domingo, 30 de junho de 1996

O menino Páris

           Introduzido por um longo título, o monólogo de Páris. Adulto, contrastando com suas atitudes perversas e de perplexidade infantil.

           Menino expulso do colégio, ele chega na fazenda do avô, neto espúrio e visto pela primeira vez. Não sabe quem é, nem quem são os seus pais e tenta descobrir o mistério que lhe envolve as origens.

          Um narrador onisciente relata essa chegada e seu olhar de espanto diante da vida que transcorre na casa que mal sabe também ser sua.Depois, são os capítulos que na primeira pessoa, relatam o que ele pensa ou faz. Também um certo aprendizado diante do que vê e do que percebe e que lhe transmite uma visão sórdida da família e dos ambientes que irá descobrindo.

           Relatos onde o anedótico apresenta muitas faces e do qual faz parte o folhetinesco, o drama, o tragi-cômico, o jocoso, o fantástico, o lírico.

           É a busca de uma verdade escamoteada em nome das convenções que ele procura decifrar nos entremeios das conversas; é o olhar dominado pela imaginação, criando esdrúxulas situações; é a morte deixando vazios; é o conhecimento intempestivo e prematuro dos jogos sexuais; é o faceto exame dos animais no quartel; é esse aparecer dos mortos a conversar com os que ainda fazem parte dos vivos; e é esse sentir de menino criado sem pai nem mãe.

           Ao todo, em Perversas famílias, primeiro volume da série Um castelo no pampa de Luiz Antonio de Assis Brasil (Mercado Aberto, Porto Alegre), intercalados aos demais capítulos, feitos de monólogos de outros personagens e de narrativas em segunda e em terceira pessoa, são sete monólogos.O último cujo título é “Como um açougueiro entrou na minha consciência” se constituí de episódios tragicômicos cujo relato de criança se aproxima da crítica sarcástica às instituições. E de um extremo lirismo quando expressa a sua angústia diante do segredo, verdadeira muralha, que o impede de conhecer a própria história.

             Diante do obstinado silêncio da tia Beatriz que dele se ocupa, a agride, grita e foge: saí correndo porta a fora como se viesse perseguido por um enxame de marimbondos diz no seu monólogo ao qual se insere, então, um narrador onisciente que toma a palavra e Páris corria e chegava ao pátio e olhava para os lados, não tinha idéias, tinha, foi ao portão e galgou desesperado o portão de ferro e galgou e atingiu um leão e montado na fera secular, voz substituída pela primeira pessoa do monólogo que, sem transição, retoma o relato: bradei para todas as esquinas e praças de Pelotas que era um menino e que apenas procurava saber quem eu era e assim aos gritos fui chamando a atenção de todos e veio também Beatriz que coitada dizia o meu nome. Novamente, se interpõe o narrador onisciente: e Páris então impôs condições para descer e Beatriz concordou sim e outra vez o relato é retomado na primeira pessoa para dizer de seu sofrimento ao se dar conta de que todos, na cidade, já conheciam o que ele tanto queria saber e de seu desejo, súbito, de jamais chegar ao chão porque nunca mais seria o mesmo.
 
             Importante, na construção do personagem cuja trajetória aventureira e rebelde irá continuar em Pedra da memória e em Os senhores do século, volumes que se seguem à Perversas famílias, o episódio que se impõe pelo dinamismo a ele conferido nessa intercalação de narradores e pela
quebra da emoção contida na voz do menino quando interrompida pelo contar do narrador onisciente.

            A esse recurso narrativo (que aparecerá, também, em outro monólogo de Páris que faz parte de Pedra da memória) irão se aliar, muitas vezes, a maestria do dizer, a força de algum personagem, o sábio entrelaçar das histórias. O bastante para fazer de Um castelo no pampa um romance cuja criatividade formal o torna não somente uma deleitosa leitura mas uma obra instigante e sedutora.

domingo, 23 de junho de 1996

As transgressoras:Selene

           Tem o nome da lua porque assim o quis a amante do pai antes mesmo de ter sido gerada. Mal nasceu, prematura, num ritual de parteiras, febre e luzes, é levada pelo médico abafada em panos para longe da mãe. Aos cinco anos brinca de bonecas no seu quarto cor de rosa. Mais tarde empurra um aro na Praça da Matriz quando Francisca Almada que será sua ama, ao saber-lhe o nome, Selene, lamenta que chamem assim a uma criança e, então, acha até natural que tendo tal nome, não distinga as cores.
          
           São rápidas referências sobre ela, esparsas no monólogo de seu filho e de seu irmão ou no texto onisciente que relata a vida do pai ou da ama. O que ela sente e como se orientou o seu destino aparece nos três monólogos de Perversas famílias (da série Um castelo no pampa de Luiz Antonio de Assis Brasil, Mercado Aberto, Porto Alegre, constituída, ainda de Pedra da memória e Os senhores do século) cujos títulos sintetizam as emoções e as razões que lhe nortearam as escolhas.
         
