Logo no primeiro plano a
figura de um homem de costas, com a roupa listada dos presidiários que lhe envolve
os pés, o pescoço e a cabeça. Está parado no meio dos trilhos de uma rua
pavimentada que avança e se perde na curva. À esquerda, numa esquina, um poste
cuja luz se espraia, amarela. À direita, seguem-se os sobrados, todos em tons
de ocre sobre os quais um céu azul forte se mostra sem nuvens. Não há vida nas
casas, não há vida nas ruas e o homem está lá, tendo diante de si um caminho.
É a capa de Dayse Startori
para Passos perdidos, publicado pela
Editora Moderna de São Paulo, em 1982. Ao contrário daquela de Clóvis Graciano
para a edição de 1964 da Livraria Martins que fixa dois indivíduos movendo-se
como autômatos em meio a outros igualmente automatizados e à arranha-céus, a
ilustração de Dayse Startori enfatiza o indivíduo na sua solidão e na sua
liberdade que o traje mostra inexistente.
Neste romance de Dyonélio
Machado, o personagem, Maneco Manivela acaba de chegar a São Paulo vindo do Rio
de Janeiro onde cumprira pena de quase dois anos. Sua história se havia
iniciado no segundo romance de Dyonélio Machado, O louco do Cati. Partira de Porto Alegre para o litoral, levando
Norberto e o Maluco, que se lhes juntara, além dos amigos Leo e Luiz. Ao chegar
à praia, Norberto, assumindo os cuidados com o Maluco decide ficar e Maneco
Manivela e seus companheiros começam a viagem de volta. Os percalços dessa
viagem é assunto de outro romance, Desolação
que se inicia com o problema de embreagem no pequeno caminhão em que viajavam e
termina com o caminhão a se incendiar e Maneco Manivela, rodeado pelos
companheiros de viagem, por curiosos e por elementos da polícia.
Passos perdidos retoma a narrativa do que aconteceu depois. Uma repetição, na cidade
grande e desconhecida dessas últimas horas em que Maneco Manivela ainda era um
homem livre na cidadezinha do sul.
Mal chega a São Paulo ele procura, primeiro uma mulher como sonhara tanto na prisão; depois, a “ligação” que o deveria ajudar a seguir viagem para o Rio Grande do Sul.
O romance se faz,
inteiramente, desses passos perdidos, uma deambulação em busca das pessoas que
lhe fornecessem os meios de que precisava para saldar os gastos com a pensão e
com a passagem de trem; depois, com a quantia para a fiança que lhe fora
exigida e que devia ser paga em curto espaço de tempo.
Sob a chuva ou garoa, sob a
névoa, Maneco Manivela caminha por São Paulo num itinerário de ruas e logradouros
– rua do Hipódromo, rua Barão, Itaboca, São Caetano, Cantareira, Quinze, Irmã
Simpliciana, Largo de São Bento, Largo do Tesouro, Avenida São João – em que a
cidade vai se mostrando. Nas formas, o perfil de seus arranha-céus, uma escadaria
de aspecto antigo; e nos tons, a
claridade leitosa de um momento do dia, os reflexos sobre a folhagem da
praça no anoitecer chuvoso. Breves cenas de seu burburinho cotidiano, Maneco Manivela acompanha nas vinte e quatro
horas compreendidas entre o momento em que chegou na cidade e aquele em que
desce do bonde para não ser preso. Um tempo que se escoa entre
um telefonema e outro, entre um café e outro, consumido em hesitações e ineficazes
estratégias.
Quando, finalmente, após
silêncios, diálogos alimentados de evasões e desencontros consegue o dinheiro
que lhe permitiria pagar a pensão e partir, surge-lhe o oficial de justiça
intimando-o a se apresentar ao juiz para pagar a fiança arbitrada a propósito
do processo instaurado no Rio Grande do Sul contra ele por crime de incêndio.
A procura recomeça. Sai em
busca de um ex-companheiro de cadeia que o ajude a obter o dinheiro ou a
encontrar quem se disponha a ser fiador. E mal se alinhavam possíveis soluções,
ele ainda mergulhado em incertezas quando surge, em má hora, o imprevisto que o
deve conduzir a outro recomeço. Um pouco antes perguntara sobre a rua Itaboca
onde imagina encontrar a solução ou a felicidade talvez possível.
Porque Maneco Manivela não
está apenas preso à desconfianças, prováveis suspeitas, ameaças de prisão,
desconfortos materiais mas à sua insegurança interior que o faz andar em
círculos repetitivos, postergando-lhe cada uma de suas ações. E que o leva a
desejar uma âncora, um porto seguro, um refúgio. Desejo que o acompanha pelas
horas que passam e pelas ruas que percorre e se expressa na fabulação cuja figura
central é Dorinha, a prostituta quase criança da rua Itaboca.
Ao descer do bonde e se
perder na noite escura e chuvosa Maneco Manivela talvez chegue até ela, talvez
seja mais uma vez interceptado pelas suas dúvidas, talvez receba voz de prisão.
Dyonélio Machado não lhe
define o destino. Foi-lhe suficiente tê-lo mostrado como um cidadão do Continente.
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