domingo, 29 de janeiro de 1995

Alfredo Zitarroza


Com o coração ardente 
e com a cabeça fria 
cantei como supunha
 que vocês querem que eu cante 
mas sou um militante
e minhas canções não são minhas. 
 
         No meu país, que tristeza foi a manchete de um jornal argentino, citando um verso de Alfredo Zitarrosa, um dos maiores nomes da música popular uruguaia. Era o dia 17 de janeiro de 1989 e nesse dia morrera o cantor em Montevideu.
         
          Em 1958 havia recebido um Prêmio do Município por seu livro de poemas Explicaciones. Mais tarde, um pouco antes de sua morte, publicou Por si el recuerdo, um livro de doze contos escolhidos entre os que vinha escrevendo ao longo da vida.

          Uma vida que semeou música e versos, expressando a solidão e o amor ou, expressando sentir daqueles que, no Continente, ainda estão calados pela miséria ou pelas agruras do caminho que devem percorrer os que dela querem fugir.

          A sua música recupera os ritmos do país – “candombé”, “chamarrita”, “canción”, “milonga”, “vidalita”, “gato” – ritmos que vieram com os ibéricos para o Continente. Ou que no Continente se criaram e que estão em perfeito acorde com as palavras que as acompanham sempre muito próximas do que Alfredo Zitarrosa pretende sejam suas canções: canções populares que procuram recriar o que a gente do povo sente e pensa, acendendo o fogo, arrumando um sapato ou acreditando em Deus, sem razões suficientes, mas até por necessidade de se sentir um homem entre os homens.

          E, assim é o “candombé” Doña Soledad, a “chamarrita” Pa’l que se va e a “canción” Mire amigo.

          Nas duas primeiras, o cantor se dirige a um interlocutor. Numa das canções, como diz o título, a dona Soledad, na outra a alguém não nominado, que está indo embora. Jovem ou próximo o suficiente para ser tratado por tu. Em ambos os casos, trata-se de um conselho: para dona Soledade, um incitamento à reflexão. Aquela feita a partir de uma situação específica da sua pobreza. A pobreza que a impede de comer, de estudar, de querer e que a faz prisioneira de um trabalho que não a deixa viver com dignidade. A reflexão sobre o significado da palavra liberdade, um significado difícil de encontrar nesse labirinto onde inexistem ou quase, as saídas.

          Pa’l que se va é como que inteiramente feito de provérbios: não te esqueças do pago / se vais para a cidade; não ponhas na mala o que não vais usar; não mudes nunca de trilha ainda que não tenhas para fumar; não esqueças que o caminho / é para o que vem e para o que vai.

          Mas, sem dúvida, presente, a questão social, obrigando à sofrida migração para a cidade.

          Já em Mire amigo é a resposta de um peão que está se negando a escutar o discurso político. Porque não entende as coisas, ele diz, e porque as eleições não o interessam. Já sabe que nada irá mudar nesse universo em que o latifundiário tem dois filhos que são doutores na cidade e que os dele não foram à escola e mal têm o que comer.

          Na estrofe final se desculpa por não aceitar o que lhe é oferecido para beber explicando que seu trabalho começa de madrugada: os que nascemos peões não conhecemos o tresnoitar e completa: ando muito mal alimentado e se tomo vinho acabo brigando.

          Situações conhecidas de qualquer cotidiano do Continente cujo drama somente tem significado para aqueles que o vivem. Ou aos poucos – exceções que honram os humanos – que têm os olhos para ver e o coração para sentir o sofrimento engendrado na injustiça social.

          Contra ela Alfredo Zitarrosa tentou lutar com a música e com o verso. Música nascida dos ritmos do passado, acompanhando versos que buscam o amanhã de todos.

          Invulgar beleza emergindo neste Continente invadido por ritmos e palavras vãs.

domingo, 22 de janeiro de 1995

Os quase impossíveis

            A sua imagem foi sempre a de um cantor entusiasticamente aplaudido que se permitia dizer não gosto de cantar. Mas, tendo outro verso pronto para voar naquele verso que está cantando: em toda canção, há outra canção, ele dizia a Juan Capagorry numa entrevista publicada pela Trilce de Montevideu, em 1988, juntamente com seus contos.

            Foi quando chegou o fim de sua espera. Mostrar-se aos cinqüenta anos também um escritor. Autor de poemas, de crônicas, Alfredo Zitarrosa escolheu apenas doze contos para reunir no livro Por si el recuerdo. Contos doídos e dolorosos diz Eduardo Galeano. Contos que se envolvem profundamente, como suas canções, com tudo que diz respeito ao ser humano: sonhos, amores, desejos de liberdade e de justiça, anseios de fugir da solidão.
            E, assim, é em “Desnaufrágio” onde o fantástico irrompe no cotidiano do personagem sem que lhe pareça estar se alterando qualquer lógica porque certamente, para ele, não estão claras as fronteiras entre a sua própria lógica e aquela que reina na sociedade.

            Caminhava de madrugada pela praia quando completamente vestido e escorrendo água sai do mar o marinheiro dinamarquês. A noite era clara e como se fosse um encontro marcado ali se estabeleceu entre os dois um convívio de espontâneo entendimento e feliz.

            Não lhe resultou estranha essa chegada, nem inverossímil a explicação dada – o barco em que viera o marinheiro naufragara diante da cidade.