            No primeiro, “Mare Serenitatis”, recém chegada do internato, Selene, no seu quarto de cores abstratas para seu olhar de confuso daltonismo, relata o encontro com Hermes e os preparativos para o baile que tanto deseja ir. É um dizer pueril como as roupas que veste – saia xadres, blusa escura, casaquinho tricotado por ela mesma e soquetes – e triste diante da indiferença da mãe: Quando, quando, mamãe, você me enxergará?

           Queixa que se reforça no segundo monólogo, “Mare Humorum”: ela esqueceu-se de mim naquela escola de austeros códigos de honra e castidade e Pecado. E até o ponto de atribuir-lhe a responsabilidade de seus atos: Quem mandou minha mãe consentir no baile entregando-me de mão beijada a um homem tão jovem... Mas não ignora que foram as curiosidades de seus humores, a vertigem da champanha e a aceitação em se deixar seduzir que a levaram à noite de amor com o moço que apenas conhecera.

           Logo depois do “Mare Humorum”, um minúsculo sub-título, “Mare Crisium” dá conta da passagem do tempo – um ano passou – e da impossibilidade que tem de se fazer entender pelos pais nesse desejo de querer casar com o que fabrica cofres.

           No diálogo com o pai, que lhe ignora as palavras, num discurso inoportuno e exasperante onde o interlocutor, para ele, não tem a menor importância, Selene, no desespero de atrair-lhe a atenção, começa a se despir. O que o pai só irá perceber quando, nua, ela lhe estende os braços. Indignado, a esbofeteia e a expulsa do recinto e de sua vida.

           Infantil e insegura ela se mostra, ainda, no terceiro monólogo onde conta a visita que recebe, em sua casa, do pai de quem tanto almeja o perdão e o nascimento do filho. São as narrativas que pertencem ao capítulo introduzido pela expressão “Mare Fecunditatis” ao qual se acrescentam dois breves textos: “Oceanus Procellarum” e “Lacus Somnii”.

            Em “Oceanus Procellarum”, relata a chegada do pai no quarto de hospital apenas para determinar o nome do neto: Páris, o que morreu em Tróia com uma flecha no peito. O glacial desprezo que demonstra por todos e pela filha, certamente irá culminar na misteriosa doença que a acomete depois do parto: a loucura.

           Assim, no texto “Lacus Somnii”, se refere á visita da tia que lhe diz há quanto tempo. Não  se dá conta que não vive no Rio de Janeiro mas,  num país onde cai neve e entre freiras. Uma, lhe permite ver a Lua pela janela e recomenda que reze para Nossa Senhora de Lurdes.

           Seu tempo de rebeldia há muito já passara quando a tia intercede por ela, que vivia entre estranhos e do outro lado do mar. O pai já  velho   continuava insensível e a resposta que dá, selando-lhe o destino é terrível: Ficará para outra vida. Não tenho idade nem coragem para enfrentar mais nada.

            Reafirma, assim, a espantosa condenação de ostracismo que Selene, louca, não pode mensurar. Como jovem não mensurara que se casar só no civil e com alguém por ela escolhido era passível de um castigo tão grande e tão perene . A vontade do pai-juiz que não podia ou não devia ser discutida nesse começo de século de vozes masculinas imperou, impedindo-a de ser mulher, de ser mãe, de viver.

            Então Selene se refugiou na loucura.

domingo, 16 de junho de 1996

As transgressoras:Urânia

          Atravessava a praça para se recolher, após a festa, acompanhada pelo anfitrião. Falaram sobre o destino que conduzia os heróis e disse: veja Doutor, que meu nome é como se fosse uma predestinação. Jamais gostei do apelido que me deram. Ele concordou, dizendo que a chamaria, daí em diante pelo seu nome real Acrescenta: romântico é esse nome de sua casa, “Eterno Amor”. E ela disse: já isso me agrada muito, e até mandei pintá-lo de cor de rosa.

          Seu nome nesse momento não é pronunciado e ao chegar a sua casa ela o convidou para entrar.

          Um breve espaço em branco nas páginas do livro sugere o tempo transcorrido. O relato é retomado e dá conta que os sinos soavam as cinco horas. Foi a hora em que ele se retirou.


