domingo, 9 de junho de 1996

As transgressoras:Plácida

          Um castelo no pampa, de Luiz Antonio de Assis Brasil, é um romance constituído de três volumes: Perversas famílias, (1992), Pedra da memória, (1994) e Os senhores do século (1995) publicados pela Mercado Aberto de Porto Alegre. Uma longa narrativa a qual se acrescentam outras tantas que, abarcando quatro gerações, avança pelo tempo e se constitui um mundo de muitas vozes.

          Em Perversas famílias, a história de Plácida é contada pela voz de um narrador onisciente.

          Pálida, a cabeça pequena, magra como um galgo, dedos agudos de marfim opaco, aparece no romance já adulta, recém vinda da Suiça onde estivera onze anos, estudando. Dona de vários caixotes de livros e vítima constante de ataques de dispnéia, casa com João Felício Borges da Fonseca e Menezes, rico solteirão.

          Jovem como uma parreira na primavera tem um primeiro filho e o segundo três anos depois, quando enviuva. Rica, vive para esse filho menor que o mais velho já se fora estudar em São Paulo, para suas leituras de Byron, Musset, Lamartine e para seu piano. Guarda uma terna lembrança do marido e outra, dolorosa, nunca abandonada, do infeliz amor, apenas percebido, nos seus anos adolescentes, vividos na Europa. No rosto, eternamente essa sombra de melancolia, esse mundo incompreensível de escassos risos e sonhos mal disfarçados.

          É quando entra na sua casa como preceptor, recomendado pelo Bispo amigo da família, Félix del Arroyo.Então, esse narrador que tudo sabe e de Plácida só dizia o que era possível ver e escutar, passa a ser mais próximo, a se comprometer com ela num relato feito na segunda pessoa.


          São cinco capítulos, entremeados aos demais que dizem de sua renascente feminilidade e o que desse renascer se segue.

          No primeiro deles, no dia de seu aniversário, Plácida ainda se veste de luto e com os cabelos presos e o coração perdido entre exaltação e angústia, ela espera Félix del Arroyo .Porque é, ainda, o tempo da espera, de um sorriso, de subentendidos e insignificâncias que, no capítulo seguinte, tecerão uma teia finíssima onde o essencial é o olhar e o gesto. Logo, o luto se esmaece em cinza, em branco e as emoções se fortalecem cada vez mais irreprimíveis, levando ao bilhete, escrito em francês, que abre a porta da alcova.

          Sobrevém a transgressão (não te comandas mais), depois o fastio (vês que [Félix] é um objetivo indigno de tantos poemas acumulados em teu sangue durante anos de dolência e leituras), o desalento (emergias em um estado de prostração comparável ao limbo, onde tudo se dissolvia num viver sem dores nem pesares), a morte (a tampa te reduz à condição de coisa, e quando balouças em direção  porta, à carreta fúnebre de cavalos negros empenachados, em direção ao cemitério, nada mais sentes, nada mais te comove).

          E os gestos de Plácida são descritos, adivinhados os seus significados e conhecidos seus pensamentos e seus atos mais recônditos. Tudo o que faz é registrado: se lê, toca piano, olha para a praça ou para os objetos que a rodeiam, os passos que dá pela sala de visitas. Também as razões que a fazem agir e que estão na origem de seus sentimentos e de seu drama como prisioneira das convenções. Para fugir delas, se deixa morrer na ignomínia ao dar à luz a um filho espúrio que a sua viuvez torna pecaminoso.E o pronome tu estabelece uma intimidade com ela que, por vezes, parece se constituir um alter ego, mostrando-a profundamente humana nas suas misérias e nas suas grandezas de mulher que desejou, apenas, viver.

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