domingo, 26 de maio de 1996

Palavra de ordem


e mostra ao mundo, com tua angústia rebelde, tua voz humana...  Regino Pedroso 
 
          Corria o ano de 1944 e no Suplemento Literário de Diretrizes, do Rio de Janeiro, apareceu um poema traduzido do espanhol por Jorge Amado. Seu autor, o cubano Regino Pedroso, nascido em 1899 aos quarenta anos recebera o Prêmio Nacional de Poesia de seu país com o livro Más alla canta el mar. Com o poema “Salutación al taller mecânico” de 1927, iniciara a poesia social em Cuba e então, voltado para o social, seus versos se prendem à temática negra.
 
          O poema “Irmão negro” atravessou fronteiras. Foi publicado não somente no Brasil, nesse ano de 1944, como em inglês nos Estados Unidos. Um interesse que talvez tenha origem nos seus versos duros e enérgicos – assim os define Emilio Bállaga – que ultrapassaram o momento de descrição pitoresca e sentimental da poesia negra para visar, não apenas a realidade hostil que envolve o homem negro mas uma urgente necessidade de luta.
          Constituído de uma dezena de estrofes de número desiguais de versos, o poema se inicia com o vocativo Irmão negro, expressão que irá se repetir nessa espécie de estribilho anunciador da vontade do poeta que, ao assumir o destino do outro, a ele oferece a sua voz. E, afirma peremptório: Eu sou tua voz.
          Mas é o próprio poeta e não o outro que dirá do destino de fome, de cativeiro, de suor derramado e de inconsciente submissão e que irá ordenar: aprende, olha, escuta, onde quer que você esteja. 
          Lembrando o passado remoto em que o negro vivia livre sobre a terra, como as árvores, como os rios, e o outro passado mais recente, em que foi dominado pelo látego, constata que, nos tempos presentes, é igualmente explorado: o rico faz de ti um brinquedo. Também que a dor, a angústia, o ódio se mascaram, ainda no riso, ainda, na dança.
          Não somos mais que negros? / Não somos mais que dança? / Não somos mais que rumba? ele se pergunta quando a resposta já fora anteriormente dada nas pequenas estrofes de dois versos. Repetindo as palavras primeiras do poema, introduzem as que definem sua dolorida trajetória de tristezas e de lágrimas.
          Um caminho trilhado por muitos: os do Haiti, os da Jamaica, os de Nova Iorque. Por todo aquele que é mais irmão na ânsia do que na raça.
          Assim, quando conclama enluta um pouco teus tambores / silencia teus maracás e faz ouvir tua verdadeira voz, suas palavras de ordem não desejam fronteiras.
          Mas, nos espaços negros do Continente, o silêncio continuou. Se, alguma vez se levantou nesses cinqüenta anos que passaram quase tudo ainda está para ser dito, quase todo um espaço está ainda para ser conquistado.
          No Haiti, na Jamaica, em Nova Iorque. E no Brasil de Jorge Amado.

domingo, 19 de maio de 1996

Os castelos



                                                     Esquecendo que vou morrer enfim,
Eu me distraio a construir castelos...
   Do soneto XVIII   .Mário Quintana

 
          Em maio de 1994 morria, em Porto Alegre, Mário Quintana. Quem sabe sem medos, sem grandes mistérios, porque, desde sempre, ele havia falado nesse inevitável encontro solene.
          No seu primeiro livro, A rua dos cataventos, publicado quando tinha pouco mais de trinta anos, sintetiza o destino da humanidade inteira no verso Minha morte nasceu quando eu nasci para desenvolver, ao longo do poema, a sua relação com essa amiga de infância, pois que irão crescer juntos e juntos dançar e sentir passar o tempo.

          É o XIX soneto do livro e, antes dele, Mário Quintana havia, risonhamente, se referido ao seu Anjo da Guarda (que tapava os ouvidos para não ouvir os palavrões do guri da rua e único leitor de seus versos), à leveza dos próprios passos, parecendo sua futura assombração, e a meninos mortos. Expressão que finaliza o soneto XIII no qual fala do silêncio, o mesmo que acompanha a aparição de uma fragata, estranha nau que não demanda os portos / Com mastros de marim, velas de prata, / Toda apinhada de meninos mortos.
          Esse tema do barco, velho bergantim desmantelado, retorna nos sonetos XX e XXIII para expressar a inutilidade da procura, dos desejos. No soneto XX, o poeta sem norte, de alma cansada não almeja nem mesmo a morte; ainda no XII, exprime a certeza da inutilidade de tudo, da existência do nada.
          Desesperança que talvez se origine do caos do mundo – A rua dos cataventos foi escrito em plena Segunda Guerra Mundial – que ele constata: Enquanto o mundo se esbarronda / vivo regendo estranhas contradanças / No meu vago país de Trebizonda / Entre os Loucos, os Mortos e as Crianças.
          E lá nesse país inventado, junto com os inocentes, é que ele pode cantar os desejos e esperanças que também, no seu dizer, são os deles.
         No seu mundo real de janelas amplas, pequenas ruas, jardins tranqüilos, telhados, nuvens, céu azul e realejo, com bonomia se inscrevem uma alma penada, arcanjos neurastênicos e a certeza da morte e seu chamado.
          É o que Donaldo Schüler chama de sua familiaridade com a morte. Certamente melancólica, se mostra luminosa – se assim se pode dizer – no último soneto de A rua dos cataventos.Mário Quintana começa o soneto com a expressão Quando eu morrer, vislumbrando essa casa nova, essa quieta rua para as quais levará as madrugadas, os por de sóis, algum luar, asas em bando e o rir das primeiras namoradas. Não desejará mais a presença dos vivos, acrescenta, só alguns poemas tortos que desejou arrumar sem conseguir.
Assim, a alegria que irá levar consigo e a esperança da Eternidade, para as torturas lentas da expressão, o farão tecer os fios da vida no manto negro da morte, então cheia de espanto.
É um brincar risonho que o poeta se permite sem saber quando serão essas bodas. Se no dia mesmo em que escreve os versos ... ou no fim de longa vida...
Bondosa ou distraída, a morte o poupou para viver muito e muito poetar. Mário Quintana, nascido em Alegrete em 1906, morreu com 87 anos.

