domingo, 30 de julho de 1995

Vôo sem tarifa

          E uma pequena troça o ter-se citado – e na sua verdadeira condição de escritor peruano – no final do conto “Muerte de Sevilla en Madrid”.
 
          Sevilla, o personagem, se suicidou, atirando-se pela janela do quarto no qual se hospedava em Madrid. O mesmo quarto em que, meses depois, estariam o escritor Bryce Echenique e sua mulher de onde, olhando pela janela, viram a mesma paisagem que vira Sevilla antes de morrer e que os levou a pensar, como ele também o fizera, nas montanhas do Peru.
 
          Por se chamar Sevilla é que ele viera a Madrid. Fora uma regra do jogo: aquele cujo sobrenome fosse igual ao de uma cidade da Espanha, ganharia uma passagem de avião pela Companhia Aérea que então se instalava no país, para Madrid, além da hospedagem e dos passeios de praxe.
 
          Humilde funcionário público, Sevilla se vê, de repente, ganhador de um concurso e levado às cerimônias  de ocasião e a realizar a viagem e todos os programas estabelecidos. Das mãos de um relações públicas dos escritórios da Companhia Aérea, em Lima, passou para as mãos de um relações públicas dos escritórios da Companhia Aérea em Madrid. Tímido, inexperiente, ingênuo, ninguém lhe dava ouvidos, nem sua vontade era levada a sério. Sem ter quem o escutasse nas suas mais pequenas reivindicações, obrigado a passar esses dias submisso às opções alheias e com a saúde em frangalhos, Sevilla não pode fugir à atração da janela.

          Antes disso, porém, já havia perdido a noção de tudo quanto vivia. Esquecera já o que fizera e onde estivera nessa noite que passou em claro como que esperando algo. Pela manhã, diante da janela, se lançou no voo breve que o levaria para a liberdade ou para ser feliz.
 
          É o momento em que o relato se torna parco, conciso. É anunciado que o que aconteceu foi coisa de segundos, pelas nove da manhã. Que Sevilla se encolheu, fechou os olhos e, num instante de coragem, passou para o vazio. Informações rápidas, rodeadas de outras: o que viu nessa hora e que foi o mesmo que viu seu autor meses depois; que suas costas foram mil vezes fotografadas pelo japonês seu companheiro de viagem; que o lançar-se pela janela, foi como entrar no cinema sem entrada nesse dia longínquo de sua infância.

          Até então, essa para ele desmesurada aventura, de sair de sua casa pobre e partir para Madrid, havia sido narrada com vagar, numa linha sinuosa, enriquecida de trocista mordacidade que, se por um lado o mostra vítima de um mundo estereotipado e medíocre, por outro, não perdoa o incongruente e o ridículo desse mundo.
           Assim, os clichês: o norte-americano, que só pensa em tomar cerveja; o japonês, que tudo fotografa; o guia turístico, determinando sempre os mesmos itinerários e o que é digno de ser visto. Assim, as pequenas misérias de uma sociedade classista onde os que se consideram elite são seguidores prazerosos dos modelos forâneos.
          Nascido em 1939, no Peru, Alfredo Bryce Echenique foi Prêmio Casa de las Américas, em 1968, na categoria Contos. É desse ano a publicação de seu primeiro livro Huerto Cerrado. Dois anos depois, o aparecimento do romance Un mundo para Julius reafirmaria essa trajetória de humor e de crítica, iniciada nos seus primeiros textos onde não poupa a elite limenha, certamente igual a todas as elites ou, pelo menos, aquelas que, no Continente, assim se proclamam.
 
          “Muerte de Sevilla en Madrid” foi escrito em Paris em 1971 e faz parte de seus Cuentos completos. Separadamente, também foi publicado pela Alianza Editorial de Madrid em 1994, quando Alfredo Bryce Echenique já havia publicado outro livro de contos La felicidad já já e os romances Tantas veces Pedro e La vida exagerada de Martin Romaña.
 
