uruguai, França, Portugal e, atualmente é professor titular da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. Autor de ensaios (especialmente sobre Carlos Drummond de Andrade) e de poemas. Seu primeiro livro data de 1955, publicado em Goiás, seu estado natal.

         É Gilberto Mendonça Telles de quem o Jornal de Letras, Artes e Idéias, de Lisboa, no seu número 690, acaba de publicar seis poemas inéditos: “Os pós modernos”, “Cantilena”, “Sic transit”, "Et tout le rest”, “Sereia”, “Pescaria”.

         A uni-los, um tom de cotidiano e de troça ou esse finalizar um poema como Eça de Queirós finalizava os seus capítulos: com uma comicidade inesperada. Um todo que se envolve em lirismos, em aparência, simples e ingênuos.
         Assim, são trocistas os últimos versos de “Pescaria”: Mas o grande problema, / o que me está infernizando, / o que me abrasa, / não é fazer da vara algum poema / e sim como levar de contrabando / um rabo de sereia para casa. Na verdade, talvez nem muito sérios sejam tampouco os primeiros versos do poema a falar de varas de pescar um tanto quanto surrealistas. Prosaico, esse poetar sobre o trânsito do Rio de Janeiro onde os cariocas, na ânsia da desobediência às leis, submissos ao Charme da infração desrespeitam faixas e pardais. E, risível esse fazer-se de ouvidos moucos ou esse meter algodão nos ouvidos para não se perder ou não ficar louco ao se dar conta, nas lonjuras do cerrado, de algum cochicho, de vozes de amor, de suspiros e gemidos; ou, esse anjo sisudo que entra na contramão, imagem com a qual se termina o poema “Cantilena”.

         Porém, para levar a sério, são muitos versos: os primeiros e os últimos de “Os pós modernos”, estrofes de amor em que o sentimento se traduz em claros conceitos: não desistir jamais se o amor não cabe / na forma absoluta ou sentindo que a beleza mais longínqua / é sempre devoluta. Ou, aqueles em que às expressões populares (pó de mico e seu fuxico, pó de traque e seu sotaque) às rimas fáceis (o resto é pluma, coisa nenhuma, fio e fiapo, forma de trapo) se acrescentam inquietações daquele que se entrega ao amor, do que sabe o dano que pode resultar em possuí-lo, de quem é conhecedor do preço de viver.

         Parecem  esses inéditos serem feitos de  uma poesia desobediente às prováveis leis do poetar. Plena de improvisos e de imprevistos. De buscas e de descobertas.

         Gilberto Mendonça Telles é verdadeiro quando, versejando diz: eu saio sempre à frente / vibrando a lança / em prol do estilo.

domingo, 13 de abril de 1997

O número 200



A revista Casa de las Américas se negou a ser mais um cenáculo cultural. Com ela, a cultura deixou de ser essa terra de ninguém na qual se refugiam as elites e os intocáveis, esse púlpito de marfim do qual se bendiz e se canta loas ao poder, à rapina ou ao “espírito”. JaimeAlasraki.

           Desejo muito ler o número 400 e conto com o esforço de vocês para isso. Foram, entre outras, as palavras que, em 13 de junho de 1995, Darcy Ribeiro enviou para a revista Casa de las Américas, quando da tiragem de seu ducentésimo exemplar (julho/setembro de 1995). Considerando que saem quatro números por ano, sua frase foi exemplarmente otimista quanto à sua desejável longevidade, como a do futuro de uma revista cujo significado, para a América inteira, é muito maior do que as suas próprias propostas.

          E isto está muito claro nas mensagens que, sobretudo, do mundo hispânico lhe chegaram. Intelectuais do Continente a definiram como uma rigorosa obstinação, uma trincheira, um baluarte, uma tribuna, centro e busca de coesão intelectual e moral, lugar de resistência, foro livre de debates. Mas, principalmente, confessaram suas dívidas para com ela e da qual a primeira é o terem se reconhecido como parte de um Continente que, por vezes, se ignora a si mesmo  e que, nas páginas da revista, está inteiramente representado na poesia, na ficção, na polêmica, na crítica, no testemunho. Toda uma criação que chega da América inteira e se constitui um fanal ao traduzir as aspirações e as utopias dos latino-americanos que nela encontraram guarida. Daí ensejar-se um encontro que permanece alheio às dificuldades oriundas das distâncias que separam e da precariedade das comunicações e, sobretudo, aos preconceitos e eventuais bloqueios.

