domingo, 29 de dezembro de 1996

O intruso

 
          A Senhora veste de luto, tem os cabelos presos e o coração perdido entre acentos de exaltação e angústias.

          Move-se num cenário antigo: móveis escuros, relógios de pêndulo, bibelôs, quadros pastoris, a cristaleira, o centro de mesa de faiança, onde o ar está impregnado do odor açucarado que exalam os pastéis de santa clara, os quindins e os fios de ovos.

          Ao Pleyel, a Senhora, por um momento, suspende as mãos sobre as teclas, surpreendida pela voz do aguateiro que, na praça ensolarada, apregoa o que vende.

          A criada, dando-se conta de seu enfado, dá ordens ao homem para que se retire dali e, obedecendo à Senhora, lhe atira uma frágil moeda. O aguateiro se cala e, na praça, continua à espreita de alguém que passe e lhe compre água.

          No Solar dos Leões, o piano se cala e se inicia o ritual: a chegada das visitas, a hospitalidade fidalga, os diálogos, a música que a Senhora, outra vez ao piano, faz elevar-se. Certamente, os sons se escapam pela janela aberta, invadindo a praça como se houvesse uma lei que tal liberdade permitisse.

          Porque hostil é apenas o ruído do exterior, perturbando o mundo fechado do Solar dos Leões, palacete a imperar na praça da cidade mas, dela não suportando presenças.

          Romance de paixões condenadas e nefastas, Perversas famílias (Porto Alegre, Mercado Aberto, 1992) se povoa de personagens que mergulham na opulência. Como que apenas casuais, “os outros” que estão a seu serviço, permitindo-lhes a vida de ócio.

          Romance onde Luiz Antonio de Assis Brasil cria um mundo de classes estanques. Por vezes, nele se instala uma espécie de interrogação diluída numa cena brevíssima como a dessa tarde de verão em que o “clamor” do aguateiro, para vender sua água, é um intruso que rompe o equilíbrio das mãos sobre o teclado.

domingo, 22 de dezembro de 1996

Dois mundos

          Houve um momento, na década de 70, em que a busca de um novo instrumento para o estudo do texto literário levou à análise semântica aplicada à descrição da sociedade.

          No seu trabalho publicado na revista Littérature (Paris, 1971), “La description littéraire des structures sociales: essai d’une approche sémantique”, Ulrich Ricken mostra como o código de classificação social não se reduz às palavras como “pobre”, “rico”, “burguês” mas é feito, também, de expressões como “bem vestido”, “maltrapilho”, “faminto”, “o que janta bem”, etc.Num conjunto vocabular assim constituído, os termos referentes aos diversos critérios de classificação social formam sub-códigos que, respectivamente, cobrem zonas equivalentes de diferenciação sócio-hierárquicas.

          No seu romance Perversas famílias (Porto Alegre, Mercado Aberto, 1992), Luiz Antonio de Assis Brasil narra as conflitantes relações de uma abastada família do sul do Brasil que vive num castelo,  cenário de luxo e de requinte.  Um requinte ou um pseudo requinte que é estendido à mesa.
 
          Como era de uso na corte austríaca, de acordo com a baronesa que viera casar-se no Brasil, no castelo do pampa o cardápio mudava de acordo com o idioma permitido nesse dia. Nas terças e sextas feiras, porém, era dada a licença para falar português à mesa e não sendo desdenhada a cultura popular, eram servidos os “gordurosos quartos de ovelha” e o guisado com abóbora, alternando-se com os vol au vent e com os puddings.

          Igualmente, só era permitido apresentar-se com um traje adequado e, assim, Páris, o neto recém chegado, primeiro teve que passar pelas mãos do alfaiate para, então, poder jantar com a família .Recluído no seu quarto, levam-lhe arroz com feijão e um peito de frango numa simplicidade alheia ao que era servido para a família, mas encontrada na fazenda distante onde se comia pirão com um molho graxento ou rabada com batatas; ou, num hotel de cidade pequena em que o cardápio era composto de carne assada, aipim duro e feijão com charque.

          Uma dicotomia que se delineia com clareza: no castelo ou no palacete da cidade servem chocolate, torradas, leite com bolachinha Maria, bolo de milho e arroz doce, docinhos em travessa de porcelana, compotas, fios de ovos, ambrosias, bem casados, refrescos, café, vinho do Porto. Baixelas são usadas e cristais e guardanapos com monogramas presos em argolas de prata, candelabros e um serviço inglês – Wood & Sons Ltd, Burslem – para o cotidiano em que rosas pequenas e margaridas brancas e uma borda fininha e negra marcavam cada peça: a sopeira, as legumeiras, as travessas.Aos domingos, o almoço era servido numa louça da Companhia das Índias onde borboletas adejavam, coloridas, num campo rouge de fer sobre dourado perto do brasão da família a que a louça pertencera antes de ser vendida, num leilão, em Lisboa.