          Os vinte anos que passaram não o envelheceram. Continua a ser um texto brilhante e contundente. Para aqueles que sabem também ler nas entrelinhas.

domingo, 23 de julho de 1995

O olhar de Dorinha

          Maneco Manivela era mecânico até o dia em que foi convidado para a vigem cujo fito era o litoral. Ignorava estar ajudando Norberto, militante de um partido político ilegal, a fugir de Porto Alegre. Na volta, surge um problema no pequeno caminhão em que viajava com Leo e Luiz e ao procurar-lhe uma solução se vê observado e, aos poucos, sente que um cerco vai se estabelecendo ao seu redor. Acuado, põe fogo no caminhão e é preso. No interrogatório,  buscam suas ligações com o Movimento ao qual pensam que ele pertence e, aleatoriamente, é enviado, como preso político, ao Rio de Janeiro. Ao cabo de dois anos é libertado e inicia a viagem de volta para o Sul. Os parcos meios de que dispõe lhe permitem chegar a São Paulo onde, então, deve encontrar novos recursos para seguir e onde, o primeiro que faz é procurar uma mulher como tanto desejara nos seus dias de prisão.

          E no baixo meretrício, num casebre úmido, escuro, com cheiro de mofo conhece Dorinha, rapariguinha nova, nada feia, de ar enfermiço.

          O encontro é, talvez, igual ou semelhante a qualquer outro em tais circunstâncias, mas na solidão e no desamparo em que se encontra, Maneco Manivela atribui a essa mulher fortuita, significados prenhes do que deseja nesses momentos em que deambula por São Paulo em busca de ajuda e do que deseja na modesta vida futura que vislumbra.

          Dorinha, quase uma menina, prostituta pobre de carinha magra e séria que na sua imaginação vai lhe aparecendo ou como alguém solidário que lhe prestaria ajuda na difícil luta para conseguir o numerário da fiança, ou que simplesmente lhe daria o dinheiro necessário. Ou como aquela que aceitaria ir embora com ele para constituir família no sul e cuja presença, cujo calor humano da sua condição de mulher seria suficiente para lhe retemperar as forças.

          E Maneco Manivela em meio a sentimentos que ora o fazem desejar estar com ela outra vez, ora o levam a pensar que deve esquecê-la ou que já a esqueceu vai criando cenas em que se propõe passar a noite com ela, ainda que para isso tenha que enfrentar um possível cáften; outras em que formula suas intenções em tirá-la dali e jamais querer conhecer detalhes de sua profissão embora possa também pensar que esse é o mundo ao qual ela pertence, onde se acha aparafusada e, consequentemente, de onde não poderá ser afastada. Então, ele refaz a sua história de conhecido itinerário: a sedução, o repúdio da família, o abandono e a chegada na zona. E reflete e discute sobre a prostituição e esse mundo que se cria a seu redor: um cancro, originado ou de uma predisposição ao vício ou de uma errônea formação social.E pensa como Dorinha gasta seus dias quando não está trabalhando e pensa como é o seu dormir: De lado. Cara pequena, transparente. Seus olhos estão fechados, quer dizer o rosto apagado – porque é aquele olhar que lhe acende a face, acende-a duma expressão de vigilância muda e resignada.

          Na verdade é o olhar de Dorinha que o irá acompanhar, que o manterá preso a essa ilusão, para ele, imprescindível. Um olhar que se mostra mudo e atento, silencioso e vigilante, interrogativo e curioso, revelando uma terrível experiência. Um olhar de sentir medo onde erra uma vaga tristeza antiga.

          Delineando o personagem feminino e mantendo-o presente ao longo da narrativa é um olhar que sobretudo fala do precário mundo interior de Maneco Manivela, o operário que sem o procurar e sem o querer foi lançado na grande aventura de ver mudada a sua visão de mundo.

          No romance de Dyonélio Machado é, sem dúvida, expressão de uma técnica narrativa que ao fazer de um personagem ausente uma presença constante e sugestiva mostra o quanto é rico o domínio que o autor gaúcho tem de seu ofício de narrar. Em Passos perdidos (São Paulo, Livraria Martins Editora ) esse domínio é apenas uma entre suas muitas outras qualidades.

domingo, 16 de julho de 1995

Quase a liberdade

          Logo no primeiro plano a figura de um homem de costas, com a roupa listada dos presidiários que lhe envolve os pés, o pescoço e a cabeça. Está parado no meio dos trilhos de uma rua pavimentada que avança e se perde na curva. À esquerda, numa esquina, um poste cuja luz se espraia, amarela. À direita, seguem-se os sobrados, todos em tons de ocre sobre os quais um céu azul forte se mostra sem nuvens. Não há vida nas casas, não há vida nas ruas e o homem está lá, tendo diante de  si um caminho.