domingo, 12 de maio de 1996

Os recursos do cômico

          Antonio Skármeta era professor de Literatura na Universidade de Santiago do Chile quando, em 1973, teve que escolher entre ficar no país, dominado pela repressão e dela sofrer as consequências ou pedir asilo político.

          Foi acolhido pela República Federal Alemã onde viveu sem precisar esconder suas convicções ideológicas e sem deixar de lutar contra a ditadura instalada no seu país.

          Em 1968, havia recebido o Prêmio Casa de las Américas por seu livro de contos Desnudos en el tejado e essa agressiva indução ao riso que nele está presente emergirá, também nos seus escritos posteriores.

          O conto “La Mancha”, publicado na revista venezuelana Nueva Sociedad (nº 35, 1978) é uma crítica ácida ao golpe militar que destruiu a democracia chilena e levou à morte milhares de pessoas, mascarada numa troça que, evitando proselitismos e indignações,que se expressa, sobretudo,pelo cômico. Um cômico, sem dúvida, corrosivo, mimeticamente fantasioso.

          Na enumeração dos epítetos que rotulam o governante desse planeta surgido, de repente, na galáxia, aparece entre os adjetivos, escrito em maiúsculas, exatamente o nome do general responsável pelo golpe: Augusto. Sua figura será completada pela menção aos óculos que usa permanentemente. Muito escuros e de lentes grossas.Com eles, inclusive, aparece no retrato onde, de braços cruzados, cravava os óculos no universo. Também pela preferência à dor de cabeça terrível que o acomete quando precisa pensar .Igualmente, lhe completam o perfil os cognomes que os amigos lhe atribuem – esperança nossa, pró-homem, supremo nosso, benfeitor, pai da pátria – e a rusticidade de seus métodos: acredita que irá dominar o povo com a espada; que evitará críticas se mandar matar todos os cidadãos do país e expulsar os correspondentes estrangeiros do território nacional; que estará melhor protegido se promulgar leis que declarem ilegais tanto os cristãos como os protestantes, tanto os muçulmanos como os rosa-cruzes, tanto os teosofistas como os carvoeiros e os vegetarianos. E permitir a seus amigos lançar um edito para que sejam quebradas as mãos dos guitarristas e os bancos  dos ciclistas e subtraídas as bengalas dos velhos.

          Além da incongruência dessa vontade sem limites e sem lógica, e da necessidade  de consultar o espelho diante das dificuldades, se mostra como um fantoche desprovido de coração e com olhos que acabam por se mostrar como  que feitos de coquinho.

          Se por um lado, sua consulta ao espelho, assim como  as palavras que iniciam o conto, Era uma vez...,  remetem ao conto de fadas tradicional, como, por outro, a subserviência  em relação à resposta que irá direcionar sua vontade – atacar o Palácio do Governo e ordenar a matança do povo –  em se tratando do Continente, não impede imaginar de qual planeta ela vem.


 
          É um sugerir de sentidos que se repete no uso de óculos escuros que tanto pode significar o

repúdio em ver a realidade, como, simplesmente, a incapacidade de enxergar. O quê, de certa maneira, não está longe da incapacidade de pensar em outra coisa que não seja a obtenção dos papelitos verdes, eufemismo carinhoso para os cobiçados dólares. Papelitos verdes que o governante sempre quer mais e mais, justificando o adjetivo opulento com o qual é designado pela narrador e que, juntamente com outros, um tanto quanto pejorativos, está longe de ser adequado para qualificar um Presidente. Sobretudo, quando os adjetivos que designam seu povo – cordial, suave, simples, afável, humilde, discreto, amável, sincero – criam um discordante maniqueísmo. Tão risível quanto essas palavras indicando objetos em desuso – aldravas, balestras, onagros – ou que aparecem nas enumerações de uma estranha miscelânea. Miscelânea apenas possível num mundo de fantasia onde a Via Láctea possa congregar planetas, estrelas, luzeiros, burros voadores, pégasos, aerolitos, foguetes, aviões, cometas, zepelins e onde La Mancha, o novo planeta que se move para trás se comporta como um satélite cuja rota é fácil identificar nessa galáxia presumivelmente posta em ordem pelos papelitos verdes. Que ensejam ao Presidente, desejoso de um Poder infinitamente irrefutável, poder dizer a seus acólitos: Vocês me ungiram Presidente. Com o mesmo direito, me nomeiem Papa.

domingo, 5 de maio de 1996

Um modo de contar

          Nueva Sociedad sai em Caracas. Uma revista dedicada, fundamentalmente, ao estudo das realidades políticas, sociais e econômicas da América Latina. No seu número 35, de março/abril de 1978 publicou um conto: “La Mancha”.

