Para Carmen
Barlcells banhada em lágrimas.
Carmen Barlcells é a agente
literária de Gabriel García Márquez e a ela foi dedicado o seu romance El amor e otros demonios (Buenos Aires,
Sudamericana, 1994). Uma dedicatória que, talvez, seja possível supor, tenha
tido sua origem na emoção provocada pela leitura dos originais: a compaixão por
Sierva Maria de Todos los Angeles.
Se preconceitos, ignorância,
obscurantismo religioso a condenaram, menina, a práticas e a rituais medonhos,
o fato do narrador ter eludido o sofrimento por eles causado faz com que seja
mais comovente o seu breve destino. Tão comovente como os poucos momentos em que
Sierva Maria foi surpreendida feliz.
Uma felicidade sempre
interrompida pela chegada de alguém, sempre limitada pelo implacável passar do
tempo.
Quando ela se entretém com a
música e com o canto, os cabelos soltos espalhados no chão, a chegada do pai, e
da abadessa quebram a sua espontaneidade e ela se cala.
Ao posar, coberta de jóias,
para um pintor chegado no Continente com o séquito do vice-rei, obediente, ela
permanece quieta as nove horas em que durou o trabalho. Depois, contemplou, sem
pressa, o quadro e nele se reconheceu no
esplendor de seus anos. Caminhando com a mesma graça com que sabia dançar,
volta para a cela que fora transformada a pedido dos vice-reis: o colchão era novo, os lençóis de linho, o
travesseiro de pena e tinham posto utensílios para o asseio cotidiano e o banho
do corpo. A luz do mar entrava pela janela sem grades e resplandecia nas
paredes recém caiadas.
Uma cela que mais do que
tudo, porém, ficara diferente pelas horas, já então felizes, que vivia Sierva
Maria desde que o amor lhe fora revelado na figura daquele que a deveria
preparar para o exorcismo. Tempo que o amanhecer limitava na despedida urgente
de quem devia fugir para não ser descoberto. Quando isso aconteceu, Sierva
Maria, sem saber porque lhe fora impossível escalar os muros do convento, nas
noites que se seguiram, já estava sem forças pelos dias de jejum e pelos
rituais de exorcismo. Voltou, então, a ter o seu sonho premonitório: na
paisagem nevada e nos grãos dourados de uva ela reconhecia a morte.
Só um sapientíssimo e sutil
mágico das letras poderia criar um personagem tão radioso e forte na sua debilidade.
Vítima que não foi vencida pelo mal que lhe fizeram mas pela falta do amor que,
afortunadamente, teve tempo de saber que poderia existir. E por ele morreu.