          É a capa de Dayse Startori para Passos perdidos, publicado pela Editora Moderna de São Paulo, em 1982. Ao contrário daquela de Clóvis Graciano para a edição de 1964 da Livraria Martins que fixa dois indivíduos movendo-se como autômatos em meio a outros igualmente automatizados e à arranha-céus, a ilustração de Dayse Startori enfatiza o indivíduo na sua solidão e na sua liberdade que o traje mostra inexistente.

          Neste romance de Dyonélio Machado, o personagem, Maneco Manivela acaba de chegar a São Paulo vindo do Rio de Janeiro onde cumprira pena de quase dois anos. Sua história se havia iniciado no segundo romance de Dyonélio Machado, O louco do Cati. Partira de Porto Alegre para o litoral, levando Norberto e o Maluco, que se lhes juntara, além dos amigos Leo e Luiz. Ao chegar à praia, Norberto, assumindo os cuidados com o Maluco decide ficar e Maneco Manivela e seus companheiros começam a viagem de volta. Os percalços dessa viagem é assunto de outro romance, Desolação que se inicia com o problema de embreagem no pequeno caminhão em que viajavam e termina com o caminhão a se incendiar e Maneco Manivela, rodeado pelos companheiros de viagem, por curiosos e por elementos da polícia.

          Passos perdidos retoma a narrativa do que aconteceu depois. Uma repetição, na cidade grande e desconhecida dessas últimas horas em que Maneco Manivela ainda era um homem livre na cidadezinha do sul.

          Mal chega a São Paulo ele procura, primeiro uma mulher como sonhara tanto na prisão; depois, a “ligação” que o deveria ajudar a seguir viagem para o Rio Grande do Sul.

          O romance se faz, inteiramente, desses passos perdidos, uma deambulação em busca das pessoas que lhe fornecessem os meios de que precisava para saldar os gastos com a pensão e com a passagem de trem; depois, com a quantia para a fiança que lhe fora exigida e que devia ser paga em curto espaço de tempo.

          Sob a chuva ou garoa, sob a névoa, Maneco Manivela caminha por São Paulo num itinerário de ruas e logradouros – rua do Hipódromo, rua Barão, Itaboca, São Caetano, Cantareira, Quinze, Irmã Simpliciana, Largo de São Bento, Largo do Tesouro, Avenida São João – em que a cidade vai se mostrando. Nas formas, o perfil de seus arranha-céus, uma escadaria de aspecto antigo; e nos tons, a claridade leitosa de um momento do dia, os reflexos sobre a folhagem da praça no anoitecer chuvoso. Breves cenas de seu burburinho cotidiano,  Maneco Manivela acompanha nas vinte e quatro horas compreendidas entre o momento em que chegou na cidade e aquele em que desce do bonde para não ser preso.    Um tempo que se escoa entre um telefonema e outro, entre um café e outro, consumido em hesitações e ineficazes estratégias.

          Quando, finalmente, após silêncios, diálogos alimentados de evasões e desencontros consegue o dinheiro que lhe permitiria pagar a pensão e partir, surge-lhe o oficial de justiça intimando-o a se apresentar ao juiz para pagar a fiança arbitrada a propósito do processo instaurado no Rio Grande do Sul contra ele por crime de incêndio.

          A procura recomeça. Sai em busca de um ex-companheiro de cadeia que o ajude a obter o dinheiro ou a encontrar quem se disponha a ser fiador. E mal se alinhavam possíveis soluções, ele ainda mergulhado em incertezas quando surge, em má hora, o imprevisto que o deve conduzir a outro recomeço. Um pouco antes perguntara sobre a rua Itaboca onde imagina encontrar a solução ou a felicidade talvez possível.

          Porque Maneco Manivela não está apenas preso à desconfianças, prováveis suspeitas, ameaças de prisão, desconfortos materiais mas à sua insegurança interior que o faz andar em círculos repetitivos, postergando-lhe cada uma de suas ações. E que o leva a desejar uma âncora, um porto seguro, um refúgio. Desejo que o acompanha pelas horas que passam e pelas ruas que percorre e se expressa na fabulação cuja figura central é Dorinha, a prostituta quase criança da rua Itaboca.

          Ao descer do bonde e se perder na noite escura e chuvosa Maneco Manivela talvez chegue até ela, talvez seja mais uma vez interceptado pelas suas dúvidas, talvez receba voz de prisão.

