
domingo, 28 de abril de 1996
O teatro do cotidiano

domingo, 21 de abril de 1996
O segredo de Noé
Después del diluvio começou a ser escrita em julho de 1969 no Chile e, em abril de 1971,
na cidade de Praga ela foi terminada. E, já em outubro do mesmo ano, era editada
pela Editorial Pomaire.
Carlos Droguett já havia
publicado muitos de seus romances – Eloy,
Patas de perro, El compadre – quando se aventurou nessa peça de teatro que ainda
guarda da técnica do relato os densos textos aprisionados nos parênteses que
aparecem entre as réplicas.
Sua gênese se ancora na
infância e na adolescência de Carlos Droguett. Ao escrever a longa Introdução à
obra, em meio das lembranças e das divagações, explica a figura de Noé: personagem inquieto e múltiplo, cheio de
vinho, de desejos inconclusos que
sobrevive ao dilúvio na solidão imensa e devoradora do homem que precisou
optar. E ele escolheu se salvar, sabendo que todos os outros morreriam.
Onze quadros constroem Después del diluvio. Feitos nada mais
que de palavras. Das que diz Noé para seu filho Cam, para sua mulher, para seu
amigo gigante e daquelas que deles e de Sem e de Jafet, seus outros filhos, ele
escuta.
Toda a ação – a louca
construção da arca – é apenas referida e, em cena, somente os medos, as angústias,
as dúvidas. Después del diluvio é um
admirável dizer, um dizer profundo, um fantasioso, preciso espelho do coração
humano.
Da história bíblica – um
homem escolhido, uma arca, os animais judiciosamente aceitando a temporária prisão
– surge um Noé que se debate na sua própria essência, lamentável e viciosa, no
seu passivo aceitar da vontade divina, na sua perene dúvida, no seu remorso.
Ele cumpre o destino.
Salva-se das águas sem mensurar erros nem vilanias e o silêncio que deve reger
cada um de seus atos, por vezes se quebra, quer se quebrar, mas é defendido
pela descrença dos esquecidos, dos condenados a morrer na água.
É um silêncio tinhoso de
quem não mente mas tem ações mentirosas, diz Cam a seu pai quando, no meio da
lama, interminavelmente, conversam.
Noé se defende de não ter
dito que, dentre todos, só ele e sua família se salvariam e os animais. Inquirido,
uma circunstância – a chuva se derramando forte, o interlocutor se afastando
incrédulo – impede-lhe a resposta. Quando anuncia a chuva e o fim próximo, o
tomam por louco, por bêbado, por doente, por mentiroso.
Mas, é acusado de ter
silenciado: -Por que ficaste mudo com esse segredo atroz no teu
corpo?”, pergunta-lhe o filho. E pergunta-lhe: por que te embriagaste, por
que roubaste, por que mataste? Por que te submeteste à vontade de Deus?
Nessas perguntas, o justo
Noé bíblico – o homem designado para perpetuar a espécie humana quando Deus decidiu
destruí-la pela sua maldade e pelo seu pecado – está delineado à medida do
homem. Sabe-se igual aos outros na embriaguez e nas libidinosas aventuras.
E Cam, o filho que o
interpela e o torna a interpelar como que buscando, obcecado, o pai bom e sem
mácula, o eleito, o único merecedor de salvação, reiteradamente questiona esse trágico privilégio que poupa alguns,
sentenciando, cegamente, à morte os demais: também
os doentes, também os anciãos, também as crianças recém-nascidas.
Da história escrita há mil
anos e das interrogações infantis de Carlos Droguett, surge, então, esse Noé
condenado a viver.
Um Noé do texto sagrado e
dos textos orientais, um velho patriarca
que apreciava o cheiro das fêmeas e do vinho e que, partindo desses vícios que
o dividiam em dois, para sua desgraça e sua sobrevivência teve a coragem de
suportar e de aceitar a malvada palavra de Deus, o ineludível mandato:
converter-se no testamenteiro e no depositário desse final de jogo que foi, em
definitivo, o dilúvio universal.
domingo, 14 de abril de 1996
Na paisagem
Aquele que está trabalhando pela felicidade
dos outros não pode se deitar para dormir no meio do caminho.Enrique Solari
Swayne
A intenção de Enrique Solari
Swayne ao escrever o drama Collacocha
está expressa na dedicatória que antecede a obra e que por vontade sua deve
constar no programa cada vez que houver uma apresentação da peça. Dedico esta obra, em geral, a todos os que
estão empenhados, generosa, sadia e vigorosamente, em forjar um Peru mais justo
e mais feliz. Em forma especial, dedico a todos aqueles que estão empenhados na
habilitação de nossa terra como moradia do homem. Porque, talvez, eles também
poderiam dizer, com o protagonista da obra: “Estamos combatendo a miséria
humana e estamos construindo a felicidade dos homens do futuro”.
Escrita em 1955, Collacocha estreou três anos depois em
Lima onde, como no México e na Espanha, seu êxito foi estrondoso e extremamente
significativo. Expressou uma compreensão incomum neste Continente que apenas
parece reconhecer o talento em obras vindas de outros hemisférios ainda que –
ou exatamente por isso – feitas de nada ou de muito pouco relacionado com a
realidade do Terceiro Mundo.
