domingo, 30 de março de 1997

Os outros.


Porque se coloniza também na medida em que se bloqueia a consciência do outro.  Jaime Mejia Duque
 

                        É típico de determinados grupos a enorme e prazerosa capacidade de imitação que possuem. Aderem aos modelos forâneos, no afã de se converter em súditos, cuja vassalagem está baseada no tecer loas ao país dos outros e se portar como se fossem esses outros.

                        No ensaio “Narrativa y neocoloniaje en América Latina” que dá título a seu livro publicado pela Editorial Crisis de Buenos Aires, em 1976, o colombiano Jaime Mejia Duque diz que essas são pessoas inibidas em Assumir a responsabilidade de sua própria existência e a de seu povo. E, continua dizendo que não se trata somente de casos individuais ou anedóticos – e do anedótico o exemplo mais bem acabado e conhecido é o daquele cidadão brasileiro que teria afirmado que “o que é bom para os Estados Unidos é bom para o Brasil – mas de uma estrutura. A superestrutura que Althusser denomina de aparelhos ideológicos do Estado: a imprensa, rádio, televisão, universidades, centros científicos, grupos religiosos,etc.Dessa superestrutura, as expressões artísticas não estariam libertas ao se calcar em experiências consideradas definitivas em outras latitudes e ao se eximir da busca criativa ou da aquisição de um autêntico saber. Então, o ensaísta colombiano fala da passividade imitativa, da despersonalização do homem que passa a ser manipulado e nisso se compraz. Deslumbrado, usa frases feitas, cita terceiros, mostra-se erudito e não se reconhece como expressão do colonialismo cultural. E, perfeitamente colonizado, repete as mistificações da metrópole, pensando esgrimir a mais elaborada e profunda das culturas.

                        É, esse, um dos trilhar caminhos do subdesenvolvimento onde submeter-se aos que pensam, àquilo que os outros criam, ao que sentem os outros de outros hemisférios é para os autocolonizados, a grande escolha.

                        Ainda que assim, no país, se afoguem as melhores possibilidades criadoras.

domingo, 23 de março de 1997

Além dos dias e do tempo.


            Seu nome não se encontra nas histórias literárias. Nasceu no interior do Uruguai e lá, distante da capital e dos modelos que por ela são ditados, foi escrevendo seus poemas-relatos.Em 1954, publicou o primeiro livro Poemas, aos que se seguiram Druída em 1955, Historial de las violetas e Magnolia dez anos depois. A eles acrescentou La guerra de los huertos e Está en llamas el jardin para compor um único título: Los papeles salvajes, publicado pela Arca de Montevidéu, em 1971.No todo, uma obra estranha, testemunho de uma profunda emoção expressa em hiperbólica imaginação que tira sua seiva da natureza feita de flores, frutos, vento, chuva, pássaros e pequenos animais.

            Poemas, sua primeira obra é composta de oito breves textos. Relatos de uma peregrinação que busca algo: ovos de pombos, frutas, água, o guarda do bosque, ou algo de indefinível. E as fugazes presenças da mãe, da avó, de um amigo, não afugentam o medo que move essa figura de menina para quem se descortina um mundo de perfumes, de cores, de ruídos.São cheiros de pântano, de vime, de amêndoa, de limão. São tons de lilás, vermelho, verde, rosado, azul, alaranjado. E o branco. E o riso que se eleva, como o uivar dos lobos, o ladrar dos cães.

            É sempre ela que sente. Sempre ela que delira, que sonha, percebe a vida real ou imaginada a se agitar ao seu redor e faz dela algo a ser narrado. Sua palavra busca o poema nesse suceder-se de comparações e metáforas, nessas antropomorfizações, nesse repetir incessante de palavras e de expressões, nesse fixar do efêmero, nesse vocabulário pleno de sugestões, desenhando um mundo de cerejas, de glicínias e dálias.

            Mais do que nas aventuras da menina pelos campos, pelas árvores, pela noite, são os seus achados estilísticos como narradora que conduzem a prosa poética de Poemas.

            Como as demais de Marosa di Giorgio é uma obra que foge às classificações e ao tempo em que foi escrita.Paira iluminada e fugidia acima dos cotidianos e das lutas que se travavam no seu país nesses dias e nesses tempos.

domingo, 16 de março de 1997

A esperança.

            O jovem tem dezessete anos recém feitos e no avião que parte para Buenos Aires, onde acredita estar a salvo da perseguição reinante no seu país, a imagem dos pais, que lhe acenam antes da partida, o leva a iniciar as anotações que irá fazendo a partir de então. Primeiro a lembrança da infância; depois, o momento em que foi preso, tido como líder dos estudantes que fizeram a provocação poética de colocar uma rosa sobre a mesa do professor em memória de uma jovem assassinada um ano antes. Logo, sobre sua nova vida na capital argentina.
            Um relato que se quer do cotidiano. E o cotidiano resulta de encontros ocasionais com os compatriotas que também procuraram uma possível saída na vecina orilla, a margem vizinha.
 