          Seu autor, o chileno Antonio Skármeta vivia, então, no exílio como tantos outros intelectuais e escritores latino-americanos levados ao êxodo pelas ditaduras. E, como a grande maioria, lutou contra ela usando a palavra. Nesse conto, diz Sebastian Bello que dele faz a apresentação, ele procura um dos múltiplos caminhos literários possíveis, o conto infantil.

          Daí iniciar-se o conto exatamente como soem começar as histórias infantis: Era uma vez... Desta feita Era uma vez um planeta que era uma mancha.

          Mancha longa e magra que o professor de outro planeta definia como espessa, inapagada e intolerável. E os alunos suspiravam, desejando não serem contagiados por ela. Até a desconheceriam se não fosse pelos seus habitantes que fugiam, pedindo refúgio. Então, as mulheres secavam as lágrimas das crianças fugitivas e lhes ensinavam as palavras claras e luminosas dos astros. Palavras como “ar”, “pão”, “companheiro”.
          Primeiro dizendo quem governava La Mancha e logo como era seu povo, a história começa a ser contada. Depois, os métodos do tal governante para conseguir enriquecer e como foi seu triste fim e o conseqüente renascer da felicidade no planeta.

          O governante  atende pelo nome de El Oscuro (e pelos cognomes de Benfeitor e Pai do Planeta, dados pelos amigos e de gorilita, dado pelos outros) e tem as mãos peludas e um coração que não bate. Sua comida se constitui de sopas sombrias, carnes defumadas, vinhos lúgubres e sobremesas tétricas. Mora no quartel. O amigos se chamam opacos, não possuem coração e lhe induzem os atos prometendo-lhes honras e papeizinhos verdes. Papeizinhos verdes que são a sua paixão mas ele só age, de fato depois de consultar o espelho.

          Assim, decide acabar com a luz que ilumina o país pelos olhos de seus filhos e, para convertê-lo no paraíso que almeja, determina que se torne um país férreo e disciplinado.

          Diante do Presidente, no Palácio do Sul, que vê o povo dançar feliz – as pessoas pareciam lindas como uma brisa – ele jura fidelidade para, na madrugada seguinte, usando tanques, helicópteros, foguetes, aviões, metralhadoras, pistolas, onagros, fuzis, balestras, e boleadoras, bombardear e triturar tudo o que havia.

          Antes, os opacos haviam distribuído papeizinhos verdes para que os caminhoneiros não carregassem as verduras, para que os médicos não tratassem os doentes, para que as pontes fossem explodidas, para que os comerciantes fechassem as portas.

          Então, em meio á casas chamuscadas, fogueiras de páginas de livros e lágrimas, tudo se transformou tanto que a galáxia inteira se espantou com a cor de um morto, a textura de um cadáver, a gravidade de um túmulo, a profundidade de um sepulcro, o silêncio de uma fossa que marcava esse novo planeta que chamaram La Mancha.

          Mas, os que foram mortos espalhavam muita luz e o olhar dos vivos cintilavam, alimentados de esperança, vencendo o tempo da escuridão e o planeta se livra de El Oscuro para tornar a ser o que era antes. Até no nome.

          O autor que se insere na narrativa, diante do óbvio que é chamar o planeta com o nome que sempre tivera pergunta: Mas como os leitores vão saber qual era? Adivinhando, responde um menino.

          Na verdade, rastreando ao longo do conto, levando a sério o que era para rir, facilmente, o leitor reconhece cada um dos elementos da paródia.

          Porque basta um nome entre os adjetivos usados para rotular El Oscuro – suntuoso, faustoso, grandioso, Augusto, majestoso, maiúsculo, cerimonioso, enfático, fanfarrão, farsante, faroleiro, fantoche, aparatoso, pomposo e opulento; basta ter sido a primavera a época escolhida por ele, para iniciar seu trabalho de destruição feito pelos conhecidos métodos; basta o mapa do Chile entre os planetas e aviões e paraquedas, pandorgas e pássaros que El Oscuro desenha na vertical e na horizontal, para saber de que espaço latino-americano é que se trata.
 
          Um espaço que nessa década de 70 estava mergulhado no horror de uma ditadura igual às de sempre no Continente e que Antonio Skármeta fantasiando, imagina ter chegado ao fim – um país reabilitado e feliz – o que na época da publicação do conto ainda estava bem longe de acontecer.

          Para o escritor chileno, porém, já era tempo de fazer dessa ditadura algo de risível.