          Fortuna e vida fácil   convivendo com a pobreza e o trabalho. O dono do castelo a se rodear de luxo estrangeiro e de iguarias no sua mesa.  Na cozinha, no pátio da escola pública, num vagão de trem, o cocheiro, a menina pobre, os que viajam nos vagões comuns dos trens , comem mortadela com pão, “mata-fome”, galinha com farofa.  Ainda que em número pequeno e, talvez, até mesmo por isso, tais expressões ajudam a compor o quadro desse mundo de opulência e de ostentação de que é feito o romance de Luiz Antonio de Assis Brasil.

domingo, 15 de dezembro de 1996

Leontina das Dores


Buçal de prata foi publicado pela Editora Tchê de Porto Alegre em 1981. No dizer dos editores, é um livro de versos que se antecipa, mostrando caminhos: uma recriação poética dos motivos gauchescos.

Andamentos poéticos para toadas e milongas, chamou o autor, Luiz Coronel, a  seu trabalho de dez anos, feito para ser musicado. Mas, independentemente da complementação musical que tenham essas letras, um grande valor poético as alimenta.

Numa temática tradicional do gênero, que se encrava no universo gauchesco, se alinham os elementos exteriores, desenhando esse universo feito, sobretudo, de uma visão de mundo onde prevalece um extremo amor próprio e onde se mostram os ideais de coragem e de liberdade.

No poema “As pilchas” e “Botas de garrão” há todo um léxico da indumentária (esporas, vincha, guaiaca, pala, barbicacho, bombacha, lenço colorado, botas de garrão) que se alia a uma expressão do eu, marcada por possessivos e por verbos na primeira pessoa que vai delineando o tipo altaneiro que estará presente nos demais poemas. Seja quando fala de sofrimentos (Meus pesares e lamentos / levo a outras invernias / dou canto às ventanias / com meus penares me agüento), seja quando fala de seus versos (Pajando sou galo de rinha / e a minha rima é uma faca / que se escapa da bainha), seja quando fala de valentias (Se troveja gritarias / já relampeja minha adaga).

E, entre esses versos, emerge uma voz de mulher, expressando temas inusitados num gênero cuja expressão foi sempre masculina. Versos que se emaranham em verdadeiros achados estilísticos e numa bela simplicidade narrativa para falar do fado, do abandono e da espera submissa nos cinco poemas que compreendem os “Cantos de Leontina das Dores”.

No primeiro, Leontina das Dores se apresenta para dizer da solidão da menina que foi e da solidão que dura para sempre. No segundo, fala das flores, querendo dizer outras coisas: o amor que passou, a condenação à espera amorosa. No  terceiro, é uma expressão de mulher à espera do filho e as ilusões que, sobre esse filho, ela tece. No quarto poema, os versos dizem de amor preterido e de solidão. E no quinto, ela pede ao filho que não vá embora: Meu filho, não olhes pra estrada;meu filho, não olhes pro rio. Lembra para ele que, ao obedecer ao desejo de partir, irá trocar  a carne no prato, a brisa dos eucaliptos, a casa na coxilha por uma marmita fria, pelas fuligens no ar, pelo casebre. A  essas razões objetivas se misturam conceitos enovelados na natureza: Aprende a lição das árvores / ganham o céu pelas folhagens / e o chão pelas raízes diz a última estrofe do poema, reafirmando que a aflição de horários, a angústia dos salários  se contrapõe à vida tranquila de arroio, pesca, mate amargo, sesta, china e baio para montar.

Nos campos o latifúndio. Os homens abandonando o pago. Luiz Coronel acompanha os novos tempos e, nos seus versos, fica evidente que na conhecida trilha da lírica gauchesca ainda há caminhos a palmilhar.

E o poeta a eles não se nega.

domingo, 8 de dezembro de 1996

De pernilongos

             É uma Arca de Noé cheia de palavras: mini-contos, apólogos, fábulas, ou simples historinhas de animais fazem parte do livro de David Sánchez Juliao.

Publicado em 1976, El arca de Noé torna a aparecer em Una década (1973-1983), publicado pela Playa y Janes da Colômbia e que reúne vários livros de quem é um romancista, um comunicador, um jornalista, um sociólogo, um catedrático e um educador popular.

O material de que é feito El Arca de Noé foi encontrado ou já escrito ou simplesmente David Sánchez Juliao transcreveu do que lhe foi contado. Também, ou principalmente, o que fez foi dar rédea solta a sua imaginação. E a tal ponto ele diz, que sobre as teclas da máquina via animaizinhos dançando e fugindo do jogo de seus dedos.

