domingo, 23 de fevereiro de 1997

Inimaginável paralelo

          No ano passado, a Mercado Aberto de Porto Alegre lançou os quatro primeiros títulos da série “Pequenas grandes obras” cujo objetivo é levar ao grande público textos representativos da obra de escritores de renome, no caso Charles Kiefer, Eric Nepomuceno, Simões Lopes Neto e Mempo Giardinelli.Um conto dá título ao volume que, embora pequeno nos seus quinze por dez e no seu quase meio centímetro de espessura, abriga quatro ou cinco relatos. Excetuando A mulher do professor, feito de dez narrativas, assim é para O elo perdido, O negro Bonifácio, A máquina de dar beijinhos.

           Cinco narrativas – a morte de um torcedor de futebol ao saborear, enfim, a vitória de seu time, a solidão de um escritor no quarto de hotel, o drama do inventor da máquina de dar beijinhos, o conselho do avô para o neto – fazem parte de A máquina de dar beijinhos, título um pouco risonho e que não anuncia o tema do primeiro relato a se inscrever no livro: “Tempo de colheita”.

           Esse conto foi dedicado a Erskine Caldwell numa confissão de dívida: a influência que Mempo Giardinelli reconhece ter sofrido e tenta explicar pelo “parentesco” entre sua terra e a do escritor norte-americano.Os infinitos e insondáveis mistérios desta América de que fala o escritor argentino é o inexplicável confronto entre a terra produtiva e rica e o homem condenado a estar de braços cruzados e pobre.Juan Gomez, o personagem de “Tempo de colheita” com um pouco de pão na sacola e a pé, perambula em busca de trabalho na colheita do algodão num Chaco que parecia vestir-se de branco.Ele é pacífico e só quer ganhar umas moedas mas, as negativas se acrescentam – cada vez se plantava menos, cada vez havia menos terras cultivadas, cada vez havia menos para colher, cada vez havia menos trabalho e menos dinheiro – e lhe é negado até o desejo de querer.

            Mempo Giardinelli, autor de Luna Caliente, romance já publicado no Brasil, nesse conto faz pensar naqueles norte-americanos pobres de Estrada do tabaco ao traçar essa trajetória que o medo e a intolerância tornam irremediavelmente trágica para Juan Gomez: na solidão e no desespero, no caminho que chega ao fim, inglório, se faz o seu destino de marginal.Então, Mempo Giardinelli, o argentino se lembra de Erskine Caldwell.Um e outro não deixam esquecer o que parece, muitas vezes eludido ou ignorado: que no Continente, mesmo aquele ao norte do Rio Grande, nem todos podem escapar da miséria.

domingo, 16 de fevereiro de 1997

O idílio

          Há páginas cruéis como o ataque dos cães selvagens à velha andrajosa que tentara disputar-lhes a carne da ovelha morta. Atrevera-se a bater-lhes com o punho. Então os cães enfurecidos na defesa de seus despojos, a morderam, a arrastaram triturando-a com seus colmilhos e tornando-a farrapos, precipitando por fim seu corpo miserável no fundo do barranco. Ou, outras, impressionantes, como a do incêndio se alastrando pelo campo, devastando tudo. Ainda, as que descrevem, com rara beleza, a paisagem do campo com toda a vida que nela pulula e as que descrevem a tosquia das ovelhas. Também, aquelas que mostram a profundidade dos sentimentos ou a valentia dos homens.

          E, as que relatam o amor entre Soledad e Pablo Luna. Ela, filha de fazendeiro e prometida a um velho amigo de seu pai; ele, o gaúcho sem raízes, livre e solitário.


          Primorosamente descritos no seu aspecto físico, belos e jovens, o amor que irá enredá-los é mostrado em quatro tempos, quatro definitivos encontros. No primeiro, é apenas um olhar: Soledad o observou com a cabeça baixa e as pupilas fixas, um pouco de soslaio, virada, imóvel; ele olhou para ela com ar melancólico, de uma forma vaga e fria. Balbuciou um cumprimento, levando a mão à aba do chapéu e Soledad apenas moveu a cabeça. Mas, seguiu-o com o olhar, admirou-lhe a figura e, pela primeira vez, pensou naquela de seu prometido. Uma comparação que a deixou um pouco inquieta, como inquieta ficou por não ter recebido um segundo ou um terceiro olhar.

