domingo, 12 de maio de 1996

Os recursos do cômico

          Antonio Skármeta era professor de Literatura na Universidade de Santiago do Chile quando, em 1973, teve que escolher entre ficar no país, dominado pela repressão e dela sofrer as consequências ou pedir asilo político.

          Foi acolhido pela República Federal Alemã onde viveu sem precisar esconder suas convicções ideológicas e sem deixar de lutar contra a ditadura instalada no seu país.

          Em 1968, havia recebido o Prêmio Casa de las Américas por seu livro de contos Desnudos en el tejado e essa agressiva indução ao riso que nele está presente emergirá, também nos seus escritos posteriores.

          O conto “La Mancha”, publicado na revista venezuelana Nueva Sociedad (nº 35, 1978) é uma crítica ácida ao golpe militar que destruiu a democracia chilena e levou à morte milhares de pessoas, mascarada numa troça que, evitando proselitismos e indignações,que se expressa, sobretudo,pelo cômico. Um cômico, sem dúvida, corrosivo, mimeticamente fantasioso.

          Na enumeração dos epítetos que rotulam o governante desse planeta surgido, de repente, na galáxia, aparece entre os adjetivos, escrito em maiúsculas, exatamente o nome do general responsável pelo golpe: Augusto. Sua figura será completada pela menção aos óculos que usa permanentemente. Muito escuros e de lentes grossas.Com eles, inclusive, aparece no retrato onde, de braços cruzados, cravava os óculos no universo. Também pela preferência à dor de cabeça terrível que o acomete quando precisa pensar .Igualmente, lhe completam o perfil os cognomes que os amigos lhe atribuem – esperança nossa, pró-homem, supremo nosso, benfeitor, pai da pátria – e a rusticidade de seus métodos: acredita que irá dominar o povo com a espada; que evitará críticas se mandar matar todos os cidadãos do país e expulsar os correspondentes estrangeiros do território nacional; que estará melhor protegido se promulgar leis que declarem ilegais tanto os cristãos como os protestantes, tanto os muçulmanos como os rosa-cruzes, tanto os teosofistas como os carvoeiros e os vegetarianos. E permitir a seus amigos lançar um edito para que sejam quebradas as mãos dos guitarristas e os bancos  dos ciclistas e subtraídas as bengalas dos velhos.

          Além da incongruência dessa vontade sem limites e sem lógica, e da necessidade  de consultar o espelho diante das dificuldades, se mostra como um fantoche desprovido de coração e com olhos que acabam por se mostrar como  que feitos de coquinho.

          Se por um lado, sua consulta ao espelho, assim como  as palavras que iniciam o conto, Era uma vez...,  remetem ao conto de fadas tradicional, como, por outro, a subserviência  em relação à resposta que irá direcionar sua vontade – atacar o Palácio do Governo e ordenar a matança do povo –  em se tratando do Continente, não impede imaginar de qual planeta ela vem.


 
          É um sugerir de sentidos que se repete no uso de óculos escuros que tanto pode significar o

repúdio em ver a realidade, como, simplesmente, a incapacidade de enxergar. O quê, de certa maneira, não está longe da incapacidade de pensar em outra coisa que não seja a obtenção dos papelitos verdes, eufemismo carinhoso para os cobiçados dólares. Papelitos verdes que o governante sempre quer mais e mais, justificando o adjetivo opulento com o qual é designado pela narrador e que, juntamente com outros, um tanto quanto pejorativos, está longe de ser adequado para qualificar um Presidente. Sobretudo, quando os adjetivos que designam seu povo – cordial, suave, simples, afável, humilde, discreto, amável, sincero – criam um discordante maniqueísmo. Tão risível quanto essas palavras indicando objetos em desuso – aldravas, balestras, onagros – ou que aparecem nas enumerações de uma estranha miscelânea. Miscelânea apenas possível num mundo de fantasia onde a Via Láctea possa congregar planetas, estrelas, luzeiros, burros voadores, pégasos, aerolitos, foguetes, aviões, cometas, zepelins e onde La Mancha, o novo planeta que se move para trás se comporta como um satélite cuja rota é fácil identificar nessa galáxia presumivelmente posta em ordem pelos papelitos verdes. Que ensejam ao Presidente, desejoso de um Poder infinitamente irrefutável, poder dizer a seus acólitos: Vocês me ungiram Presidente. Com o mesmo direito, me nomeiem Papa.

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