domingo, 16 de fevereiro de 1997

O idílio

          Há páginas cruéis como o ataque dos cães selvagens à velha andrajosa que tentara disputar-lhes a carne da ovelha morta. Atrevera-se a bater-lhes com o punho. Então os cães enfurecidos na defesa de seus despojos, a morderam, a arrastaram triturando-a com seus colmilhos e tornando-a farrapos, precipitando por fim seu corpo miserável no fundo do barranco. Ou, outras, impressionantes, como a do incêndio se alastrando pelo campo, devastando tudo. Ainda, as que descrevem, com rara beleza, a paisagem do campo com toda a vida que nela pulula e as que descrevem a tosquia das ovelhas. Também, aquelas que mostram a profundidade dos sentimentos ou a valentia dos homens.

          E, as que relatam o amor entre Soledad e Pablo Luna. Ela, filha de fazendeiro e prometida a um velho amigo de seu pai; ele, o gaúcho sem raízes, livre e solitário.


          Primorosamente descritos no seu aspecto físico, belos e jovens, o amor que irá enredá-los é mostrado em quatro tempos, quatro definitivos encontros. No primeiro, é apenas um olhar: Soledad o observou com a cabeça baixa e as pupilas fixas, um pouco de soslaio, virada, imóvel; ele olhou para ela com ar melancólico, de uma forma vaga e fria. Balbuciou um cumprimento, levando a mão à aba do chapéu e Soledad apenas moveu a cabeça. Mas, seguiu-o com o olhar, admirou-lhe a figura e, pela primeira vez, pensou naquela de seu prometido. Uma comparação que a deixou um pouco inquieta, como inquieta ficou por não ter recebido um segundo ou um terceiro olhar.

          Num outro dia, ao vê-lo passar ao longe, é presa de emoções desconhecidas que a fazem chorar; murmurar que ele não é mais do que os outros que sempre perceberam, encantados, a sua presença; e que o irá seduzir.

          Na verdade, era ela quem já estava rendida. Ao vê-lo próximo, estremece, fica pálida e sem forças para encará-lo. E se afasta em idas e vindas que o buscam tanto como ele a ela. Um preparativo do jogo de sedução que será interrompido pelo pai de Soledad, mais uma vez a enxotá-lo de suas terras.

          O terceiro encontro é como que marcado. Soledad se distancia das casas e em pleno campo ele se aproxima dela. Falam-se pela primeira vez, se tocam e se acariciam. E, outra vez são surpreendidos pelo pai e, outra vez, Pablo Luna é expulso, agredido e humilhado.

           No meio do fogo que ele próprio ateara na vingança perpetrada, dá-se o encontro. Vê Soledad ser jogada no chão pelo prometido que para se salvar, fugindo do fogo, quer aliviar a carga do cavalo sobre a qual a carregava e, assim, atenta contra a vida de quem iria desposar.

           Pablo Luna a levanta nos braços e a cavalo, se afasta do fogo e da fumaça, adentrando-se nos lugares selváticos como numa noite eterna de solidão e de mistério.

           Verdadeiro mestre da narrativa, Acevedo Diaz, o criador do romance uruguaio, se permite dar por findo o relato sem dizer de felicidades e desvarios amorosos.

           Parco no dizer das emoções de Pablo Luna, elas no entanto se mostram tão fortes como as de Soledad sobre as quais o narrador se detém a partir desse primeiro olhar não correspondido, num profundo estudo da alma feminina.E perfeita a discrição de cada gesto, pleno de espontaneidade e de alegria, que aproxima os amantes nesse ritual de amor jovem e rude, expresso, pela primeira vez, sem peias.

Publicado em 1894, Soledad é uma das grandes criações da Literatura do Continente, seja pela sua qualidade estética, seja pela extrema sutileza com que se aproxima da alma humana.E os anos que passaram não lhe diluíram as virtudes nem tiraram o encanto dessa história de amor, verdadeira expressão luminosa de um sentir sem culpas e sem leis.

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