          Num outro dia, ao vê-lo passar ao longe, é presa de emoções desconhecidas que a fazem chorar; murmurar que ele não é mais do que os outros que sempre perceberam, encantados, a sua presença; e que o irá seduzir.

          Na verdade, era ela quem já estava rendida. Ao vê-lo próximo, estremece, fica pálida e sem forças para encará-lo. E se afasta em idas e vindas que o buscam tanto como ele a ela. Um preparativo do jogo de sedução que será interrompido pelo pai de Soledad, mais uma vez a enxotá-lo de suas terras.

          O terceiro encontro é como que marcado. Soledad se distancia das casas e em pleno campo ele se aproxima dela. Falam-se pela primeira vez, se tocam e se acariciam. E, outra vez são surpreendidos pelo pai e, outra vez, Pablo Luna é expulso, agredido e humilhado.

           No meio do fogo que ele próprio ateara na vingança perpetrada, dá-se o encontro. Vê Soledad ser jogada no chão pelo prometido que para se salvar, fugindo do fogo, quer aliviar a carga do cavalo sobre a qual a carregava e, assim, atenta contra a vida de quem iria desposar.

           Pablo Luna a levanta nos braços e a cavalo, se afasta do fogo e da fumaça, adentrando-se nos lugares selváticos como numa noite eterna de solidão e de mistério.

           Verdadeiro mestre da narrativa, Acevedo Diaz, o criador do romance uruguaio, se permite dar por findo o relato sem dizer de felicidades e desvarios amorosos.

           Parco no dizer das emoções de Pablo Luna, elas no entanto se mostram tão fortes como as de Soledad sobre as quais o narrador se detém a partir desse primeiro olhar não correspondido, num profundo estudo da alma feminina.E perfeita a discrição de cada gesto, pleno de espontaneidade e de alegria, que aproxima os amantes nesse ritual de amor jovem e rude, expresso, pela primeira vez, sem peias.

Publicado em 1894, Soledad é uma das grandes criações da Literatura do Continente, seja pela sua qualidade estética, seja pela extrema sutileza com que se aproxima da alma humana.E os anos que passaram não lhe diluíram as virtudes nem tiraram o encanto dessa história de amor, verdadeira expressão luminosa de um sentir sem culpas e sem leis.

domingo, 9 de fevereiro de 1997

A fé a perspicácia

          O pequeno livro foi escrito para crianças. Lendas oriundas do folclore indo-americano, escolhidas entre aquelas onde predomina, diz o autor, a peripécia heróica, a aventura, o estoicismo unidos a nobres sentimentos de liberdade, de amor ou de justiça. E, escolhidas entre aquelas que mais expressam a idiossincrasia popular, as superstições.

          No que se refere às lendas, Serafin J. García deseja dar a conhecer a graça e a candura e a visão otimista de vida nelas contidas. Quanto às superstições, levar o leitor a desprezá-las pois, no seu entender, se nutrem de uma descabelada ignorância.Claramente expressos esses objetivos didáticos nas suas palavras introdutórias a Leyendas y supersticiones (Montevidéu, 1968), eles estão presentes em cada lenda e em cada breve relato que ilustra a superstição.

          De extremo encanto são as lendas. Narram a origem da borboleta, de pássaros, de árvores, de flores, do milho, tendo como denominador comum a trajetória de um sofrimento para a alegria. Da donzela sacrificada aos deuses, o surgimento do milho; da morte do pássaro, o aparecimento de uma flor na árvore; de um amor fidelíssimo, o pássaro que só pode existir junto com seu companheiro.

          Com algo de curioso num ritual sempre simplório, as superstições: modo de curar bicheira ou de curar doenças, de evitar um mau olhado, de estabelecer uma união indissolúvel com o homem amado, de se livrar de situações desastrosas.São breves relatos em que à figura do supersticioso se opõe a de alguém que tenta discutir as certezas. E, evidentemente, a figura da curandeira, da benzedeira, do “bruxo”. Nas várias histórias, a mesma estrutura: uma dificuldade a enfrentar, a busca da solução, a solução, a opinião abalizada que se lhe segue.

          O supersticioso, quase sempre, uma mulher, manda buscar a pessoa, tida como possuidora de poderes de cura. Assim, dona Ciriaca que aparece fumando um cigarro de palha e pigarreando como homem; assim, dona Rudecinda. Segue-se a submissão ao ritual – galhos de arruda, carvões incandescentes, sinais da cruz, frases cabalísticas – e, depois de três dias, a comprovação da cura.