            E, assim, outras histórias se inserem na sua, dando conta do que acontecia no seu país e do que acontecia no país que o acolhera como turista. A história de Dionísio, por exemplo: estudante de química que em seis meses envelhecera dez anos. Parece calmo. Aceita tomar uma cerveja e aceita a pergunta do interlocutor para responder que esteve preso, que foi torturado, que a única vez que lhe tiraram o capuz foi para que visse quando lhe violaram a namorada; ou a história da atriz – ele a chama de Isabel – que se debate entre atuar, como faz, em peças inconseqüentes ou trabalhar, sob a ameaça de ser presa, em algo útil: ajudar as pessoas a entender as coisas.Situações cruéis – a prisão, a tortura ou a autoanulação – que ele registra na emoção dos outros.

            Cabem, também, nas suas notas, breves observações, “en passant”, que reafirmam o estado de exceção reinante. Quando, em determinada situação, demonstra conhecimentos de história, pensa que sua professora estaria dele orgulhosa se o escutasse. Porém, logo emenda: Mas não está orgulhosa; está presa. Ou, ao tomar conhecimento que no Consulado de seu país, em Buenos Aires, ele está fichado como tantos outros que cruzaram o rio. Ou, ser avisado de que não deve voltar ao quarto da pensão pois lá já o haviam procurado; ou, presenciar a cena, numa das ruas da cidade em que um casal é preso enquanto centenas de pessoas são encostadas na parede com as mãos para o alto até que o desmedido aparato policial se afaste com sua presa; ou, encontrar-se com Laura que tem o marido preso em Montevidéu e o irmão desaparecido.

            Na estrutura de “La vecina orilla”, relato que dá título ao pequeno livro da coleção Alianza Cien da Alianza Editorial (Madrid, 1994), são informações dadas ao acaso que, juntamente, com aquelas que o narrador recebe de Dionísio e de Isabel completam o quadro da repressão. Um quadro que se apresenta esmaecido pelo tom em que é apresentado, beirando a displicência de quem ainda não tem a maturidade para mensurar o quê de grave acontece nos dois países a partir daquilo que assiste ou que está vivendo.

            Mario Benedetti ao dar voz ao jovem narrador não carregou nas tintas embora o assunto pudesse dar vaza para isso. Mas, deixou o registro de uma época de sombras e o fez, guardando uma esperança.A esperança de seu personagem que antes de iniciar a nova fuga compra um bonito envelope e nele põe as notas que redigira até então, endereçando-o a Isabel. Na capa do caderno deixa escrito como despedida: Tenho que ir embora. Um beijo. Isto é para que leias, bem cômoda, no sofá. Estou te mandando porque talvez ainda sejas resgatável.

            Resgatáveis, em 1976, quando o conto foi escrito, seriam todos os que se tornassem ou permanecessem lúcidos e capazes de opções diante da supressão das liberdades individuais e tudo o mais que disso pode  decorrer.

 

domingo, 9 de março de 1997

A mudança.


           Mario Benedetti escreveu “La vecina orilla” em 1976. A narrativa fez parte do volume Cuentos da Alianza Editorial e do volume Cuentos Completos da Coleção Alianza Tres. Em 1994, na mesma editora, deu título ao volume da coleção Alianza Cien que engloba outros quatro relatos: “El presupuesto”, “Se acabó la rabia”, “El fin de la disnea” e “Requien com tostadas”, respectivamente de 1949, 1956, 1965, 1966.

            Entre “La vecina orilla” e “El presupuesto”, o mais antigo desses relatos, medeiam quase trinta anos e o terem sido publicados no mesmo volume permitem, mais facilmente, um estudo comparativo sobre dois momentos: o da gênese do texto e o do espaço em que veio à luz. Uma aproximação que exemplifica as palavras de Hortensia Campanella, no lembrete do Diccionario de autores iberoamericanos (Madrid, 1982), a ele dedicado: uma obra sempre atenta à realidade e um crescente compromisso político o levaram a se converter, primeiro, numa testemunha da alienação urbana em seu país e logo em porta-voz da resistência e da opressão.

            “El presupuesto” (“O ordenado”) foi escrito quando Mario Benedetti tinha vinte e nove anos e o Uruguai ainda era aquela Suissa encravada no Continente; o país de que fala Marcel Niedergang (Les 20 Amériques latines, Paris, Seuil, 1969) cuja imagem, talvez, em parte, certa, ele fixa ao descrever o fim de tarde em Montevidéu quando as pessoas freqüentavam confeitarias e circulavam diante das luxuosas vitrinas. No mundo ficcional,  trata-se, apenas, de um ordenado há muitos anos sem aumento e das tentativas ingênuas de reverter tal situação. Testemunho da alienação urbana, Mario Benedetti, com realismo e humor, aponta as incongruências desse simplório círculo vicioso da burocracia.

