domingo, 9 de julho de 1995

Pablo Neruda no rio azul

          No dia 12 de julho de 1904 nascia Pablo Neruda em Parral, essa pequena localidade chilena cujo nome, mais tarde, o poeta irá imortalizar em algum poema ao se submeter a esse impulso que o crítico Emir Rodriguez Monegal chama de impulso auto-biográfico e memorialista.
         A primeira expressão desse registro de sua vida aparece no XV Canto, “Yo soy” do Canto general. No poema “La frontera”, que inicia a série, são lembranças infantis das suas relações com o limitado mundo em que viveu seus primeiros anos – a casa sem cidade, apenas protegida por reses e macieiras – um mundo pródigo de formas, cores e perfumes.
         São essas, certamente, as mais remotas imagens que pode recordar: um nascer para o mundo o que, então, explicaria a data de seu nascimento, acrescentada ao título do poema.
         De seu nascimento, irá dizer nos primeiros versos de Memorial de Isla Negra, livro que publica em 1964, onde evoca o passado, não a partir de uma linha cronológica e circunstacial mas reconstruindo poeticamente o que lhe foi de felicidade ou de tristeza. No poema “Nacimiento” faz fé de suas raízes:  a lembrança da mãe morta, a certeza de ser um, dentre os muitos outros que ali, na região montanhosa, também nasceram.
         Uma visão de mundo na qual ele não pode se dissociar dos demais, separar-se daquilo que o rodeia. Pablo Neruda quando fala de si mesmo, fala de todos os homens: impossibilidade de existir sem ver os outros, sem sentir os outros.
         Em Confieso que he vivido, seu livro de memória, registra um de seus aniversários. Visitava a China e Jorge Amado e Zélia Gattai eram seus companheiros de viagem. Num barco onde se amontoavam mil passageiros, navegaram pelo rio Yang Tsé tendo como chefe da delegação o poeta chinês Ai Chiang, posteriormente exilado para o deserto de Gobi e impedido de assinar seus versos.
         Nessa viagem pelo rio, como anfitrião, ele fazia as honras da mesa que se cobria de legumes dourados e verdes, peixes acri-doces, patos e frangos guisados de estranha maneira, sempre deliciosa.
         Uma tal fartura não impediu, porém, que os convidados sentissem falta da comida ocidental, induzindo Zélia Gattai e Matilde Urrutia, a mulher de Pablo Neruda, a planejarem, para festejar seu aniversário, um frango assado e uma breve salada de tomate e cebola picada.
         Para isso, tiveram que realizar idas e vindas e conversações com o chefe da delegação chinesa que argumentava estar o país mergulhado em austeridade e, portanto, fora de cogitação – Mao Tse Tung já havia renunciado a fazê-lo – comemorar um aniversário.
         As duas mulheres, no entanto, foram inflexíveis e Pablo Neruda, nesse 12 de julho de 1957, teve à mesa o frango assado, prêmio dourado daquele debate. Ali perto, na grande mesa preparada especialmente para os convidados, como em todos os outros dias, luziam as travessas fulgurantes.
         Mas, já os olhos de Pablo Neruda se haviam pousado nas centenas de chineses que viajavam apertados no barco onde os estrangeiros recebiam privilégios. Já se haviam pousado, igualmente, nas margens do rio onde o definitivamente extraordinário era o trabalho do homem em qualquer minúsculo pedaço de terra que emergisse dentre as rochas: na imensa altura, no cimo dos muros verticais, onde haja uma dobra guardando um pouco de terra vegetal, ali há um homem chinês cultivando-o. A mãe terra chinesa é ampla e dura. Ela disciplinou e deu forma ao homem, transformando-o em instrumento de labuta incansável, sutil e tenaz. Essa combinação de ampla terra, extraordinário trabalho humano e eliminação gradual de todas as injustiças, fará florescer a bela, extensa e profunda humanidade chinesa.
         Palavras que deveriam emocionar os homens do Continente, habitantes de uma terra tão vasta quanto generosa se, na sua grande maioria – os mazombos, como os chama Vianna Moog - não pensassem somente em espoliá-la.
         Porque essa visão do poeta, verdadeiro sonho de esperança, seria certamente possível na China e em qualquer outro lugar em que os homens fossem dominados pelo desejo de construir um país.
         O que parece não existir nessas plagas onde aportaram os ibéricos.

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