domingo, 26 de março de 1995

O gaúcho lirico


           Nasceu em 1857, num pequeno povoado da Galícia, Espanha. Mas, abstraindo os clássicos do gênero (Bartolomé Hidalgo, Hilário Ascasubi, José Hernándes, Antonio D. Lussich, Estanislao del Campo) sobressai entre os criadores da poesia gauchesca. Em muitas de suas composições conseguiu ultrapassar o momento de mero diletantismo por assuntos relacionados aos usos campeiros, característica da maior parte dos poetas que embora tenham alcançado popularidade e prestígio pouco significaram, diz o crítico Zum Felde, para a Literatura uruguaia.
           José Alanos Y Trelles, mais conhecido por seu pseudônimo El viejo Pancho, viveu perto de Montevidéu, numa região mais agrícola do que pastoril. Porém, adquiriu de tal maneira o tipo gaúcho que soube, então, expressar melhor do que ninguém dentro da poesia lírica moderna, os seus sentimentos assim como descrever a realidade dos campos.

         Em 1915, foi publicado pela editora Renacimiento de Montevidéu Paja Brava, pequeno livro de poemas que Alonso y Trelles diz serem feitos de versos toscos, desarmônicos, mal rimados.

           Talvez tenha escolhido somente uns poucos temas para inscrever nos quadros descritivos da vida gaúcha. Momentos de vida que já passaram e que permanecem apenas na lembrança de um velho. Mas, se nutrem de um lirismo até então inexistente na poesia gauchesca.

           Construídos todos na primeira pessoa - salvo uma ou outra exceção - os poemas contam de um amor que existiu no passado e do qual só resta o sofrimento daquele que foi vítima do abandono, da traição, do desdém.

           A traição, punida pelo corte da trança bem perto da nuca é apenas um gesto que não anula o cruel sentimento de perda que, então se instala em quem foi traído: Numa manhã aziaga, / que recordá-la não quero, / eu te cortei rente ao couro / com o fio de minha adaga / que assim em minha terra se paga / o desprezo não merecido / da mulher que ao esquecimento, deu um sagrado juramento, / e desprezou o sentimento / do gaúcho que a amou.

           O abandono, declarado na palavra "adeus"; ou, que de repente, é percebido na casa vazia: eu teria que encontrar meu rancho sozinho / como um pequeno ninho de passarinho / depois de voar a cria.

          E o desdém, o desdém assassino, maldito, o que amarga a vida, o que faz beber e leva à cruel humilhação de ver recusado o amor oferecido e deixa marca para toda a vida: deixem-me agonizar em campo aberto / o rosto para o céu / prá ver bem quando faça noite, / a adorada estrela / que roubou a luz de uma pupila / que envenenou toda a minha existência!

           E essa marca, cicatriz incurável será sempre a razão da confidência que, muitas vezes, desdenha tudo que não seja a figura da mulher que foi a causa de todas as penas, a ingrata, a de um coração cruel. E o sofrimento cristalizado na alma do que sofreu o desprezo ou o esquecimento.

           No poema "La montonera", quando se apresenta a hora da luta, todos têm, para por no chapéu, um pedaço de fita. E a voz do solitário lamenta não ter recebido de mãos femininas uma divisa bordada embora o nome daquela que ainda adoro, / nos meus lábios ao morrer, florescerá.

           E outro solitário é aquele cuja voz se dirige ao bodegueiro para lhe pedir que encha o copo de cachaça. Ao chegar em casa, de madrugada, encontrara rastro e a mulher, a moça mais linda que os olhos viram na terra inteira,  acordada. Para não lembrar que vira esses rastros se refugia no álcool.

           Na verdade, embora quase sempre se desconheçam os motivos que o pudor ou o medo de sofrer ainda mais impedem de serem ditos, trata-se sempre de um amor burlado. E é esse o tema central dos poemas. A ele se subordina tudo aquilo que deve estar presente na poesia gauchesca que, procurando fixar um tipo humano e sua realidade, em geral se aprisiona em recursos limitados.

           Profundamente líricos os versos de El viejo Pancho transcendem esses limites, expressando sentimentos que, talvez, possam lembrar exageros ou misoginias. Mas que, no entanto, continuam sendo ainda próprios do ser humano apesar do tempo que passa e das transformações que ocorrem na maneira de viver e de olhar o mundo.




domingo, 19 de março de 1995

Noutros tempos

          Na opinião de Vargas Llosa, o autor de El mundo es ancho y ajeno é o primeiro romancista clássico do Peru. Esse romance de Ciro Alegria foi publicado em 1941. Antes dele, já haviam aparecido, em 1935, La serpiente de oro e, em 1938, Los perros hambrientos. Depois de muitos anos de silêncio, em 1963, Ciro Alegria publicou Duelo de caballeros.

          Absorvido por atividades que lhe asseguravam o sustento - o jornalismo, o rádio, a publicidade - e pela participação na vida política do país, o restante de sua obra foi sendo escrita em meio a percalços.