E Collacocha é essencialmente latino-americana. Pelo cenário, pelos
personagens, pela dialética que a alimenta e permite que a vejam como uma obra
épica.
O cenário, para os três
atos, se constitui de uma cabana de troncos que se apoia nas pedras da
Cordilheira dos Antes. Numa das paredes, uma grande abertura se abre sobre o
abismo. Na outra, uma porta conduz à socava que se comunica com o túnel. No
interior da cabana, espaço rústico e sombrio, rodeados de seus instrumentos, trabalham
os engenheiros com o objetivo de abrir o túnel que irá unir a selva peruana ao
Oceano Pacífico. Os personagens, exceto “uma jovem” que pronunciará duas
palavras, são todos masculinos. Entre eles, sobressai o engenheiro responsável
pela obra cujo sonho, combater a
miséria e construir a felicidade dos
homens do futuro – mostra-se possível. O seu sonho – combater a miséria e
construir a felicidade dos homens do futuro – mostra-se possível e o preço pago
se dilui na realidade da conquista: o túnel permitindo a união da selva com o
mar, o caminhão passando por pequenos povoados pobres, por lugares desolados e
áridos, instaurando uma nova era. Ele acredita no seu trabalho como numa missão:
habilitar o país a ser a terra dos homens, abrir estradas para que eles possam
se aproximar uns dos outros. E por não ter dúvidas sobre o ideal que lhe
comanda as ações é que se pode indignar com as grandes mentiras, com os grandes
negócios, com as palavras ocas, com os arrivistas. Com a situação do país onde
ninguém trabalha mas todos falam. Uns de insignificâncias, outros de sua fome,
outros de idéias gerais.

Patriotismo agressivo e
consciente que se suaviza no momento de perigo, quando, encurralados pelo
perigo da enchente, surgem as evocações da paisagem peruana. Paisagens cheias
de luz, campos possuídos de cafezais iluminados no entardecer, altos eucaliptos se perfilando contra as montanhas rosadas, as dunas
violetas, o horizonte vermelho e as rochas negras do litoral, a selva com sua exuberância morna, infinita [...], o correr lento dos grandes
rios, a vida aprazível dos povoados ribeirinhos , a praça deserta na tarde, a igreja fechada, o burro amarrado numa árvore.
Imagens radiosamente
desenhadas. Impressões de algo que foi vivido e amado. Nas palavras, bem
claramente expressas, as certezas, as emoções, as constatações. Como quando
alguém exclama: País não nos falta, o que nos
faltam são homens!
domingo, 7 de abril de 1996
A coruja
Tratando de algumas questões
gerais e relatando uma experiência concreta que entrelaçam questões de método e
resultados, o colombiano Guillermo Rendón responde à pergunta – “o que
significou para você a Revolução Cubana?” – formulada, em 1979, pela revista Casa de las Américas.
Delineadas com clareza e
pertinência, foram as suas observações sobre o papel do pesquisador na América
Latina que, ou se situa como adepto da “ciência pura”, distanciando-se de seu
objeto de estudo, ou com ele se compromete para, transformando o presente,
visar um esperançoso futuro. Entusiasta, a constatação das transformações que,
na Ilha, permitiram, a nível de indivíduo, levar à ampliação ilimitada de
atitude criativa.
Na verdade, as considerações
de Guillermo Rendón traduzem fortes convicções políticas e de acordo com elas
irá realizar o seu trabalho.
Compositor, jamais uma obra
sua se afasta do processo revolucionário latino-americano. Em tudo o que compõe
há uma busca de identidade, baseada na tradição, e uma recusa em servir de veículo de propaganda às aspirações e
conquistas da oligarquia e do imperialismo; em todas elas, uma procura
incansável do caminho da liberdade para o Terceiro Mundo.
Desse desejo, nasce a
composição para piano Variaciones
móviles sobre el diario del Che Guevara.
Sons evocadores de momentos
da vida do guerrilheiro, criados em meio da tristeza e da esperança, na luta
pela forma que Guilhermo Rendón evoca num texto raro e emocionante.
e respondendo ao so Trabalhava dia e noite nas Variaciones móviles sobre el diario del Che Guevara; esta vez compus toda a obra no piano, nota por nota, passagem por passagem, parte por parte. Improvisava, escrevia, desenvolvia, tornava a tocar, acrescentava, corrigia, suprimia. O material original era quase sempre submetido a essa difícil dialética da destruição onde adquire novas categorias, ele diz. Para então relatar a comunicação sonora que se estabeleceu entre ele e uma coruja que, ao escutar o piano foi se aproximando m do instrumento.
Busquei valores rítmicos, busquei a afinação e de um espelho de sons
devolvi à coruja o retrato sonoro de sua angústia.O elo se estreitou e cada
noite, ela chegava, de galho em galho e o som do piano e o de seu canto se
intercalavam.
Terminada a obra, porém,
Guillermo Rendón não mais a tocou. Durante um mês, ainda, a coruja cantava
perto de sua janela. Sempre um pouco mais distante e um pouco mais tarde.
Para o compositor que a
esqueceu nessa ausência, ela irá sempre reviver, entrelaçada, nessas notas que
ele compôs para o Che Guevara, já morto.
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