domingo, 19 de março de 1995

Noutros tempos

          Na opinião de Vargas Llosa, o autor de El mundo es ancho y ajeno é o primeiro romancista clássico do Peru. Esse romance de Ciro Alegria foi publicado em 1941. Antes dele, já haviam aparecido, em 1935, La serpiente de oro e, em 1938, Los perros hambrientos. Depois de muitos anos de silêncio, em 1963, Ciro Alegria publicou Duelo de caballeros.

          Absorvido por atividades que lhe asseguravam o sustento - o jornalismo, o rádio, a publicidade - e pela participação na vida política do país, o restante de sua obra foi sendo escrita em meio a percalços.

          Quando morreu, em 1967, uma grande parte dessa obra ainda ficaria inédita. Ensaios e relatos que seriam dados ao público apenas na década de setenta.

          De manuscritos quase ilegíveis, recopilados por Dora Varona, sua mulher, foram publicados sob o título Sueño y verdad de América, pela Editora Universo, numa edição sem data, treze relatos.

          O primeiro deles, que dá título ao livro, conta a chegada de Cristovão Colombo na América. As poucas horas vividas nas três caravelas que antecederam o grito "Terra" na madrugada desse 12 de outubro de 1492.

          Entre os demais, há o que trata do primeiro espanhol que se "aquerenciou", vivendo feliz com uma índia e três filhos; e outro que narra as peripécias de Rodrigo Niño, designado guardião de oitenta e seis galés que devia levar presos do porto de Callao no Peru a San Lúcar de Barrameda na Espanha. Em cada porto que ancoravam, alguns fugiam e ao chegar ao destino só lhe restou um para desembarcar. Em terra, ele também fugiu e diante das autoridades, Rodrigo Niño se apresentou de mãos vazias.

          Também conta Ciro Alegria a epopéia do espanhol que sobreviveu a um naufrágio e à vida solitária numa ilha deserta onde chegou apenas com seu punhal de marinheiro e onde viveu sete anos até ser resgatado por um navio, que finalmente, percebeu os sinais de fumaça que fazia.

          Ainda há as histórias de passageiros e eternos amores.

          São todas histórias reais, nessas crônicas dos primeiros tempos da América. Seu autores são por vezes citados por Ciro Alegria. Outras vezes, uma data ou a precisão de certos detalhes do relato deixam entrever a existência de um outro texto que lhe deu origem. No entanto, poderiam ser consideradas histórias inacreditáveis se não fosse já conhecida a capacidade que tem o Continente de permitir que nele aconteçam situações mirabolantes.

          E, mirabolante, foi, certamente, essa ação relâmpago de León Escobar.

          Ele viveu no Peru nas primeiras décadas do século XIX. Então, a luta pelo poder emergia em qualquer lugar do país e os contestadores, os sublevados, os revoltosos, alimentavam disputas sempre renovadas que se multiplicavam tanto quanto o número de caudilhos.

          Aquele que se instalava no Poder, muitas vezes, devia sair para perseguir outros grupos em prolongadas ações nos mais distantes lugares. Toda a nação ouvia tiros e rumor de sabres, diz Ciro Alegria.

          Na capital, o Conselho de Governo que devia responder pelo país, ficava sem uma força armada que possibilitasse garantir a ordem. A anarquia se instalou em Lima. Os sublevados, muitas vezes, pareciam bandidos e os bandidos, para justificar suas ações, atribuíam caráter político aos roubos e crimes que praticavam.

          E aconteceu num dia de dezembro de 1835: León Escobar, chefe de um bando que vivia do roubo, chegou na praça principal da cidade com as armas em riste. O bando gritava o nome do adversário político do então mandatário no Poder e, sem dificuldade, se adonou do Palácio do Governo.

          Aos Conselheiros que ocorreram às pressas, ele apôs suas exigências: sairia do palácio e da cidade se lhe fosse entregue a soma que solicitava.

          Com suas botas enlameadas, a camisa suada, as calças descoloridas, sentou-se na cadeira presidencial. No canto da mesa, pousado, seu chapéu de palha. Mas, em acorde com a sala de móveis dourados e grandes espelhos, León Escobar se põe a altura do papel que assumira. Recebeu de pé os Conselheiros, mandou-os sentar para discutir suas condições. E, tendo elas sido cumpridas, por sua vez, também cumpriu as suas, abandonando a cadeira presidencial duas horas depois de lá ter se sentado.

          Conclui Ciro Alegria: Considerando que o bandoleiro León Escobar deu a seu assalto um caráter político, pode se dizer que bateu todos os recordes da história dos golpes de Estado. Em todo o caso, que o feito tenha podido ocorrer, ou seja, que um bandoleiro tenha chegado a se sentar na cadeira presidencial é um sintoma do que foi a vida política de nossos países. Nuns mais, noutros menos, o desgoverno era o governo.

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