          Quando morreu, em 1967, uma grande parte dessa obra ainda ficaria inédita. Ensaios e relatos que seriam dados ao público apenas na década de setenta.

          De manuscritos quase ilegíveis, recopilados por Dora Varona, sua mulher, foram publicados sob o título Sueño y verdad de América, pela Editora Universo, numa edição sem data, treze relatos.

          O primeiro deles, que dá título ao livro, conta a chegada de Cristovão Colombo na América. As poucas horas vividas nas três caravelas que antecederam o grito "Terra" na madrugada desse 12 de outubro de 1492.

          Entre os demais, há o que trata do primeiro espanhol que se "aquerenciou", vivendo feliz com uma índia e três filhos; e outro que narra as peripécias de Rodrigo Niño, designado guardião de oitenta e seis galés que devia levar presos do porto de Callao no Peru a San Lúcar de Barrameda na Espanha. Em cada porto que ancoravam, alguns fugiam e ao chegar ao destino só lhe restou um para desembarcar. Em terra, ele também fugiu e diante das autoridades, Rodrigo Niño se apresentou de mãos vazias.

          Também conta Ciro Alegria a epopéia do espanhol que sobreviveu a um naufrágio e à vida solitária numa ilha deserta onde chegou apenas com seu punhal de marinheiro e onde viveu sete anos até ser resgatado por um navio, que finalmente, percebeu os sinais de fumaça que fazia.

          Ainda há as histórias de passageiros e eternos amores.

          São todas histórias reais, nessas crônicas dos primeiros tempos da América. Seu autores são por vezes citados por Ciro Alegria. Outras vezes, uma data ou a precisão de certos detalhes do relato deixam entrever a existência de um outro texto que lhe deu origem. No entanto, poderiam ser consideradas histórias inacreditáveis se não fosse já conhecida a capacidade que tem o Continente de permitir que nele aconteçam situações mirabolantes.

          E, mirabolante, foi, certamente, essa ação relâmpago de León Escobar.

          Ele viveu no Peru nas primeiras décadas do século XIX. Então, a luta pelo poder emergia em qualquer lugar do país e os contestadores, os sublevados, os revoltosos, alimentavam disputas sempre renovadas que se multiplicavam tanto quanto o número de caudilhos.

          Aquele que se instalava no Poder, muitas vezes, devia sair para perseguir outros grupos em prolongadas ações nos mais distantes lugares. Toda a nação ouvia tiros e rumor de sabres, diz Ciro Alegria.

          Na capital, o Conselho de Governo que devia responder pelo país, ficava sem uma força armada que possibilitasse garantir a ordem. A anarquia se instalou em Lima. Os sublevados, muitas vezes, pareciam bandidos e os bandidos, para justificar suas ações, atribuíam caráter político aos roubos e crimes que praticavam.

          E aconteceu num dia de dezembro de 1835: León Escobar, chefe de um bando que vivia do roubo, chegou na praça principal da cidade com as armas em riste. O bando gritava o nome do adversário político do então mandatário no Poder e, sem dificuldade, se adonou do Palácio do Governo.

          Aos Conselheiros que ocorreram às pressas, ele apôs suas exigências: sairia do palácio e da cidade se lhe fosse entregue a soma que solicitava.

          Com suas botas enlameadas, a camisa suada, as calças descoloridas, sentou-se na cadeira presidencial. No canto da mesa, pousado, seu chapéu de palha. Mas, em acorde com a sala de móveis dourados e grandes espelhos, León Escobar se põe a altura do papel que assumira. Recebeu de pé os Conselheiros, mandou-os sentar para discutir suas condições. E, tendo elas sido cumpridas, por sua vez, também cumpriu as suas, abandonando a cadeira presidencial duas horas depois de lá ter se sentado.

          Conclui Ciro Alegria: Considerando que o bandoleiro León Escobar deu a seu assalto um caráter político, pode se dizer que bateu todos os recordes da história dos golpes de Estado. Em todo o caso, que o feito tenha podido ocorrer, ou seja, que um bandoleiro tenha chegado a se sentar na cadeira presidencial é um sintoma do que foi a vida política de nossos países. Nuns mais, noutros menos, o desgoverno era o governo.

domingo, 12 de março de 1995

Delmira Agustini: a mulher silenciada

          Delmira Agustini, poetisa uruguaia, nascida em 24 de outubro de 1886, é autora de El libro blanco e de Los cálices vacios.
 
          Seis anos medeiam entre a publicação de um e de outro. Quando, em 1907, publicou o primeiro, tinha vinte anos e sua veia poética ocasionou um movimento de assombro nos círculos literários da época, diz o crítico Alberto Zum Felde. Ainda sutil, difuso, nessas páginas, um erotismo mascarado pelo que então, foi considerado um profundo pensamento filosófico. Erotismo que emergiria plenamente, no livro publicado em 1913, Cálices vacios que irá fazer da poetisa um ser isolado, vivendo em meio à desaprovação, originada dos tradicionais preconceitos que dominavam o cotidiano de uma cidade no início do século.
 
