domingo, 23 de julho de 1995

O olhar de Dorinha

          Maneco Manivela era mecânico até o dia em que foi convidado para a vigem cujo fito era o litoral. Ignorava estar ajudando Norberto, militante de um partido político ilegal, a fugir de Porto Alegre. Na volta, surge um problema no pequeno caminhão em que viajava com Leo e Luiz e ao procurar-lhe uma solução se vê observado e, aos poucos, sente que um cerco vai se estabelecendo ao seu redor. Acuado, põe fogo no caminhão e é preso. No interrogatório,  buscam suas ligações com o Movimento ao qual pensam que ele pertence e, aleatoriamente, é enviado, como preso político, ao Rio de Janeiro. Ao cabo de dois anos é libertado e inicia a viagem de volta para o Sul. Os parcos meios de que dispõe lhe permitem chegar a São Paulo onde, então, deve encontrar novos recursos para seguir e onde, o primeiro que faz é procurar uma mulher como tanto desejara nos seus dias de prisão.

          E no baixo meretrício, num casebre úmido, escuro, com cheiro de mofo conhece Dorinha, rapariguinha nova, nada feia, de ar enfermiço.

          O encontro é, talvez, igual ou semelhante a qualquer outro em tais circunstâncias, mas na solidão e no desamparo em que se encontra, Maneco Manivela atribui a essa mulher fortuita, significados prenhes do que deseja nesses momentos em que deambula por São Paulo em busca de ajuda e do que deseja na modesta vida futura que vislumbra.

          Dorinha, quase uma menina, prostituta pobre de carinha magra e séria que na sua imaginação vai lhe aparecendo ou como alguém solidário que lhe prestaria ajuda na difícil luta para conseguir o numerário da fiança, ou que simplesmente lhe daria o dinheiro necessário. Ou como aquela que aceitaria ir embora com ele para constituir família no sul e cuja presença, cujo calor humano da sua condição de mulher seria suficiente para lhe retemperar as forças.

          E Maneco Manivela em meio a sentimentos que ora o fazem desejar estar com ela outra vez, ora o levam a pensar que deve esquecê-la ou que já a esqueceu vai criando cenas em que se propõe passar a noite com ela, ainda que para isso tenha que enfrentar um possível cáften; outras em que formula suas intenções em tirá-la dali e jamais querer conhecer detalhes de sua profissão embora possa também pensar que esse é o mundo ao qual ela pertence, onde se acha aparafusada e, consequentemente, de onde não poderá ser afastada. Então, ele refaz a sua história de conhecido itinerário: a sedução, o repúdio da família, o abandono e a chegada na zona. E reflete e discute sobre a prostituição e esse mundo que se cria a seu redor: um cancro, originado ou de uma predisposição ao vício ou de uma errônea formação social.E pensa como Dorinha gasta seus dias quando não está trabalhando e pensa como é o seu dormir: De lado. Cara pequena, transparente. Seus olhos estão fechados, quer dizer o rosto apagado – porque é aquele olhar que lhe acende a face, acende-a duma expressão de vigilância muda e resignada.

          Na verdade é o olhar de Dorinha que o irá acompanhar, que o manterá preso a essa ilusão, para ele, imprescindível. Um olhar que se mostra mudo e atento, silencioso e vigilante, interrogativo e curioso, revelando uma terrível experiência. Um olhar de sentir medo onde erra uma vaga tristeza antiga.

          Delineando o personagem feminino e mantendo-o presente ao longo da narrativa é um olhar que sobretudo fala do precário mundo interior de Maneco Manivela, o operário que sem o procurar e sem o querer foi lançado na grande aventura de ver mudada a sua visão de mundo.

          No romance de Dyonélio Machado é, sem dúvida, expressão de uma técnica narrativa que ao fazer de um personagem ausente uma presença constante e sugestiva mostra o quanto é rico o domínio que o autor gaúcho tem de seu ofício de narrar. Em Passos perdidos (São Paulo, Livraria Martins Editora ) esse domínio é apenas uma entre suas muitas outras qualidades.

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