domingo, 16 de março de 1997

A esperança.

            O jovem tem dezessete anos recém feitos e no avião que parte para Buenos Aires, onde acredita estar a salvo da perseguição reinante no seu país, a imagem dos pais, que lhe acenam antes da partida, o leva a iniciar as anotações que irá fazendo a partir de então. Primeiro a lembrança da infância; depois, o momento em que foi preso, tido como líder dos estudantes que fizeram a provocação poética de colocar uma rosa sobre a mesa do professor em memória de uma jovem assassinada um ano antes. Logo, sobre sua nova vida na capital argentina.
            Um relato que se quer do cotidiano. E o cotidiano resulta de encontros ocasionais com os compatriotas que também procuraram uma possível saída na vecina orilla, a margem vizinha.
 
            E, assim, outras histórias se inserem na sua, dando conta do que acontecia no seu país e do que acontecia no país que o acolhera como turista. A história de Dionísio, por exemplo: estudante de química que em seis meses envelhecera dez anos. Parece calmo. Aceita tomar uma cerveja e aceita a pergunta do interlocutor para responder que esteve preso, que foi torturado, que a única vez que lhe tiraram o capuz foi para que visse quando lhe violaram a namorada; ou a história da atriz – ele a chama de Isabel – que se debate entre atuar, como faz, em peças inconseqüentes ou trabalhar, sob a ameaça de ser presa, em algo útil: ajudar as pessoas a entender as coisas.Situações cruéis – a prisão, a tortura ou a autoanulação – que ele registra na emoção dos outros.

            Cabem, também, nas suas notas, breves observações, “en passant”, que reafirmam o estado de exceção reinante. Quando, em determinada situação, demonstra conhecimentos de história, pensa que sua professora estaria dele orgulhosa se o escutasse. Porém, logo emenda: Mas não está orgulhosa; está presa. Ou, ao tomar conhecimento que no Consulado de seu país, em Buenos Aires, ele está fichado como tantos outros que cruzaram o rio. Ou, ser avisado de que não deve voltar ao quarto da pensão pois lá já o haviam procurado; ou, presenciar a cena, numa das ruas da cidade em que um casal é preso enquanto centenas de pessoas são encostadas na parede com as mãos para o alto até que o desmedido aparato policial se afaste com sua presa; ou, encontrar-se com Laura que tem o marido preso em Montevidéu e o irmão desaparecido.

            Na estrutura de “La vecina orilla”, relato que dá título ao pequeno livro da coleção Alianza Cien da Alianza Editorial (Madrid, 1994), são informações dadas ao acaso que, juntamente, com aquelas que o narrador recebe de Dionísio e de Isabel completam o quadro da repressão. Um quadro que se apresenta esmaecido pelo tom em que é apresentado, beirando a displicência de quem ainda não tem a maturidade para mensurar o quê de grave acontece nos dois países a partir daquilo que assiste ou que está vivendo.

            Mario Benedetti ao dar voz ao jovem narrador não carregou nas tintas embora o assunto pudesse dar vaza para isso. Mas, deixou o registro de uma época de sombras e o fez, guardando uma esperança.A esperança de seu personagem que antes de iniciar a nova fuga compra um bonito envelope e nele põe as notas que redigira até então, endereçando-o a Isabel. Na capa do caderno deixa escrito como despedida: Tenho que ir embora. Um beijo. Isto é para que leias, bem cômoda, no sofá. Estou te mandando porque talvez ainda sejas resgatável.

            Resgatáveis, em 1976, quando o conto foi escrito, seriam todos os que se tornassem ou permanecessem lúcidos e capazes de opções diante da supressão das liberdades individuais e tudo o mais que disso pode  decorrer.

 

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