            Mas o país se transforma. Custo de vida, desemprego, inflação, crise no mercado da carne e da lã e as clássicas medidas “salvadoras”(desvalorização da moeda, bloqueio dos salários), conduzem a uma agitação popular que é violentamente reprimida. Porta-voz da resistência e da opressão, Mario Benedetti já com cinqüenta e seis anos, registra, ainda com humor, a história de uma realidade que ficaria talvez escondida se a ficção não a tornasse pública.

            “La vecina orilla” é a história de uma fuga.  Recém-saído da cadeia, um jovem parte para Buenos Aires, procurando escapar da repressão. As experiências se sucedem. São encontros e reencontros e um novo mal entendido o leva, outra vez, a se esconder.Fôra preso porque no aniversário de morte de uma estudante assassinada pela repressão, colocara, como todos os seus colegas, uma rosa vermelha na mesa do professor. Uma provocação poética, ele diz, mas que irritou o Poder. Como autor, embora não o fosse, da idéia, é preso e preso passa os trinta e quatro dias seguintes. Menor de idade, não sofreu tortura, foi apenas golpeado, apenas levado para assistir as sessões vividas pelos outros.  Em Buenos Aires procurou uma pensão, procurou um trabalho e o acaso o fez encontrar outros uruguaios em situação igual ou semelhante a sua. E, assim, nos diálogos que entre eles se estabelecem, surgem as imagens da repressão em Montevidéu e aquela que em Buenos Aires se mostra nos tiroteios e nas prisões feitas em via pública.

            Em “El presupuesto” e em “La vecina orilla” há um mesmo tom que se mantém – algo de indiferente, algo de descompromissado, algo passível de riso – conduzindo o relato. Diferentes são os motivos que regem os personagens. No conto escrito em 1949 é a busca de uma vantagem material. Em “La vecina orilla” o universo se amplia, entremeando às questões de amor, às opções individuais o desejo de liberdade que se mostra tão intenso quanto o abuso do Poder destruindo vidas.

            São textos impregnados da realidade do país e, alimentado por ela. O escritor registra momentos que fazem parte dessa trajetória de descaminhos tão usuais e repetidos no Continente.

            Daí o ter sido sua obra censurada. Daí o ter sido obrigado a viver no exílio.

domingo, 2 de março de 1997

Das folhas.

           É um cair de folhas que faz o conto “Otoño en San Miguel”, parte de Nino y otros cuentos (Buenos Aires, Efeté, 1996), estréia literária de Oscar Tacca, um autor já há muito respeitado por ter escrito Las voces de la novela (Madrid, Gredos, 1973) e La Historia literaria (Madrid, Gredos, 1968).E é como um verdadeiro conhecedor das técnicas literárias que ele constrói o breve relato.

           No título, " Otoño en San Miguel", a notação de tempo e de lugar. Logo nas primeiras linhas, a reafirmação do tempo: Parecia que o verão não partira de todo e a presença do personagem, Dona Faustina e seu relacionamento com as folhas outonais.

         Ela as varre, as queima, as enterra. Mas o vento torna a trazê-las e Dona Faustina vai sendo vencida até ser vencida de todo, guerra perdida que o narrador informa na última pequena frase que encerra o conto: A lâmpada de Dona Faustina continuava acesa. Isto quando o vento já havia levado todas as folhas, as que haviam tapado as chácaras e os poços, as que lhe haviam tapado a casa.

         No tempo que passara prisioneira das folhas, ela vivia a sua pequena vida – e cozinhava e fazia tricô e olhava pelo vão de vidro que não ficara coberto – lembrando a primavera, lembrando o verão, a ansiar pelo inverno. Quando as folhas a liberaram, já não pode apagar a luz desnecessária.

          Talvez haja algo de Eugène Ionesco, talvez algo de Gabriel García Márquez nessas irrealidades das folhas que se acumulam hiperbolicamente, nesse conviver sereno com o que foge às regras, nesse retorno, também hiperbólico ao que era antes: o vento revolveu as folhas mortas, as sacudiu no ar, escurecendo o sol e tapou o céu, levando-as todas e deixando o povoado limpo.Mas, certamente o austero da frase despojada, o poético do fenômeno que se reitera ao longo do outono no cair sinuoso e indeciso das folhas tornam distinto o relato de Oscar Tacca.

          Distinto e fascinante no delinear insólito de uma solidão, no delinear de imagens cambiantes em que as folhas vão mudando de lugar, vão adquirindo outros tons. Mostra-se, então, um mundo fugidio pleno de certezas e revela-se que o autor de precisos textos teóricos soube enveredar pelos caminhos da invenção.