          Dyonélio Machado não lhe define o destino. Foi-lhe suficiente tê-lo mostrado como um cidadão do Continente.

domingo, 9 de julho de 1995

Pablo Neruda no rio azul

          No dia 12 de julho de 1904 nascia Pablo Neruda em Parral, essa pequena localidade chilena cujo nome, mais tarde, o poeta irá imortalizar em algum poema ao se submeter a esse impulso que o crítico Emir Rodriguez Monegal chama de impulso auto-biográfico e memorialista.
         A primeira expressão desse registro de sua vida aparece no XV Canto, “Yo soy” do Canto general. No poema “La frontera”, que inicia a série, são lembranças infantis das suas relações com o limitado mundo em que viveu seus primeiros anos – a casa sem cidade, apenas protegida por reses e macieiras – um mundo pródigo de formas, cores e perfumes.
         São essas, certamente, as mais remotas imagens que pode recordar: um nascer para o mundo o que, então, explicaria a data de seu nascimento, acrescentada ao título do poema.
         De seu nascimento, irá dizer nos primeiros versos de Memorial de Isla Negra, livro que publica em 1964, onde evoca o passado, não a partir de uma linha cronológica e circunstacial mas reconstruindo poeticamente o que lhe foi de felicidade ou de tristeza. No poema “Nacimiento” faz fé de suas raízes:  a lembrança da mãe morta, a certeza de ser um, dentre os muitos outros que ali, na região montanhosa, também nasceram.
         Uma visão de mundo na qual ele não pode se dissociar dos demais, separar-se daquilo que o rodeia. Pablo Neruda quando fala de si mesmo, fala de todos os homens: impossibilidade de existir sem ver os outros, sem sentir os outros.
         Em Confieso que he vivido, seu livro de memória, registra um de seus aniversários. Visitava a China e Jorge Amado e Zélia Gattai eram seus companheiros de viagem. Num barco onde se amontoavam mil passageiros, navegaram pelo rio Yang Tsé tendo como chefe da delegação o poeta chinês Ai Chiang, posteriormente exilado para o deserto de Gobi e impedido de assinar seus versos.
         Nessa viagem pelo rio, como anfitrião, ele fazia as honras da mesa que se cobria de legumes dourados e verdes, peixes acri-doces, patos e frangos guisados de estranha maneira, sempre deliciosa.
         Uma tal fartura não impediu, porém, que os convidados sentissem falta da comida ocidental, induzindo Zélia Gattai e Matilde Urrutia, a mulher de Pablo Neruda, a planejarem, para festejar seu aniversário, um frango assado e uma breve salada de tomate e cebola picada.
         Para isso, tiveram que realizar idas e vindas e conversações com o chefe da delegação chinesa que argumentava estar o país mergulhado em austeridade e, portanto, fora de cogitação – Mao Tse Tung já havia renunciado a fazê-lo – comemorar um aniversário.
         As duas mulheres, no entanto, foram inflexíveis e Pablo Neruda, nesse 12 de julho de 1957, teve à mesa o frango assado, prêmio dourado daquele debate. Ali perto, na grande mesa preparada especialmente para os convidados, como em todos os outros dias, luziam as travessas fulgurantes.
         Mas, já os olhos de Pablo Neruda se haviam pousado nas centenas de chineses que viajavam apertados no barco onde os estrangeiros recebiam privilégios. Já se haviam pousado, igualmente, nas margens do rio onde o definitivamente extraordinário era o trabalho do homem em qualquer minúsculo pedaço de terra que emergisse dentre as rochas: na imensa altura, no cimo dos muros verticais, onde haja uma dobra guardando um pouco de terra vegetal, ali há um homem chinês cultivando-o. A mãe terra chinesa é ampla e dura. Ela disciplinou e deu forma ao homem, transformando-o em instrumento de labuta incansável, sutil e tenaz. Essa combinação de ampla terra, extraordinário trabalho humano e eliminação gradual de todas as injustiças, fará florescer a bela, extensa e profunda humanidade chinesa.
         Palavras que deveriam emocionar os homens do Continente, habitantes de uma terra tão vasta quanto generosa se, na sua grande maioria – os mazombos, como os chama Vianna Moog - não pensassem somente em espoliá-la.
         Porque essa visão do poeta, verdadeiro sonho de esperança, seria certamente possível na China e em qualquer outro lugar em que os homens fossem dominados pelo desejo de construir um país.
         O que parece não existir nessas plagas onde aportaram os ibéricos.

