Esquecendo que vou morrer enfim,
Eu
me distraio a construir castelos...
Do soneto XVIII .Mário Quintana
Em maio de 1994 morria, em
Porto Alegre, Mário Quintana. Quem sabe sem medos, sem grandes mistérios,
porque, desde sempre, ele havia falado nesse inevitável encontro solene.
No seu primeiro livro, A rua dos cataventos, publicado quando
tinha pouco mais de trinta anos, sintetiza o destino da humanidade inteira no
verso Minha morte nasceu quando eu nasci para desenvolver, ao
longo do poema, a sua relação com essa amiga de infância, pois que irão crescer
juntos e juntos dançar e sentir passar o tempo.
É o XIX soneto do livro e,
antes dele, Mário Quintana havia, risonhamente, se referido ao seu Anjo da
Guarda (que tapava os ouvidos para não ouvir os palavrões do guri da rua e
único leitor de seus versos), à leveza dos próprios passos, parecendo sua
futura assombração, e a meninos mortos. Expressão que finaliza o soneto XIII no
qual fala do silêncio, o mesmo que acompanha a aparição de uma fragata, estranha nau que não demanda os portos / Com
mastros de marim, velas de prata, / Toda apinhada de meninos mortos.
Esse tema do barco, velho bergantim desmantelado, retorna
nos sonetos XX e XXIII para expressar a inutilidade da procura, dos desejos. No
soneto XX, o poeta sem norte, de alma cansada não almeja nem mesmo a morte; ainda no XII, exprime a
certeza da inutilidade de tudo, da existência do nada.
Desesperança que talvez se
origine do caos do mundo – A rua dos
cataventos foi escrito em plena Segunda Guerra Mundial – que ele constata: Enquanto o mundo se esbarronda / vivo
regendo estranhas contradanças / No meu vago país de Trebizonda / Entre os
Loucos, os Mortos e as Crianças.
E lá nesse país inventado,
junto com os inocentes, é que ele pode cantar os desejos e esperanças que
também, no seu dizer, são os deles.
No seu mundo real de janelas
amplas, pequenas ruas, jardins tranqüilos, telhados, nuvens, céu azul e realejo,
com bonomia se inscrevem uma alma penada, arcanjos neurastênicos e a certeza da
morte e seu chamado.
É o que Donaldo Schüler
chama de sua familiaridade com a morte.
Certamente melancólica, se mostra luminosa – se assim se pode dizer – no último
soneto de A rua dos cataventos.Mário
Quintana começa o soneto com a expressão Quando
eu morrer, vislumbrando essa casa
nova, essa quieta rua para as quais levará as madrugadas, os por de sóis, algum luar, asas em bando e o rir das
primeiras namoradas. Não desejará mais a presença dos vivos, acrescenta, só
alguns poemas tortos que desejou
arrumar sem conseguir.
Assim, a alegria que irá
levar consigo e a esperança da Eternidade, para
as torturas lentas da expressão, o farão tecer os fios da vida no manto negro da morte, então cheia de espanto.
É um brincar risonho que o
poeta se permite sem saber quando serão essas
bodas. Se no dia mesmo em que escreve os versos ... ou no fim de longa vida...
Bondosa ou distraída, a
morte o poupou para viver muito e muito poetar. Mário Quintana, nascido em Alegrete
em 1906, morreu com 87 anos.

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