          Um encontro tão precioso que todos os missivistas auguram se repita por muito tempo. Para seu próprio bem, diz o equatoriano Jorge Enrique Adoum, espero que o Continente possa ler um dia o número 400 de Casa de las Américas. Votos auspiciosos porque, sem dúvida, o conhecer-se e o discutir-se – e a leitura de Casa de las Américas a isso induz – pode ajudar nesse imprescindível comportar-se livre de amarras.

sábado, 5 de abril de 1997

A reza.

          Os títulos dos capítulos são: “A cidade”, “O regresso”, “Andanças de Ganapán”, “A máquina”, “O santo Ofício da Inquisição”. Eles se intercalam num total de trinta e nove para falar de Montevidéu e de seu destino nesses meados da década de 70 quando o livro foi escrito.

          “A cidade” são oito breves textos que refletem o hediondo de uma cidade dominada pela ditadura; “O regresso”, a trajetória de um militante que escapou da prisão e do país e volta para reiniciar a luta; “A máquina”, descreve sessões de tortura a que foi submetido, até morrer, o militante Fierro; “O Santo Ofício da Inquisição”, retoma textos compilados por J. T. Medina que deram origem as suas obras História del Tribunal del Santo Oficio de la Inquisición de Lima e El Tribunal del Santo Ofício de la Inquisición en las Provincias del Plata; “Andanças de Ganapán” acompanha os passos de Ganapán em busca de um trabalho que lhe permita viver.

          A narrativa se faz em primeira pessoa do singular ou plural, em segunda, em terceira pessoas que, por vezes, se mesclam conforme queiram significar um eu coletivo (“A cidade”) ou aproximar e afastar uma ação como em “A máquina”, usando, alternadamente, uma primeira ou uma terceira pessoa.

          Em primeira pessoa, o fluir da consciência de Fierro quando o torturam, a voz de Mariano ao contar para Clara como foi preso, como fugiu da prisão e se salvou. E o monólogo de Ganapán.É um dos seis capítulos de “Andanças de Ganapán” e, embora se inicie com uma frase interpelativa – Lembra-se da primeira vez que nos falamos? – como se o interlocutor fosse, realmente, dar uma resposta, se constitui um longo monólogo.Uma voz ingênua se dirige a Maria a quem nunca acendeu uma vela, a quem nunca ofereceu moeda alguma e cujas orações esqueceu. Logo, a tratará de Mãe de Deus, Mãe dos Mártires, Virgem Maria Santíssima, Rainha do Céu e da Terra, Virgem Santíssima transpassada de punhais pelas dores do mundo, a Senhora, que é sagrada.Quer lhe pedir ajuda para realizar um assalto, o primeiro de sua vida. Sabe que é um pedido que não irá agradar a quem é feito; imagina mesmo que ao escutá-lo deverá estar fazendo uma careta e explica que não agirá por infâmia mas, por necessidade.Voz adulta a revelar uma  alma de menino – gosto da senhora do meu jeito, acredito na senhora do meu jeito – mas de um menino desamparado que, assim, desamparado cresceu.

          Mais do que pedir uma ajuda, ele se derrama em confidências. Lembra-se dos castigos que recebeu no orfanato, da presença efêmera do pai, da fuga que o levou para a vida na rua. Lembra-se dos filhos que já não vê, da mulher que o abandonou, cansada da pobreza, do emprego perdido. Divaga sobre discos voadores, sobre a sua própria existência. Quer saber quem é, o que significa a sua vida, o transplantar dos ancestrais da África para a América, esses dias de logros sucessivos.

          O falar de um homem sozinho, atônito diante da miséria. De onde vem minha desgraça? Nasci torto ou me puseram mau olhado? Minha alegria foi embora, Virgem Santa, pelos buracos que tenho na alma. Estou feito uma tristeza andante. Para que vivo? Para que respiro?

          Sua interlocutora, porém, é silenciosa e ele acredita que está muito ocupada, arrancando os espinhos do mundo que são tantos.

          Na estrutura do romance La canción de nosotros de Eduardo Galeano (Buenos Aires, Sudamericana, 1975) ele é um narrador em primeira pessoa como Fierro, o torturado, como Mariano, o perseguido. Como eles, também não é escutado mas, pelo menos, para a divindade ele pode falar e, ainda que o silêncio seja a resposta, sempre poderá lhe sobrar uma ilusão.