domingo, 14 de maio de 1995

A viagem


          Em 1942, foi publicado O louco do Cati. Brincando, Dyonélio Machado dizia ter tido o livro quatro leitores: sua filha, Mário de Andrade, João Guimarães Rosa e Flávio Moreira da Costa que durante muito tempo lutou pela reedição do romance, convicto de que todo brasileiro consciente deveria lê-lo.

          No entanto, na década de quarenta, quando o livro apareceu – com as raras e no caso, verdadeiramente honrosas exceções, os autores de Macunaíma e de Grande sertão: veredas – a crítica lhe foi sobretudo adversa, por vezes, severamente drástica. Talvez por não ter condições de discernir quanto O Louco do Cati se mostrava inovador na literatura brasileira da época.

          A viagem iniciada pelo Maluco num bonde de Porto Alegre, e, após passar por Palmares, Quintão, Cidreira, Tramandaí, Capão da Canoa, Torres,  Araranguá,Cresciúma, Urussanga, Capela, Orleãos, Palhoça, Estreito, Florianópolis,Santos, Rio de Janeiro, São Paulo,  Lages, Vacaria, São João de Montengro ,Caxias,Antonio Prado, Santa Maria, Cacequi, Rosário, Santana do Livramento, Cati, terminada meses depois, exatamente no lugar que, desde criança, lhe alimentava o medo, é um fio condutor de quadros breves, cenas cotidianas de vidas muito simples. Pobres aventuras em meio às quais se insere a experiência da prisão. E momentos passageiros, situações, personagens vão mostrando a realidade de um trato social que se nutre das já conhecidas e como que imutáveis discrepâncias.

         Presença constante, a do Maluco, do louco, embora em cada um dos capítulos somente uma referência, umas poucas linhas lhe sejam dedicadas.

          Submisso às vontades e decisões alheias – muito poucas vezes manifesta o seu querer – é como figura de fundo cuja função seja apenas justificar algo que se encontra além da narrativa.

          Porém seu feio e magro aspecto físico, os poucos gestos que esboça e, principalmente, suas lembranças e o olhar para um mundo que lhe é alheio ou do qual é marginal, fazem dele uma figura comovente.

          O leve repuxo dos cantos dos lábios, um sorriso, talvez; breves e parcas frases murmuradas; o desejo de tocar objetos desconhecidos; essa dificuldade em usar as mãos que sempre erram, que sempre se enganam e mais do que tudo o estender a mão para se despedir, o embevecimento diante da geada quando volta para o sul, o se atrapalhar quando lhe perguntam o nome, mostram um ser desprotegido, desamparado.

          O Maluco recebe as roupas e a comida que lhe dão e parece tranqüilo, vivendo perto daqueles que o aceitam como é. De seu, apenas o medo do qual não se liberta, medo que lhe vem das histórias do Cati, um subestado nos confins do Rio Grande do Sul onde o poder nas mãos de um homem tudo lhe permite. O general João Francisco, a hiena do Cati, em nome da ordem pública pune por razões pessoais, comerciais, políticas, por qualquer razão, com a degola.

          O que o louco do Cati ouviu, o que presenciou quando criança lhe ficou incrustado na memória fazendo renascer o terror a qualquer palavra,a qualquer gesto que presuma agressivo.
          Igualmente seu, o momento do passado que retorna. Um leit-motif na narrativa quando ele se vê diante da obrigação de partir: a madrugada fria, o ruído de uma carruagem, o café nervoso, cheio de esperanças tristes e de apreensões, a pressa, o abraço na mãe e a voz convidando Tem lugar aqui no pescante.

          Assim, parte para a vida, levando junto o medo e a criança que sempre ficou. Refletida no olhar perdido, abismado diante do mar, alongado para o espaço, mergulhado longe. Olhar de sonâmbulo para o poço, olhar impotente e doce querendo proteção para que não o forcem a partir.

          Na viagem que o levou e que o trouxe de volta foi, o coitado, o digno de pena e os homens foram para ele, fraternos. Mas nem por isso, poupado da solidão e da arbitrariedade: para ele o Cati existiu.

          Na verdade, no Continente, o Cati sempre se renova.      
          E, talvez, nisso, os críticos não quiseram crer.
 







 

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