domingo, 19 de maio de 1996

Os castelos



                                                     Esquecendo que vou morrer enfim,
Eu me distraio a construir castelos...
   Do soneto XVIII   .Mário Quintana

 
          Em maio de 1994 morria, em Porto Alegre, Mário Quintana. Quem sabe sem medos, sem grandes mistérios, porque, desde sempre, ele havia falado nesse inevitável encontro solene.
          No seu primeiro livro, A rua dos cataventos, publicado quando tinha pouco mais de trinta anos, sintetiza o destino da humanidade inteira no verso Minha morte nasceu quando eu nasci para desenvolver, ao longo do poema, a sua relação com essa amiga de infância, pois que irão crescer juntos e juntos dançar e sentir passar o tempo.

          É o XIX soneto do livro e, antes dele, Mário Quintana havia, risonhamente, se referido ao seu Anjo da Guarda (que tapava os ouvidos para não ouvir os palavrões do guri da rua e único leitor de seus versos), à leveza dos próprios passos, parecendo sua futura assombração, e a meninos mortos. Expressão que finaliza o soneto XIII no qual fala do silêncio, o mesmo que acompanha a aparição de uma fragata, estranha nau que não demanda os portos / Com mastros de marim, velas de prata, / Toda apinhada de meninos mortos.
          Esse tema do barco, velho bergantim desmantelado, retorna nos sonetos XX e XXIII para expressar a inutilidade da procura, dos desejos. No soneto XX, o poeta sem norte, de alma cansada não almeja nem mesmo a morte; ainda no XII, exprime a certeza da inutilidade de tudo, da existência do nada.
          Desesperança que talvez se origine do caos do mundo – A rua dos cataventos foi escrito em plena Segunda Guerra Mundial – que ele constata: Enquanto o mundo se esbarronda / vivo regendo estranhas contradanças / No meu vago país de Trebizonda / Entre os Loucos, os Mortos e as Crianças.
          E lá nesse país inventado, junto com os inocentes, é que ele pode cantar os desejos e esperanças que também, no seu dizer, são os deles.
         No seu mundo real de janelas amplas, pequenas ruas, jardins tranqüilos, telhados, nuvens, céu azul e realejo, com bonomia se inscrevem uma alma penada, arcanjos neurastênicos e a certeza da morte e seu chamado.
          É o que Donaldo Schüler chama de sua familiaridade com a morte. Certamente melancólica, se mostra luminosa – se assim se pode dizer – no último soneto de A rua dos cataventos.Mário Quintana começa o soneto com a expressão Quando eu morrer, vislumbrando essa casa nova, essa quieta rua para as quais levará as madrugadas, os por de sóis, algum luar, asas em bando e o rir das primeiras namoradas. Não desejará mais a presença dos vivos, acrescenta, só alguns poemas tortos que desejou arrumar sem conseguir.
Assim, a alegria que irá levar consigo e a esperança da Eternidade, para as torturas lentas da expressão, o farão tecer os fios da vida no manto negro da morte, então cheia de espanto.
É um brincar risonho que o poeta se permite sem saber quando serão essas bodas. Se no dia mesmo em que escreve os versos ... ou no fim de longa vida...
Bondosa ou distraída, a morte o poupou para viver muito e muito poetar. Mário Quintana, nascido em Alegrete em 1906, morreu com 87 anos.

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