domingo, 4 de agosto de 1996

Zonas de sombra


Sendo a função do narrador a de informar sobre a história que relata, diz Oscar Tacca no seu livro Las voces de la novela (Madrid, Gredos, 1973) não lhe será permitido falseá-la ou dela duvidar. Sim, escolher ou mensurar a informação que deseja dar. Então, todo romance é feito de um jogo de informações.

Parciais elas serão se a voz responsável pelo relato for a de um narrador/personagem cujo conhecimento dos fatos será sempre parcial. E, é evidente, que tal não acontecerá se a voz pertencer aquele possuidor de toda a informação sobre o que narra.

Na série Um castelo no pampa formada de três volumes, Perversas famílias, Pedra da memória e Os senhores do século, romance de múltiplas vozes (a primeira pessoa dos monólogos de Proteu, Selene e Páris, a segunda pessoa que se dirige à Plácida e a terceira pessoa onisciente), a informação, por vezes, é negada. Ou porque o narrador/personagem apenas possui um conhecimento reduzido ou porque o narrador de terceira pessoa irá desconhecer ou omitir esse conhecimento.

Como no episódio amoroso que envolve o Doutor Olympio e Urânia.

Importante vulto da sociedade local tanto no que se refere à fortuna pessoal como a sua posição de líder político, o Doutor Olympio se torna amante de Urânia, jovem e rica viúva. A relação que se estabelece entre ambos parece ter, além das convenções sociais, também desafiado os anos. É explícito no romance esse tempo transcorrido. Mas, nos três volumes da série, são poucas as informações sobre essa relação a partir do momento em que eles se vêem a sós. Frente ao palacete, com a chave na mão, ela o convidou para entrar. Um breve espaço em branco na página e a informação que batiam cinco horas no carrilhão da igreja quando ele saía do palacete fazem com que o verdadeiro momento da conquista – houvera olhares, houvera algumas palavras trocadas – seja eludido.

Eludido foi, igualmente, o que deve ter sido um longo, profundo e sincero diálogo entre os dois. Muitos anos mais tarde, já doente, ele a manda chamar. Urânia chega à noite, e por algumas horas eles conversam. A criada aguarda na sala junto com o amigo confidente que providenciara a visita. Tempos depois, ele perguntará ao Doutor Olympio o quê eles se disseram naquela noite. O Doutor Olympio não lhe responde.

Ainda, ao lhe ser anunciada, por carta, a morte de Urânia, o médico que o acompanhara a Buenos Aires onde se encontram, por excesso de zelo em relação a sua saúde, abre a carta e, em voz alta, lê o que nela está escrito. Como somente algumas poucas frases interessam a quem as escuta, apenas essas aparecem no texto do romance. As outras, as quais apenas o médico tem acesso, permanecem desconhecidas do leitor.

A carência de informação no episódio Doutro Olympio/Urânia se estabelece em três níveis diferentes. No primeiro, como se o encontro amoroso entre os amantes, só aos dois dissesse respeito. O narrador a ele permaneceu alheio e, em conseqüência, o leitor.O diálogo mantido a portas fechadas tampouco foi dado a conhecer e tanto o seu amigo quanto o leitor dele nada ficaram sabendo.No terceiro caso, o narrador e o leitor, assim como o Doutor Olympio, só têm conhecimento de partes da carta que, no entanto, pode ser lida, na íntegra pelo médico que a tem nas mãos.

Na estrutura narrativa esse narrador que possui um conhecimento do que acontece menor do que o de seus personagens, estabelece com eles uma relação que, sob o ponto de vista da informação, Oscar Tacca chama de deficiente. No relato, essa deficiência ocasionará verdadeiras zonas de sombra.

Em Um castelo no pampa, essas zonas de sombra se inserem nas zonas de luz onde tudo é dito pelo narrador onisciente. E a narrativa se constrói, alternando-se o dizer com o silêncio.

Sem dúvida um sábio entrelaçamento em que esse recurso narrativo se alia a outros que as múltiplas vozes do romance fazem emergir mostrando o domínio da arte de narrar que faz desse romance de Luiz Antonio de Assis uma obra engenhosa e cativante.

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