Há páginas cruéis como o
ataque dos cães selvagens à velha andrajosa que tentara disputar-lhes a carne
da ovelha morta. Atrevera-se a bater-lhes com o punho. Então os cães enfurecidos na defesa de seus despojos, a morderam, a
arrastaram triturando-a com seus colmilhos e tornando-a farrapos, precipitando
por fim seu corpo miserável no fundo do barranco. Ou, outras,
impressionantes, como a do incêndio se alastrando pelo campo, devastando tudo.
Ainda, as que descrevem, com rara beleza, a paisagem do campo com toda a vida
que nela pulula e as que descrevem a tosquia das ovelhas. Também, aquelas que
mostram a profundidade dos sentimentos ou a valentia dos homens.
E, as que relatam o amor entre Soledad e Pablo Luna. Ela, filha de fazendeiro e prometida a um velho amigo de seu pai; ele, o gaúcho sem raízes, livre e solitário.
Primorosamente descritos no
seu aspecto físico, belos e jovens, o amor que irá enredá-los é mostrado em
quatro tempos, quatro definitivos encontros. No primeiro, é apenas um olhar: Soledad o observou com a cabeça baixa e as
pupilas fixas, um pouco de soslaio, virada, imóvel; ele olhou para ela com ar
melancólico, de uma forma vaga e fria. Balbuciou um cumprimento, levando a
mão à aba do chapéu e Soledad apenas moveu a cabeça. Mas, seguiu-o com o olhar,
admirou-lhe a figura e, pela primeira vez, pensou naquela de seu prometido. Uma
comparação que a deixou um pouco inquieta, como inquieta ficou por não ter
recebido um segundo ou um terceiro olhar.
Num outro dia, ao vê-lo
passar ao longe, é presa de emoções desconhecidas que a fazem chorar; murmurar
que ele não é mais do que os outros que sempre perceberam, encantados, a sua presença;
e que o irá seduzir.
Na verdade, era ela quem já
estava rendida. Ao vê-lo próximo, estremece, fica pálida e sem forças para
encará-lo. E se afasta em idas e vindas que o buscam tanto como ele a ela. Um
preparativo do jogo de sedução que será interrompido pelo pai de Soledad, mais
uma vez a enxotá-lo de suas terras.
O terceiro encontro é como que marcado. Soledad se distancia das casas e em pleno campo ele se aproxima dela. Falam-se pela primeira vez, se tocam e se acariciam. E, outra vez são surpreendidos pelo pai e, outra vez, Pablo Luna é expulso, agredido e humilhado.
No meio do fogo que ele próprio ateara na vingança perpetrada, dá-se o encontro. Vê Soledad ser jogada no chão pelo prometido que para se salvar, fugindo do fogo, quer aliviar a carga do cavalo sobre a qual a carregava e, assim, atenta contra a vida de quem iria desposar.
Pablo Luna a levanta nos braços e a cavalo, se afasta do fogo e da fumaça, adentrando-se nos lugares selváticos como numa noite eterna de solidão e de mistério.
Verdadeiro mestre da narrativa,
Acevedo Diaz, o criador do romance uruguaio, se permite dar por findo o relato
sem dizer de felicidades e desvarios amorosos.
Parco no dizer das emoções
de Pablo Luna, elas no entanto se mostram tão fortes como as de Soledad sobre
as quais o narrador se detém a partir desse primeiro olhar não correspondido,
num profundo estudo da alma feminina.E perfeita a discrição de cada gesto,
pleno de espontaneidade e de alegria, que aproxima os amantes nesse ritual de
amor jovem e rude, expresso, pela primeira vez, sem peias.
Publicado em 1894, Soledad é uma das grandes criações da
Literatura do Continente, seja pela sua qualidade estética, seja pela extrema
sutileza com que se aproxima da alma humana.E os anos que passaram não lhe
diluíram as virtudes nem tiraram o encanto dessa história de amor, verdadeira
expressão luminosa de um sentir sem culpas e sem leis.

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