domingo, 18 de agosto de 1996

Primeira página

            Primeiro, uma frase: -Cuidado! Ele é um provocador! Logo, a menção de quem a pronunciara, o homem alto de roupa encolhida e a informação de que se dissimulara entre os viajantes que entravam e saiam. Então, se esclarece que o lugar é um hotel e que naquele momento chegara um caminhão lotado em que vinham de Porto Alegre rapazes e moças, carregando instrumentos musicais. Eles cantavam e gritavam, antecipando o carnaval.

No parágrafo seguinte é mencionado o nome daquele a quem fora dirigido o conselho, Manivela, que olha para o que se passa a seu redor. Mas, na verdade, tornando a ouvir o aviso, lembrando os conceitos aprendidos numa reunião clandestina em que o rapaz do Rio de Janeiro que viera instruir falara muito sobre provocadores, policiais, delatores, espiões, todos perigosos para o movimento revolucionário. Nele, Manivela não tinha interesse e nem queria ter nada em comum com os que a ele pertenciam. E não lhe escapara a coisa em relação a Norberto, o eventual companheiro de viagem. Apenas não pensara no perigo que de sua companhia pudesse advir. E pretende dar uma boa corrida no provocador, lembrando-se do ar pedante do instrutor a dizer que tal conduta está errada. Como se fosse obrigado a resolver esses casos à maneira deles, segundo uma técnica revolucionária...

Construído em diferentes níveis temporais – o presente em que a frase é pronunciada, o passado em que sucedera o episódio com Norberto e outro passado, mais remoto, em que participara da reunião clandestina – esse breve texto é feito da frase grifada, de rápidas informações sobre o ambiente e, sobretudo, daquilo que passa pela cabeça de Manivela e de suas sérias intenções de repudiar o provocador.

Na verdade, um texto que se antecipa à narrativa lineal do episódio, síntese do que será relatado mais adiante em Desolação, o terceiro romance de Dyonélio Machado, publicado em 1944 pela José Olympio e cuja segunda edição é de 1981 pela Editora Moderna.

Porque a partir dessa frase Cuidado! Ele é um provocador!, Manivela não mais se liberta da história: ter lido panfletos subversivos, ter participado de uma reunião clandestina, mostrado interesse pelas palavras do provocador, ter viajado em companhia de um militante e, em conseqüência disso tudo, imaginar que está sendo observado pela polícia ou, verdadeiramente, estar sendo observado pela polícia. E, ainda, ganhar de presente livros politicamente comprometedores.

Desolação é mais do que o relato de cotidianos episódios feitos da dificuldade em consertar um velho e pequeno caminhão para poder seguir viagem como talvez possa parecer. É o drama que vive Manivela nas suas angústias e nos seus medos da repressão, nas suas emergentes dúvidas sobre as verdades entrevistas nas palavras do militante.

É muito claro nesse parágrafo que se segue á frase inicial do romance, quando  diz da chegada dos novos hóspedes ao hotel, a alienação que os domina na alegria da música e do carnaval próximo que, se por um lado, envolve as demais pessoas do hotel, por outro, mostra o quanto estão distantes de tudo o que não seja aquele momento de euforia.

Logo, também, claramente se esboça esse jogo que irá envolver Manivela e seus reais ou pretensos perseguidores, armado no micro universo de Águas Claras – metáfora de um espaço nacional – que tanto ignora os caminhos do movimento revolucionário como a trajetória daqueles que o querem impedir.

Um breve espaço em branco, como que uma pequena pausa, separa este rápido texto que dá início ao romance, do relato que, só então, efetivamente se inicia.E guiado por mão de um mestre: narra uma história com recursos romanescos que permitem expressar muito mais do  que parece estar explícito na narrativa,

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