          Um suposto desnudar-se que não foi tolerado pelos padrões da época e que, na verdade, quem sabe, tenha se constituído, apenas, num falar de sonhos. Assim, no poema "El intruso" (que na edição da Losada faz parte de El libro blanco) embora queira se tratar de um amor consumado, os recursos estilísticos que o constroem  - tu llave de oro cantó en mi cerradura , tus ojos de diamante, tu  olor a primavera, tu forma fué una mancha de luz e de blancura,-  fazem com que o irreal e algo de prosaico se mesclem e se submetam à verdade introduzida pelo vocativo amor, palavra inicial do poema. Em "Visión" que faz parte de Los cálices vacios, igualmente, é alguém que aparece  na alcova;  não mais luminoso mas taciturno e se inclinando para o corpo em oferta que estava à espera del abrazo  magnífico; um abrazo /De cuatro brazos que la gloria viste / De fiebre y de milagro será um vuelo!
 
           Mas, desse alguém há um voltar atrás, um se envolver em sombras.
 
          Se no primeiro poema é, como diz o título, um intruso que se apresenta e que tudo  iluminou nessa noite trágica, e soluçante, soluçante e escura, no poema de Los cálices vacios, esse alguém é presença desejada, mas  em tons de sombra e nas sombras se esvanece. Pelos cantos da noite há silêncio e sombra e solidão; a alcova se agiganta de solidão e medo. A expectativa e a espera desse abraço, vestido de febre e de milagre, se torna vã.
 
          Porém, ter querido esse abraço - ele será um vôo - e ter ousado exprimir esse desejo fizeram da poetisa uma mulher incompreendida.
 
          Mulher que no dia 6 de julho de 1914 foi assassinada pelo marido de quem estava se separando. Tinha vinte e oito anos e dela ficaram os versos.

domingo, 5 de março de 1995

Promessas

Prometeu a máquina de chover, os viveiros portáteis de animais de mesa, os azeites da felicidade que fariam crescer legumes na caliça e pencas de amor-perfeito nas janelas. Gabriel García Márquez

          É um conto de amor de Gabriel García Márquez, "Muerte constante más allá del amor", publicado junto com outros seis em La increíble y triste Historia de la cándida Eréndira y de su abuela desalmada (Sudamericana, 1972)

          Em troca de uma falsa carteira de identidade que o pusesse a salvo da justiça, seu pai a enviou para prestar favores ao Senador Onésimo Sánchez. Ele fora para Rosal del Virrey em campanha eleitoral e ali, no mísero povoado, encontrara a mulher de sua vida. Que não possuiu e morreu chorando por isso, porque, todo o tempo que estivera com ela, seis meses e onze dias, quisera, apenas, tê-la perto para se salvar da enorme e definitiva solidão em que se encontrava.

          Era engenheiro metalúrgico formado por universidade européia, casado com uma alemã e pai de cinco filhos. Aos quarenta e dois anos estava condenado à morte por uma doença cujas dores, somente com os artifícios dos remédios se acalmavam. Abraçado a Laura Farina, cuja pele tinha a cor do petróleo cru e cujos olhos claros eram cheios de luz, ele passou os últimos dias de sua vida.

          Laura Farina vivia num povoado nos confins de um deserto onde jamais havia crescido uma rosa. Submete-se ao amor desse homem que nunca vira, como se submetera às ordens do pai. E, apesar de ver a borboleta de papel revoltear muitas vezes antes de ficar grudada na parede de onde a quer tirar, logo desiste diante das palavras que lhe dizem ser impossível arrancá-la dali pois é só uma pintura.Transformara-se a borboleta em pintura, como os pássaros de papel jogados para o ar durante o comício tinham adquirido vida e voado para o mar. Transformara-se o Senador ao abandonar uma vida inteira e o resto que lhe faltava viver para se refugiar no amor proibido.

          Metamorfoses que fogem da lógica dos fatos, conduzindo o relato para um universo ambiguamente fantástico, incrustado nesse outro que pareceria igualmente fantástico se não fosse tão real.  O universo de campanhas eleitorais onde contracenam os descalços, os esquálidos com os que mantém o sistema servindo-se das promessas de sempre.    Os que assistem, sob um céu escaldante, a consabida mesma farsa, pedindo não mais do que pequenas coisas; e os que entendem muito bem o que diz o Senador a seus iguais: Os senhores e eu sabemos que no dia em que haja árvores e flores nesta latrina de bodes, no dia em que haja sáveis em vez de vermes nos poços nem os senhores e nem eu já teremos o que fazer aqui. Estou sendo claro?

          Na praça, enquanto o discurso promete grandezas e felicidade, é armado um cenário de árvores verdes e de casas de tijolos com janelas de vidro que escondem os miseráveis ranchos da vida real. É para esse mundo de ilusão que o gesto do Senador aponta, ao terminar seu discurso de otimismo. Mas só ele percebe que a força de ser montado e desmontado também esse mundo estava se deteriorando. Os índios de aluguel que levava com ele para ajudar a aplaudir e os que o escutavam pouco sabiam distinguir.

          E de acreditar em promessas, ninguém nunca está a salvo.