domingo, 9 de fevereiro de 1997

A fé a perspicácia

          O pequeno livro foi escrito para crianças. Lendas oriundas do folclore indo-americano, escolhidas entre aquelas onde predomina, diz o autor, a peripécia heróica, a aventura, o estoicismo unidos a nobres sentimentos de liberdade, de amor ou de justiça. E, escolhidas entre aquelas que mais expressam a idiossincrasia popular, as superstições.

          No que se refere às lendas, Serafin J. García deseja dar a conhecer a graça e a candura e a visão otimista de vida nelas contidas. Quanto às superstições, levar o leitor a desprezá-las pois, no seu entender, se nutrem de uma descabelada ignorância.Claramente expressos esses objetivos didáticos nas suas palavras introdutórias a Leyendas y supersticiones (Montevidéu, 1968), eles estão presentes em cada lenda e em cada breve relato que ilustra a superstição.

          De extremo encanto são as lendas. Narram a origem da borboleta, de pássaros, de árvores, de flores, do milho, tendo como denominador comum a trajetória de um sofrimento para a alegria. Da donzela sacrificada aos deuses, o surgimento do milho; da morte do pássaro, o aparecimento de uma flor na árvore; de um amor fidelíssimo, o pássaro que só pode existir junto com seu companheiro.

          Com algo de curioso num ritual sempre simplório, as superstições: modo de curar bicheira ou de curar doenças, de evitar um mau olhado, de estabelecer uma união indissolúvel com o homem amado, de se livrar de situações desastrosas.São breves relatos em que à figura do supersticioso se opõe a de alguém que tenta discutir as certezas. E, evidentemente, a figura da curandeira, da benzedeira, do “bruxo”. Nas várias histórias, a mesma estrutura: uma dificuldade a enfrentar, a busca da solução, a solução, a opinião abalizada que se lhe segue.

          O supersticioso, quase sempre, uma mulher, manda buscar a pessoa, tida como possuidora de poderes de cura. Assim, dona Ciriaca que aparece fumando um cigarro de palha e pigarreando como homem; assim, dona Rudecinda. Segue-se a submissão ao ritual – galhos de arruda, carvões incandescentes, sinais da cruz, frases cabalísticas – e, depois de três dias, a comprovação da cura.

          E, também, existem os rituais de prevenção para exorcizar a desgraça, evitar mordedura de cobra, garantir a fidelidade do ser amado ou solicitar proteção. Nesses casos, o supersticioso leva a coruja a fazer o caminho inverso daquele que havia feito no intuito de conjurar a desgraça que a sua passagem anunciara; ou usa amuletos, ou oferece a criança para ser afilhada da Lua e  obter dela a proteção.

          Num dos relatos, a crença de que a cura da bicheira está na prática de virar ao contrário a pisada do animal doente é considerada um despropósito pelo dono da fazenda, homem culto que havia feito estudos universitários.

          Noutro, o veterinário que fora atender um animal doente, diante do medo expresso pelos peões quando percebem, na noite, um fogo fátuo, lhes dá a explicação científica do fenômeno, fazendo com que se tranquilizem.
Em quase todos, a fé cabe às mulheres enquanto aos homens pertence a linguagem da lucidez, traduzindo a descrença.

          Em cada caso, se inscreve a voz do narrador, irônica, trocista, explicando o que, realmente, aconteceu para que a desejada solução se cumprisse, no intento de negar o “milagre”. E, no desejo de erradicar as superstições, Serafin J. García busca o respaldo dos doutos ou procura convencer pelo descrédito.

          E, embora talvez tenha tido razão e embora talvez a época em que escreveu o tivesse permitido – o livro foi publicado há quase trinta anos atrás – é um tanto singular a sua insistência em mostrar como crédula e ingênua, a mulher que não apenas acredita cegamente na curandeira ou na benzedeira e nos seus rituais, como repudia os argumentos da perspicácia masculina.

          Então, o universo que Serafin J. García faz nascer ao redor das práticas supersticiosas, se povoa de lúcidos (os homens e os homens estudados) e de crentes (as mulheres e os trabalhadores do campo) numa hierarquia que se delineia, com acerto ou não, extremamente preconceituosa.

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