No texto, lá estão – o avestruz, a tartaruga, a aranha, a abelha, a baleia, a cegonha, o coelho, o papagaio, a borboleta – dizendo coisas sempre acertadas.

Não é sem razão que David Sánchez Juliao antes de começar suas histórias, recorda a La Fontaine  quando diz servir-se dos irracionais para instruir os humanos.E, assim, nessa Arca de Noé cabe todo um compêndio de ensinamentos e de constatações. Basta que os homens de Continente os saibam entender.Como o caso do pernilongo, por exemplo. Só ele o gringo não podia vencer: Quando no começo do século os gringos começaram a construir o Canal do Panamá, uma invasão de pernilongos dizimou bandos de operários estrangeiros. Desde então, o pernilongo se converteu em herói latino-americano. Levantaram para ele estátuas de aguilhão inteiro, sua silhueta foi impressa em selos de correio, com seu nome foram batizadas livrarias, jornais e revistas e foi introduzido com honra no índice da História Natural. Quando o gringo voltou, meio século depois, com a intenção de abrir mais canais, submeter mais povos, corromper mais funcionários e controlar mais economias, os pernilongos atacaram de novo, convencidos de sua prepotência, mas de forma com que sempre tinham feito: em nuvens negras, em enxames dispersos, em grupinhos isolados. E lhes foi mal; porque enquanto eles tinham se dedicado a dormir o sono das estátuas, os selos e a história, os gringos haviam se dedicado a inventar o inseticida-spray. E perderam.

domingo, 1 de dezembro de 1996

Promessas e avisos

          “Nosotros habíamos manietado la lástima” é um dos contos de David Sánchez Juliao publicado no livro Una década, 1973-1983 (Plaza y Janes, Colômbia). Inicia com a frase Sim, nós o matamos e a voz narrativa não abandonará a primeira pessoa do plural, esse nós que toma decisões e que é responsável pelos atos praticados.

          O desejo de todos teria sido fuzilar o indivíduo. Mas para que pudesse morrer com a cara intacta, o enforcaram. E como o fizeram se constitui a primeira parte do relato: a casualidade que levou a vítima a chegar onde eles estavam (porque nenhum deles o procurou) e terem sempre uma corda à mão o que lhes facilitou a tarefa.

          Primeiro, experimentaram o galho da árvore à beira do rio e sem a menor prática – nunca haviam enforcado ninguém antes – sem o menor susto ou nervosismo fizeram o nó e o puseram sobre o cavalo. Com uma varinha o espantaram e o animal, disparando, deixou no ar o corpo a se balançar.

          Antes desse seu final,ele havia chorado e havia se exclamado, pedindo piedade. Mas eles (não se sabe quantos), permaneceram impassíveis, a piedade manietada porque falara em sofrimento e isso eles não suportaram, pois de sofrimentos entendiam eles.

          Na segunda parte do conto é esclarecido o porquê da condenação: No começo ele vinha por aqui como todos vêm. Muito de vez em quando nos três primeiros anos de governo, mas a medida que se aproximam as eleições, as visitas vão se aproximando tanto uma da outra que no fim estão por aqui um dia sim e um dia não.

          São os candidatos que tudo e, em grande, prometem. A esse em que (embora sendo gatos escaldados) acreditaram – porque parecia sincero e os convencera o suficiente para levá-los a desprezar o ônibus do adversário e a não se importar em perder os doces e o rum e o dinheiro distribuídos no dia da eleição – eles avisaram que se não cumprisse o prometido seria morto.

          O candidato achava graça e continuava prometendo e foi muito o dinheiro que arrancou deles para comprar votos em outros lugares. E ganhou as eleições. E esqueceu as promessas.

          Se a elas tivesse sido fiel, teria feito do lugar o mais belo da Colômbia porque não ia ficar criança com vermes, nem mulher com dente cariado, nem homem sem terra própria para manter a família. A escola seria grande e com muitos professores para que as crianças e os velhos aprendessem a escrever, a ler e a falar bonito como ele.

          Mas, como todos os outros candidatos ele enganou a todos. Quatro anos depois voltou para tudo recomeçar, prometendo as mesmas coisas sem ter acreditado nos avisos que lhe haviam feito. Então foi muito tarde para se dar conta que a palavra para alguns é coisa séria. E por isso morreu.

          No conto não é dito seu nome. Tampouco o daqueles que o enforcaram, dominando uma, talvez insidiosa piedade. E do anonimato se ergue a ação. E é ela que interessa, pois os homens são sempre os mesmos.

          Numa ditadura, esse conto de David Sánchez Juliao seria (sem dúvida) de leitura proibida; nas democracias do Continente, com certeza, uma lamentável catarse.