domingo, 11 de agosto de 1996

O progresso

            Manivela acha que houve “progresso”. A terra, que não estava dando nada, agora está coberta de uma grande lavoura de cana. Ao redor, o engenho e a fábrica fazendo progredir a região. Um verdadeiro bem que acontece a custa da pequena trajetória do sitiante do litoral: ele vende sua porção de terra porque não pode explorá-la; com o dinheiro, compra uma carreta e uma junta de bois, querendo, com isto, ganhar o seu sustento. Mas, a voracidade dos estômagos e voragem grande também das doenças o leva à venda da carreta e dos animais. E ei-lo despojado de tudo.

Manivela percebe que há um bem e que há um mal nesse processo, não entende, porém, como isso é possível. Sabe que certamente foi o destino do praieiro do Quintão: franzino, de pequena estatura, pernas parecendo de guri. Como que em acorde com o rancho de terra batida em que mora e com as árvores ralas e raquíticas que a rodeiam no descampado à beira mar. Como esse seu pobre ofício de conduzir no verão os veranistas através da areia para as praias.

Viera ali erguer o rancho, aproveitando as sobras de um outro que existira, para um viver cheio de pobreza, ignorado nesse áspero destino por um governo que diz estar tomando as medidas necessárias mas, atento, apenas, aos movimentos de oposição.

No romance Desolação (1944) de Dyonélio Machado, esse praieiro que vive no meio do vento e da areia, sem meios para tratar da filha doente ou sem meios para o que quer que seja, é um personagem anônimo e efêmero. Presta serviços a Manivela e a seus companheiros – guardando o caminhãozinho em que viajam enquanto estão na praia, proporcionando-lhes uma parca refeição quando regressam – e desaparece do relato como se a sua função tivesse se esgotado.

Na verdade, ela se prolonga. Ao se constituir o caso real que ilustra para Manivela o arrazoado do Dr. Matos, aquele quadro simples e vivo que ele traça sobre a venda das pequenas propriedades litorâneas: uma calamidade. E, continua, explicando: É claro: muitos sitiantes supõem estar fazendo um bom negócio. Sentem suas terras disputadas por empresas progressistas, que resolveram realizar a exploração capitalista de certos produtos da região. A cana de açúcar, por exemplo. Mas o que estão na verdade cavando é a sua própria ruína. Enquanto possuíam a terra, mesmo não possuindo mais nada, ainda tinham tudo.

No silêncio e na apreensão que se seguem as suas palavras, surge a pergunta de como remediar tal situação. O Dr. Matos não responde. Deve, no entanto, conhecer a resposta e muito bem porque logo será preso pela repressão.

É também ele um personagem efêmero cujos passos, aparentemente, mal se cruzam com os de Manivela e seus companheiros, figuras principais da narrativa. Nela, tanto como o praieiro, ele torna presente algo do país que se quer esconder.

No romance de Dyonélio Machado cabem esse dizer e essa situação de fato. O praieiro, vítima do processo, ao desconhecê-lo se submete a sua prática. O Dr. Matos, ao desejar explicá-lo, para a ele se opor ou para levar à oposição, é calado pelos detentores do Poder.

No relato, ambos se constituem presenças breves e passageiras. No entanto, fixam, nitidamente, um momento do país que a ficção brasileira ignorou.

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