Maneco Manivela era mecânico
até o dia em que foi convidado para a vigem cujo fito era o litoral. Ignorava estar ajudando
Norberto, militante de um partido político ilegal, a fugir de Porto Alegre. Na
volta, surge um problema no pequeno caminhão em que viajava com Leo e Luiz e ao
procurar-lhe uma solução se vê observado e, aos poucos, sente que um cerco vai
se estabelecendo ao seu redor. Acuado, põe fogo no caminhão e é preso. No interrogatório, buscam suas ligações com o Movimento ao qual
pensam que ele pertence e, aleatoriamente, é enviado, como preso político, ao
Rio de Janeiro. Ao cabo de dois anos é libertado e inicia a viagem de volta
para o Sul. Os parcos meios de que dispõe lhe permitem chegar a São Paulo onde,
então, deve encontrar novos recursos para seguir e onde, o primeiro que faz é
procurar uma mulher como tanto desejara nos seus dias de prisão.
E no baixo meretrício, num casebre úmido, escuro, com cheiro de mofo conhece Dorinha, rapariguinha nova, nada feia, de ar enfermiço.
O encontro é, talvez, igual
ou semelhante a qualquer outro em tais circunstâncias, mas na solidão e no
desamparo em que se encontra, Maneco Manivela atribui a essa mulher fortuita,
significados prenhes do que deseja nesses momentos em que deambula por São
Paulo em busca de ajuda e do que deseja na modesta vida futura que vislumbra.
Dorinha, quase uma menina, prostituta pobre de carinha magra e séria que na sua
imaginação vai lhe aparecendo ou como alguém solidário que lhe prestaria ajuda
na difícil luta para conseguir o numerário da fiança, ou que simplesmente lhe
daria o dinheiro necessário. Ou como aquela que aceitaria ir embora com ele
para constituir família no sul e cuja presença, cujo calor humano da sua condição de mulher seria suficiente para
lhe retemperar as forças.
E Maneco Manivela em meio a
sentimentos que ora o fazem desejar estar com ela outra vez, ora o levam a
pensar que deve esquecê-la ou que já a esqueceu vai criando cenas em que se
propõe passar a noite com ela, ainda que para isso tenha que enfrentar um
possível cáften; outras em que formula suas intenções em tirá-la dali e jamais querer conhecer detalhes de sua profissão embora possa também pensar que esse é o
mundo ao qual ela pertence, onde se acha
aparafusada e, consequentemente, de onde não poderá ser afastada. Então, ele refaz a sua
história de conhecido itinerário: a sedução, o repúdio da família, o abandono e
a chegada na zona. E reflete e discute sobre a prostituição e esse mundo que se
cria a seu redor: um cancro, originado ou de uma predisposição ao vício ou de
uma errônea formação social.E pensa como Dorinha gasta
seus dias quando não está trabalhando e pensa como é o seu dormir: De lado. Cara pequena, transparente. Seus
olhos estão fechados, quer dizer o rosto apagado – porque é aquele olhar que
lhe acende a face, acende-a duma expressão de vigilância muda e resignada.
Na verdade é o olhar de
Dorinha que o irá acompanhar, que o manterá preso a essa ilusão, para ele, imprescindível.
Um olhar que se mostra mudo e atento, silencioso e vigilante, interrogativo e
curioso, revelando uma terrível experiência. Um olhar de sentir medo
onde erra uma vaga tristeza antiga.
Delineando o personagem
feminino e mantendo-o presente ao longo da narrativa é um olhar que sobretudo
fala do precário mundo interior de Maneco Manivela, o operário que sem o
procurar e sem o querer foi lançado na grande aventura de ver mudada a sua
visão de mundo.
No romance de Dyonélio Machado
é, sem dúvida, expressão de uma técnica narrativa que ao fazer de um personagem
ausente uma presença constante e sugestiva mostra o quanto é rico o domínio que
o autor gaúcho tem de seu ofício de narrar. Em Passos perdidos (São Paulo, Livraria Martins Editora ) esse domínio é
apenas uma entre suas muitas outras qualidades.

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