domingo, 16 de julho de 1995

Quase a liberdade

          Logo no primeiro plano a figura de um homem de costas, com a roupa listada dos presidiários que lhe envolve os pés, o pescoço e a cabeça. Está parado no meio dos trilhos de uma rua pavimentada que avança e se perde na curva. À esquerda, numa esquina, um poste cuja luz se espraia, amarela. À direita, seguem-se os sobrados, todos em tons de ocre sobre os quais um céu azul forte se mostra sem nuvens. Não há vida nas casas, não há vida nas ruas e o homem está lá, tendo diante de  si um caminho.

          É a capa de Dayse Startori para Passos perdidos, publicado pela Editora Moderna de São Paulo, em 1982. Ao contrário daquela de Clóvis Graciano para a edição de 1964 da Livraria Martins que fixa dois indivíduos movendo-se como autômatos em meio a outros igualmente automatizados e à arranha-céus, a ilustração de Dayse Startori enfatiza o indivíduo na sua solidão e na sua liberdade que o traje mostra inexistente.

          Neste romance de Dyonélio Machado, o personagem, Maneco Manivela acaba de chegar a São Paulo vindo do Rio de Janeiro onde cumprira pena de quase dois anos. Sua história se havia iniciado no segundo romance de Dyonélio Machado, O louco do Cati. Partira de Porto Alegre para o litoral, levando Norberto e o Maluco, que se lhes juntara, além dos amigos Leo e Luiz. Ao chegar à praia, Norberto, assumindo os cuidados com o Maluco decide ficar e Maneco Manivela e seus companheiros começam a viagem de volta. Os percalços dessa viagem é assunto de outro romance, Desolação que se inicia com o problema de embreagem no pequeno caminhão em que viajavam e termina com o caminhão a se incendiar e Maneco Manivela, rodeado pelos companheiros de viagem, por curiosos e por elementos da polícia.

          Passos perdidos retoma a narrativa do que aconteceu depois. Uma repetição, na cidade grande e desconhecida dessas últimas horas em que Maneco Manivela ainda era um homem livre na cidadezinha do sul.

          Mal chega a São Paulo ele procura, primeiro uma mulher como sonhara tanto na prisão; depois, a “ligação” que o deveria ajudar a seguir viagem para o Rio Grande do Sul.

          O romance se faz, inteiramente, desses passos perdidos, uma deambulação em busca das pessoas que lhe fornecessem os meios de que precisava para saldar os gastos com a pensão e com a passagem de trem; depois, com a quantia para a fiança que lhe fora exigida e que devia ser paga em curto espaço de tempo.

          Sob a chuva ou garoa, sob a névoa, Maneco Manivela caminha por São Paulo num itinerário de ruas e logradouros – rua do Hipódromo, rua Barão, Itaboca, São Caetano, Cantareira, Quinze, Irmã Simpliciana, Largo de São Bento, Largo do Tesouro, Avenida São João – em que a cidade vai se mostrando. Nas formas, o perfil de seus arranha-céus, uma escadaria de aspecto antigo; e nos tons, a claridade leitosa de um momento do dia, os reflexos sobre a folhagem da praça no anoitecer chuvoso. Breves cenas de seu burburinho cotidiano,  Maneco Manivela acompanha nas vinte e quatro horas compreendidas entre o momento em que chegou na cidade e aquele em que desce do bonde para não ser preso.    Um tempo que se escoa entre um telefonema e outro, entre um café e outro, consumido em hesitações e ineficazes estratégias.

          Quando, finalmente, após silêncios, diálogos alimentados de evasões e desencontros consegue o dinheiro que lhe permitiria pagar a pensão e partir, surge-lhe o oficial de justiça intimando-o a se apresentar ao juiz para pagar a fiança arbitrada a propósito do processo instaurado no Rio Grande do Sul contra ele por crime de incêndio.

          A procura recomeça. Sai em busca de um ex-companheiro de cadeia que o ajude a obter o dinheiro ou a encontrar quem se disponha a ser fiador. E mal se alinhavam possíveis soluções, ele ainda mergulhado em incertezas quando surge, em má hora, o imprevisto que o deve conduzir a outro recomeço. Um pouco antes perguntara sobre a rua Itaboca onde imagina encontrar a solução ou a felicidade talvez possível.

          Porque Maneco Manivela não está apenas preso à desconfianças, prováveis suspeitas, ameaças de prisão, desconfortos materiais mas à sua insegurança interior que o faz andar em círculos repetitivos, postergando-lhe cada uma de suas ações. E que o leva a desejar uma âncora, um porto seguro, um refúgio. Desejo que o acompanha pelas horas que passam e pelas ruas que percorre e se expressa na fabulação cuja figura central é Dorinha, a prostituta quase criança da rua Itaboca.

          Ao descer do bonde e se perder na noite escura e chuvosa Maneco Manivela talvez chegue até ela, talvez seja mais uma vez interceptado pelas suas dúvidas, talvez receba voz de prisão.

          Dyonélio Machado não lhe define o destino. Foi-lhe suficiente tê-lo mostrado como um cidadão do Continente.

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