          Ela acabara de escolher o seu destino. Era jovem, rica, viúva, respeitada e havia escolhido ser amante do homem que sempre quisera. A travessia da praça entre um palacete e outro fora, para ela, o abandono da vida de antes. Já não seria mais a menina Nini, mas Urânia. E por ela é conquistado o Doutor nessa quinta vez em que se encontraram.Na primeira vez ele lhe ofereceu o lenço pois chorava o pai que apenas morrera. Na segunda, no dia de seu casamento, a presenteara com o broche de safiras. Depois, quando o marido na guerra, ele foi se despedir, como o estava fazendo com todos os vizinhos. Partia para a embaixada de Viena. Nini, quando ele aceitou um copo de refresco, pode vê-lo melhor: adquirira um ar definitivo, heroico, capaz de comandar terras, homens, seu Castelo e, ainda, brilhar nos salões da Europa. E ao responder, no que ela considerou um timbre equívoco sobre a pergunta quer lhe fizera sobre como passava a sua mulher, e observando o seu gesto lento ao depositar o copo sobre a bandeja teve uma iluminação, tão repentina e forte que a estonteou por sua verdade: um dia aquele homem seria seu.

           Na sua volta da Áustria, o encontro casual em companhia da mulher  diante de sua casa uma breve troca de palavras, os pêsames pela morte de seu marido. E, por último, esse jantar em que convidada, ainda Nini, pode olhar para ele e deixá-lo surpreso por estar usando o pregador de safira.

           A pedido de sua mulher, depois do jantar, o Doutor a acompanhou, atravessando a praça, para levá-la e, na sua casa ficou, enredado nesse desejo para o qual estava predestinado.

          Nos romances de Luiz Antonio de Assis Brasil, Perversas famílias, Pedra da memória e Os senhores do século que formam a série Um castelo no pampa (Mercado Aberto, Porto Alegre), a figura do Doutor e de Urânia estão a cargo de um narrador onisciente. que dá conta do episódio amoroso onde apenas a figura feminina interessa pois do Doutor só se conhecem as palavras e os gestos. O que pensa de Urânia, o que sente por ela, somente é sugerido por esse brinde que lhe faz, de longe, no dia do casamento, pelas palavras que diz ao se despedir, nas vésperas de sua viagem a Europa.  De Urânia é dito o que pensa e o que sente nesse desabrochar da certeza que, inevitavelmente, um dia, o Doutor será seu.

          Ao longo da série, breves, alguns momentos felizes dessa relação que não mais se desfaz.

          Já velho e doente ele a manda chamar e Urânia enfrenta a viagem de trem, a caminhada sob a chuva e o vento, a entrada na casa, que lhe estaria proibida, para estar com ele. A mulher legítima fechara as demais portas da casa, apagara as luzes e se recolhera na capela com a criadagem para rezar.

          O que se disseram nessa noite um ao outro não faz parte do relato. Tampouco, o que Urânia deve ter passado como amante de um homem casado cuja posição política, econômica e social atraía todas as atenções. 
          Morre sozinha na sua casa e é enterrada à noite, discretamente diz a carta que anuncia a sua morte ao Doutor e que acrescenta: [...] a cidade custará a notar, creio eu, porque ela nunca saía do “Eterno Amor”. Dias depois, diante de seu túmulo, o Doutor dirá que ela foi única. Sem dúvida, admiravelmente, à margem dessa sociedade classista e conservadora do início do século na qual viveu. Isolada ao escolher o amor e por ele se esconder em vida.

domingo, 9 de junho de 1996

As transgressoras:Plácida

          Um castelo no pampa, de Luiz Antonio de Assis Brasil, é um romance constituído de três volumes: Perversas famílias, (1992), Pedra da memória, (1994) e Os senhores do século (1995) publicados pela Mercado Aberto de Porto Alegre. Uma longa narrativa a qual se acrescentam outras tantas que, abarcando quatro gerações, avança pelo tempo e se constitui um mundo de muitas vozes.

          Em Perversas famílias, a história de Plácida é contada pela voz de um narrador onisciente.

          Pálida, a cabeça pequena, magra como um galgo, dedos agudos de marfim opaco, aparece no romance já adulta, recém vinda da Suiça onde estivera onze anos, estudando. Dona de vários caixotes de livros e vítima constante de ataques de dispnéia, casa com João Felício Borges da Fonseca e Menezes, rico solteirão.

          Jovem como uma parreira na primavera tem um primeiro filho e o segundo três anos depois, quando enviuva. Rica, vive para esse filho menor que o mais velho já se fora estudar em São Paulo, para suas leituras de Byron, Musset, Lamartine e para seu piano. Guarda uma terna lembrança do marido e outra, dolorosa, nunca abandonada, do infeliz amor, apenas percebido, nos seus anos adolescentes, vividos na Europa. No rosto, eternamente essa sombra de melancolia, esse mundo incompreensível de escassos risos e sonhos mal disfarçados.

          É quando entra na sua casa como preceptor, recomendado pelo Bispo amigo da família, Félix del Arroyo.Então, esse narrador que tudo sabe e de Plácida só dizia o que era possível ver e escutar, passa a ser mais próximo, a se comprometer com ela num relato feito na segunda pessoa.


