domingo, 23 de junho de 1996

As transgressoras:Selene

           Tem o nome da lua porque assim o quis a amante do pai antes mesmo de ter sido gerada. Mal nasceu, prematura, num ritual de parteiras, febre e luzes, é levada pelo médico abafada em panos para longe da mãe. Aos cinco anos brinca de bonecas no seu quarto cor de rosa. Mais tarde empurra um aro na Praça da Matriz quando Francisca Almada que será sua ama, ao saber-lhe o nome, Selene, lamenta que chamem assim a uma criança e, então, acha até natural que tendo tal nome, não distinga as cores.
          
           São rápidas referências sobre ela, esparsas no monólogo de seu filho e de seu irmão ou no texto onisciente que relata a vida do pai ou da ama. O que ela sente e como se orientou o seu destino aparece nos três monólogos de Perversas famílias (da série Um castelo no pampa de Luiz Antonio de Assis Brasil, Mercado Aberto, Porto Alegre, constituída, ainda de Pedra da memória e Os senhores do século) cujos títulos sintetizam as emoções e as razões que lhe nortearam as escolhas.
         
            No primeiro, “Mare Serenitatis”, recém chegada do internato, Selene, no seu quarto de cores abstratas para seu olhar de confuso daltonismo, relata o encontro com Hermes e os preparativos para o baile que tanto deseja ir. É um dizer pueril como as roupas que veste – saia xadres, blusa escura, casaquinho tricotado por ela mesma e soquetes – e triste diante da indiferença da mãe: Quando, quando, mamãe, você me enxergará?

           Queixa que se reforça no segundo monólogo, “Mare Humorum”: ela esqueceu-se de mim naquela escola de austeros códigos de honra e castidade e Pecado. E até o ponto de atribuir-lhe a responsabilidade de seus atos: Quem mandou minha mãe consentir no baile entregando-me de mão beijada a um homem tão jovem... Mas não ignora que foram as curiosidades de seus humores, a vertigem da champanha e a aceitação em se deixar seduzir que a levaram à noite de amor com o moço que apenas conhecera.

           Logo depois do “Mare Humorum”, um minúsculo sub-título, “Mare Crisium” dá conta da passagem do tempo – um ano passou – e da impossibilidade que tem de se fazer entender pelos pais nesse desejo de querer casar com o que fabrica cofres.

           No diálogo com o pai, que lhe ignora as palavras, num discurso inoportuno e exasperante onde o interlocutor, para ele, não tem a menor importância, Selene, no desespero de atrair-lhe a atenção, começa a se despir. O que o pai só irá perceber quando, nua, ela lhe estende os braços. Indignado, a esbofeteia e a expulsa do recinto e de sua vida.

           Infantil e insegura ela se mostra, ainda, no terceiro monólogo onde conta a visita que recebe, em sua casa, do pai de quem tanto almeja o perdão e o nascimento do filho. São as narrativas que pertencem ao capítulo introduzido pela expressão “Mare Fecunditatis” ao qual se acrescentam dois breves textos: “Oceanus Procellarum” e “Lacus Somnii”.

            Em “Oceanus Procellarum”, relata a chegada do pai no quarto de hospital apenas para determinar o nome do neto: Páris, o que morreu em Tróia com uma flecha no peito. O glacial desprezo que demonstra por todos e pela filha, certamente irá culminar na misteriosa doença que a acomete depois do parto: a loucura.

           Assim, no texto “Lacus Somnii”, se refere á visita da tia que lhe diz há quanto tempo. Não  se dá conta que não vive no Rio de Janeiro mas,  num país onde cai neve e entre freiras. Uma, lhe permite ver a Lua pela janela e recomenda que reze para Nossa Senhora de Lurdes.

           Seu tempo de rebeldia há muito já passara quando a tia intercede por ela, que vivia entre estranhos e do outro lado do mar. O pai já  velho   continuava insensível e a resposta que dá, selando-lhe o destino é terrível: Ficará para outra vida. Não tenho idade nem coragem para enfrentar mais nada.

            Reafirma, assim, a espantosa condenação de ostracismo que Selene, louca, não pode mensurar. Como jovem não mensurara que se casar só no civil e com alguém por ela escolhido era passível de um castigo tão grande e tão perene . A vontade do pai-juiz que não podia ou não devia ser discutida nesse começo de século de vozes masculinas imperou, impedindo-a de ser mulher, de ser mãe, de viver.

            Então Selene se refugiou na loucura.

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