A Senhora veste de luto, tem
os cabelos presos e o coração perdido
entre acentos de exaltação e angústias.
Move-se num cenário antigo: móveis escuros, relógios de pêndulo, bibelôs,
quadros pastoris, a cristaleira, o centro de mesa de faiança, onde o ar está
impregnado do odor açucarado que exalam os pastéis de santa clara, os quindins
e os fios de ovos.
Ao Pleyel, a Senhora, por um
momento, suspende as mãos sobre as teclas, surpreendida pela voz do aguateiro
que, na praça ensolarada, apregoa o que vende.
A criada, dando-se conta de
seu enfado, dá ordens ao homem para que se retire dali e, obedecendo à Senhora,
lhe atira uma frágil moeda. O
aguateiro se cala e, na praça, continua à espreita de alguém que passe e lhe compre
água.
No Solar dos Leões, o piano
se cala e se inicia o ritual: a chegada das visitas, a hospitalidade fidalga,
os diálogos, a música que a Senhora, outra vez ao piano, faz elevar-se. Certamente,
os sons se escapam pela janela aberta, invadindo a praça como se houvesse uma
lei que tal liberdade permitisse.
Porque hostil é apenas o
ruído do exterior, perturbando o mundo fechado do Solar dos Leões, palacete a
imperar na praça da cidade mas, dela não suportando presenças.
Romance de paixões
condenadas e nefastas, Perversas
famílias (Porto Alegre, Mercado Aberto, 1992) se povoa de personagens que
mergulham na opulência. Como que apenas casuais, “os outros” que estão a seu
serviço, permitindo-lhes a vida de ócio.
Romance onde Luiz Antonio de
Assis Brasil cria um mundo de classes estanques. Por vezes, nele se instala uma
espécie de interrogação diluída numa cena brevíssima como a dessa tarde de
verão em que o “clamor” do aguateiro, para vender sua água, é um intruso que
rompe o equilíbrio das mãos sobre o teclado.



