domingo, 9 de março de 1997

A mudança.


           Mario Benedetti escreveu “La vecina orilla” em 1976. A narrativa fez parte do volume Cuentos da Alianza Editorial e do volume Cuentos Completos da Coleção Alianza Tres. Em 1994, na mesma editora, deu título ao volume da coleção Alianza Cien que engloba outros quatro relatos: “El presupuesto”, “Se acabó la rabia”, “El fin de la disnea” e “Requien com tostadas”, respectivamente de 1949, 1956, 1965, 1966.

            Entre “La vecina orilla” e “El presupuesto”, o mais antigo desses relatos, medeiam quase trinta anos e o terem sido publicados no mesmo volume permitem, mais facilmente, um estudo comparativo sobre dois momentos: o da gênese do texto e o do espaço em que veio à luz. Uma aproximação que exemplifica as palavras de Hortensia Campanella, no lembrete do Diccionario de autores iberoamericanos (Madrid, 1982), a ele dedicado: uma obra sempre atenta à realidade e um crescente compromisso político o levaram a se converter, primeiro, numa testemunha da alienação urbana em seu país e logo em porta-voz da resistência e da opressão.

            “El presupuesto” (“O ordenado”) foi escrito quando Mario Benedetti tinha vinte e nove anos e o Uruguai ainda era aquela Suissa encravada no Continente; o país de que fala Marcel Niedergang (Les 20 Amériques latines, Paris, Seuil, 1969) cuja imagem, talvez, em parte, certa, ele fixa ao descrever o fim de tarde em Montevidéu quando as pessoas freqüentavam confeitarias e circulavam diante das luxuosas vitrinas. No mundo ficcional,  trata-se, apenas, de um ordenado há muitos anos sem aumento e das tentativas ingênuas de reverter tal situação. Testemunho da alienação urbana, Mario Benedetti, com realismo e humor, aponta as incongruências desse simplório círculo vicioso da burocracia.

            Mas o país se transforma. Custo de vida, desemprego, inflação, crise no mercado da carne e da lã e as clássicas medidas “salvadoras”(desvalorização da moeda, bloqueio dos salários), conduzem a uma agitação popular que é violentamente reprimida. Porta-voz da resistência e da opressão, Mario Benedetti já com cinqüenta e seis anos, registra, ainda com humor, a história de uma realidade que ficaria talvez escondida se a ficção não a tornasse pública.

            “La vecina orilla” é a história de uma fuga.  Recém-saído da cadeia, um jovem parte para Buenos Aires, procurando escapar da repressão. As experiências se sucedem. São encontros e reencontros e um novo mal entendido o leva, outra vez, a se esconder.Fôra preso porque no aniversário de morte de uma estudante assassinada pela repressão, colocara, como todos os seus colegas, uma rosa vermelha na mesa do professor. Uma provocação poética, ele diz, mas que irritou o Poder. Como autor, embora não o fosse, da idéia, é preso e preso passa os trinta e quatro dias seguintes. Menor de idade, não sofreu tortura, foi apenas golpeado, apenas levado para assistir as sessões vividas pelos outros.  Em Buenos Aires procurou uma pensão, procurou um trabalho e o acaso o fez encontrar outros uruguaios em situação igual ou semelhante a sua. E, assim, nos diálogos que entre eles se estabelecem, surgem as imagens da repressão em Montevidéu e aquela que em Buenos Aires se mostra nos tiroteios e nas prisões feitas em via pública.

            Em “El presupuesto” e em “La vecina orilla” há um mesmo tom que se mantém – algo de indiferente, algo de descompromissado, algo passível de riso – conduzindo o relato. Diferentes são os motivos que regem os personagens. No conto escrito em 1949 é a busca de uma vantagem material. Em “La vecina orilla” o universo se amplia, entremeando às questões de amor, às opções individuais o desejo de liberdade que se mostra tão intenso quanto o abuso do Poder destruindo vidas.

            São textos impregnados da realidade do país e, alimentado por ela. O escritor registra momentos que fazem parte dessa trajetória de descaminhos tão usuais e repetidos no Continente.

            Daí o ter sido sua obra censurada. Daí o ter sido obrigado a viver no exílio.

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