domingo, 2 de julho de 1995

A resposta

          Em 19 de junho de 1985 morria, em Porto Alegre, o romancista Dyonélio Machado. Nascido sob a égide da violência, para usar a expressão com que Antonio Hohfeldt inicia o seu estudo sobre o escritor para o nº 10 de Letras Riograndenses (Porto Alegre, IEL, 1987), é inegável ter sido a violência uma presença no seu destino de menino pobre que aos sete anos viu o pai assassinado e que mais tarde, por convicções políticas, passaria dois anos na prisão.
          No entanto, a pobreza não foi o bastante para impedir que se tornasse médico, nem as perseguições o fizeram desistir de lutar pelas idéias em que acreditava, nem o descaso dos editores e as críticas adversas lhe tiraram a vontade de escrever.
          Um pobre homem, sua primeira obra de ficção, um livro de contos, data de 1927, publicado pela Globo de Porto Alegre. Somente em 1935 apareceria a segunda, um romance que recebeu o Prêmio Machado de Assis: Os ratos. A ele se seguiram O louco do Cati (1942), Desolação (1944), Passos perdidos (1946), Deuses econômicos (1966), Prodígios (1980), Endiabrados (1980), Sol subterrâneo (1981), Nuanças (1982), Ele vem do fundão (1982), Fada (1982).

          Fada é a breve história de um amor contrariado pelo interesse de Elias Jafaldo em casar sua única filha com o fazendeiro cujas terras fazem limite com as suas.
          Estabelecido o impasse com o pedido de casamento, o relato que até então estava centrado em Fada, passa a ser feito a partir das emoções de D’Artagnan Laval que, embora a amando, não se decide a lutar por esse amor. E se refugia na feitura de uma obra de ficção depois de ultrapassar seu primeiro dilema: ou escrever à mão e depois passar à máquina ou escrever diretamente à máquina.
          Também se refugia num bairro da cidade onde tem por vizinho Dionísios Madureira, o escritor maldito. Sem dúvida um alter-ego de Dyonélio Machado o que é claramente discernível não apenas na primeira sílaba dos dois nomes mas na similitude dos destinos.
          Dionísios Madureira, médico e escritor, preso por ter publicado um livro considerado perigoso, é a voz de Dyonélio Machado, diagnosticando o momento em que vive: a força ditando a moral o que significa uma volta ao passado, o misticismo do mundo católico a se desfazer em seitas.
          É um escritor cujo nome é dito aos cochichos e cuja obra é lida por jovens dados à Literatura enquanto a classe atuante dos leitores, dos críticos de jornais, dos editores do momento o consideram um escritor passado, morto há muito tempo. Talvez porque resultasse desagradável ou muito penoso a essa classe, a esses críticos, a esses editores se descobrirem numa ficção que retratava mimeticamente o grupo social a que pertenciam. Porque Presságios, o livro que Dionisios Madureira escreveu, é um romance de costumes, tendo a luta de classes num enfoque o seu tanto original: a extinção progressiva e fatal da pequena burguesia.
          No que se refere à criação literária, também um alter-ego, o próprio D’Artagnan Laval. Autor de uma obra, “Fantasia”, como a Trilogia da Libertação de Dyonélio Machado cujos personagens pertencem ao mundo da mitologia grega e com um claro sentido político-social que foi recebida com o encarniçamento da crítica ao considerar que tudo lhe faltava, não tinham técnica, não tinham lógica, não tinham atualidade.
          Quase com essas mesmas palavras, o “veredictum” de Moisés Vellinho sobre O louco do Cati, romance que Dyonélio Machado publicou em 1942. O futuro mostraria que o crítico gaúcho não tinha razão. Muitos anos depois, essa obra de Dyonélio Machado seria reabilitada (e assim foi também para a obra de seu personagem) embora, com certeza, sobre ela não tenham sido feitas, ainda, uma apreciação que, detalhadamente, lhe enumere as qualidades e, sagaz, saiba interpretá-la.
          Antes que essa justiça crítica fosse feita, morria, aos 89 anos, Dyonélio Machado. Não sem antes por, um ou outro, pingo nos is. Porque Fada, essa pequena obra curiosa – como que estranha às demais que ele escreveu – passou a cumprir um papel certamente não negligenciável ao abrigar nas suas páginas esses “alter-egos” do velho escritor.
          Que, afinal, achou um jeito de ir dizendo, como quem não quer nada, o que, certamente, precisava ser dito.