          São cinco capítulos, entremeados aos demais que dizem de sua renascente feminilidade e o que desse renascer se segue.

          No primeiro deles, no dia de seu aniversário, Plácida ainda se veste de luto e com os cabelos presos e o coração perdido entre exaltação e angústia, ela espera Félix del Arroyo .Porque é, ainda, o tempo da espera, de um sorriso, de subentendidos e insignificâncias que, no capítulo seguinte, tecerão uma teia finíssima onde o essencial é o olhar e o gesto. Logo, o luto se esmaece em cinza, em branco e as emoções se fortalecem cada vez mais irreprimíveis, levando ao bilhete, escrito em francês, que abre a porta da alcova.

          Sobrevém a transgressão (não te comandas mais), depois o fastio (vês que [Félix] é um objetivo indigno de tantos poemas acumulados em teu sangue durante anos de dolência e leituras), o desalento (emergias em um estado de prostração comparável ao limbo, onde tudo se dissolvia num viver sem dores nem pesares), a morte (a tampa te reduz à condição de coisa, e quando balouças em direção  porta, à carreta fúnebre de cavalos negros empenachados, em direção ao cemitério, nada mais sentes, nada mais te comove).

          E os gestos de Plácida são descritos, adivinhados os seus significados e conhecidos seus pensamentos e seus atos mais recônditos. Tudo o que faz é registrado: se lê, toca piano, olha para a praça ou para os objetos que a rodeiam, os passos que dá pela sala de visitas. Também as razões que a fazem agir e que estão na origem de seus sentimentos e de seu drama como prisioneira das convenções. Para fugir delas, se deixa morrer na ignomínia ao dar à luz a um filho espúrio que a sua viuvez torna pecaminoso.E o pronome tu estabelece uma intimidade com ela que, por vezes, parece se constituir um alter ego, mostrando-a profundamente humana nas suas misérias e nas suas grandezas de mulher que desejou, apenas, viver.

domingo, 2 de junho de 1996

A beleza


Não era branca nem loira

A menina era morena.
Tão grande eram seus olhos
que no rosto não cabiam.
Tão estreita a sua cintura
que na pulseira entraria
quando ia pelas ruas
tempestades produzia,
vendavais de admiração
com trovões de simpatia:
que negra mais estupenda,
que mulata tão bonita!
(Abel Romeo Castillo, Equador) 
nos mestiços e a
           Em 1946, Emilio Ballagas poeta e ensaísta cubano publica Mapa de la poesia negra americana, pela Pleamar de Buenos Aires, uma valiosíssima antologia da lírica negra.          Reunindo um material que de outra maneira seria de difícil acesso, oferece um amplo panorama da  poesia afro-americana onde dois terços dos países da América estão representados.Daí  uma diferenciação de tons e de temas que Emilio Ballagas na apresentação da antologia explica como essencialmente marcada pela Biblia, a poesia norte-americana; pela paisagem, danças e religiosidade, a de Puerto Rico; pela magia do sobrenatural, a do Haiti. A do Uruguai e da Argentina, pela evocação carnavalesca.Como denominador comum- motivos da estética universal - alusões ao drama da escravidão, conflito de sanguesplasticidade da mulher negra.

       Examinando os poemas de autores da Nicarágua, México, Equador, Santo Domingo, Peru e Cuba, cujo tema é a mulher, evidencia-se, em cada um deles, a exaltação da beleza física e de uma espontânea feminilidade.
          O corpo feminino, os seios, lábios, dentes, pele estão presentes a cada verso. A mulher negra é flor de ébano, Vênus de bronze, a que foi talhada em diarita, a de corpo perfeito, a de contornos gregos, a de flexível cintura. Sua pele é de azeviche ou de canela morna; seus lábios de mel de néspera ou como que recém picados de vespa; seu olhar de sol ou de gazela.

          Expressões de entusiástica admiração que nos poemas se acrescentam a uma não menos entusiástica certeza de sua capacidade de amar. Assim, se mostra fatal maçã ou leoa no amor. Com algo de gata ou de pantera, uma cálida baía, uma água sensual, um porto de açúcar, mortal perdição, insaciável nas suas iras como o tigre / terna no amor como uma pomba.

        Negra ou mulata, verdadeira mulher-talismã ela é cantada em verso pela sua beleza e em verso é cantada pela arte amorosa de que é conhecedora.Fascinante e bela, nos textos de Mapa de la poesia negra americana os poetas fazem dela um ser que parece estar à margem do destino daqueles que são a sua gente e que, de uma forma ou de outra, através das fronteiras e dos anos permanecem condenados à escravidão, à submissão, à exploração.