          E, também, existem os rituais de prevenção para exorcizar a desgraça, evitar mordedura de cobra, garantir a fidelidade do ser amado ou solicitar proteção. Nesses casos, o supersticioso leva a coruja a fazer o caminho inverso daquele que havia feito no intuito de conjurar a desgraça que a sua passagem anunciara; ou usa amuletos, ou oferece a criança para ser afilhada da Lua e  obter dela a proteção.

          Num dos relatos, a crença de que a cura da bicheira está na prática de virar ao contrário a pisada do animal doente é considerada um despropósito pelo dono da fazenda, homem culto que havia feito estudos universitários.

          Noutro, o veterinário que fora atender um animal doente, diante do medo expresso pelos peões quando percebem, na noite, um fogo fátuo, lhes dá a explicação científica do fenômeno, fazendo com que se tranquilizem.
Em quase todos, a fé cabe às mulheres enquanto aos homens pertence a linguagem da lucidez, traduzindo a descrença.

          Em cada caso, se inscreve a voz do narrador, irônica, trocista, explicando o que, realmente, aconteceu para que a desejada solução se cumprisse, no intento de negar o “milagre”. E, no desejo de erradicar as superstições, Serafin J. García busca o respaldo dos doutos ou procura convencer pelo descrédito.

          E, embora talvez tenha tido razão e embora talvez a época em que escreveu o tivesse permitido – o livro foi publicado há quase trinta anos atrás – é um tanto singular a sua insistência em mostrar como crédula e ingênua, a mulher que não apenas acredita cegamente na curandeira ou na benzedeira e nos seus rituais, como repudia os argumentos da perspicácia masculina.

          Então, o universo que Serafin J. García faz nascer ao redor das práticas supersticiosas, se povoa de lúcidos (os homens e os homens estudados) e de crentes (as mulheres e os trabalhadores do campo) numa hierarquia que se delineia, com acerto ou não, extremamente preconceituosa.

domingo, 2 de fevereiro de 1997

Ode às coisas

          Navegaciones y regresos, quarto volume das Odas elementales, foi publicado, pela primeira vez, em 1959. É constituído de odes e de poemas que entre elas se intercalam. Um todo, cuja temática, sabiamente, foi dito, é aquela das coisas simples. Poderia parecer que nada é mais chão do que uma cadeira, um prato, uma cama, um sino, uma âncora, um gato ou um cão. Mas, a primeira palavra do poema, amo (intensificada pelo adjetivo louca e pelo advérbio loucamente), estabelecendo uma inequívoca relação afetiva com os objetos cotidianos e díspares que passam a ser enumerados – xícaras, sopeiras, chapéu, dedal, pratos, esporas e outros tantos – os transformam em algo inesperadamente cheio de luz e de vida.Algo que se enriquece quando Pablo Neruda fala de sua ligação com as mãos do homem (Ai, quantas / coisas puras / o homem / construiu) e com a lã, a madeira, o cristal, as cordas, matéria que absorve a presença dos dedos que a trabalharam.

Pela terceira vez, inicia a estrofe reiterando a expressão amo todas as coisas. Torna a enumerar objetos – e algo de um momento vivido se insinua – antes de, na estrofe seguinte, dizer desse prazer do toque, do olhar que explicará, talvez, essa afinidade que teve com todas essas coisas que o leva a confessar e foram para mim tão existentes / que viveram comigo meia vida / e morrerão comigo meia morte.

Em “Ode às coisas”, o lirismo surpreende como o de muitos outros poemas de Navegaciones y regresos por estar contido num sentir que, à primeira vista, está muito distante daqueles grandes sentimentos que tradicionalmente alimentam a poesia.O poeta usa um verbo, amar, cujo objeto – uma tesoura, um dedal, um leque – pode parecer, de tal sentimento por ele expresso, indigno. No entanto, fruto de um trabalho, a proximidade com o humano lhe dará um sentido maior que irá se completar na estrofe seguinte quando é mencionado o companheirismo que, ao longo dos anos se instaura entre o poeta e esses seres inanimados.

São palavras sem mistérios e de uma voz que nelas entrelaça emoções, quem sabe inusuais, fazendo de “Ode às coisas” um poema de despojada beleza.