            Quando, exatamente vinte e quatro horas depois acompanhou o amigo até onde o encontrara e o viu se atirar no mar, vestido como chegara e nadar e desaparecer foi como se tudo obedecesse à ordem normal das coisas. Também, o ter nadado na direção em que, nítido sob a lua, emergia primeiro a popa, grande e branca, e depois o barco inteiro, iluminado, que se pôs a flutuar e a se mover na superfície das ondas para se perder de vista.

            Voltou, então, para casa e retomou sua vida de antes. Uma vida de tédio, angústia e solidão onde, ainda que por breve tempo, se inscrevera a amizade.

            Algo tão difícil de acontecer num mundo eivado de ferozes egoísmos como ter vindo alguém do mar e para ele ter voltado num navio que naufraga e desnaufraga.

 

domingo, 15 de janeiro de 1995

Glória passageira


          Em 1949, Alejo Carpentier publicou El reino de este mundo, relato de feitos extraordinários acontecidos no Haiti entre 1760 e 1820 quando ocorreu a insurreição dos escravos, a abolição da escravatura e o fim do império do rei Henri Christophe.Eleito presidente da República pela Assembléia Constituinte, cinco anos depois, se proclamou rei e assim governou parte do país até 1820 quando se suicidou.

          Intitulara-se Henrique I e quisera repetir no seu país de ex escravos, uma corte francesa. Uma corte onde os uniformes dos oficiais tinham mais pompa do que os usados pelos oficiais de Napoleão; onde o palácio, em tons rosados e com janelas arqueadas, era rodeado de terraços, estátuas, arcadas, jardins, pérgolas, arroios artificiais; onde as mulheres se enfeitavam com plumas e usavam os vestidos de cintura alta prescritos na corte francesa.

          Mas, onde os trabalhadores negros serviam sob o látego de guardas negros, tão escravos e maltratados como no tempo em que os brancos eram os donos do Haiti: crianças, mulheres e velhos trabalhavam, como formigas, na construção de um castelo fortificado, sem direito ao descanso.

          O rei negro que pretendeu fundar uma dinastia, fazia de seu povo o que os brancos haviam feito nas outrora férteis plantações de açúcar: peças de uma engrenagem para produzir riquezas.

          Esquecendo suas origens, adotara a língua dos que no passado haviam explorado a ilha e os homens. Assim como adotara seus gostos e costumes.  Usava casaca cheia de condecorações, assistia missa, pagava uma governanta branca para educar suas filhas e se rodeava dos mais diversos objetos europeus trazidos para a ilha.

          Na sua ambição, fora além de todos os monarcas franceses. A fortaleza que ordenou construir, ignorando o sofrimento e as vidas que se perdiam para erguer-lhe os muros, de nada lhe valeu. Pretendendo-se um reformador apenas se serviu de crenças e rituais alheios que não o defenderam da fúria dos humilhados.

          Esses que pensava abandonar à própria sorte quando no alto da Cidadela em construção mensurava todo o seu poder, acreditando que a eles só restaria levantar os olhos para a fortaleza cheia de milho, de pólvora, de ferro e de ouro...   As injustiças e a miséria, porém, os tiraram da submissão quando não mais se resignaram a somente contemplar a riqueza dos outros.

domingo, 8 de janeiro de 1995

A pompa

 
          Os homens já estavam no porto esperando a partida para a América, abandonados pelos capitães, presa das dúvidas e das incertezas.  Foram muitos dias de espera cheios do medo por esse futuro indecifrável que os aguardava. As naves partiriam da Espanha em busca de especiarias e duzentos e trinta e sete homens esperavam a partida. E, antes dela, esperavam pelos capitães das naves.    E eles chegaram anunciados por uma densa nuvem de pó, as armaduras brilhando ao sol. Ao sol forte do sul da Espanha, com as pesadas armas nos ombros, as mãos em fogo, os pés doendo os homens esperam e, finalmente, os vêem chegar nessa usual exibição de pompa dos dominadores.

          E chega o capitão Fernando de Magalhães igual a um Deus. Suas armas que reverberam e a capa de veludo verde que cobre suas costas e as ancas de sua cavalgadura lhe dão um aspecto sobrenatural, inumano. E chega entre veludos e ouros, o intendente da esquadra, vestido de camisa de renda.

          Mostram-se os escudos. Os pendões e as lanças se agitam. Há ruídos de ferros e um murmúrio de sedas. Há estrépito de cascos.

          Apenas um gesto com a mão enluvada do capitão é suficiente para indicar o rumo e ele passa, arrogante, entre os homens que o irão obedecer.

          Completado o tempo de espera, os barcos se põem a navegar no dia 20 de setembro de 1519, para a conquista do mar até as árvores da canela.

          Napoleón Baccino Ponce de León, no seu romance Maluco (Prêmio Casa de Las Américas, 1989) relata essa epopéia iniciada na espera do porto e prolongada por mares e terras jamais vistos.

          Da fome e do frio, do medo, das desilusões, muitas vezes da morte se livraram os doze homens que não resistiram à angústia da espera no porto e desertaram.

          Os outros, que presenciaram a chegada dos capitães com seus movimentos de ferros e ouropéis e não encontraram forças para desistir tiveram o destino dos que se submetem à voz de mando.

          A voz de mando que para ser melhor obedecida, serve-se, também, de rituais e da pompa que parecem ser ainda mais eficientes para convencer os homens do que a lógica e a razão.

domingo, 1 de janeiro de 1995

Futuro

 
          Com os papéis em ordem, com todos os selos e carimbos, partiu Graciliano Ramos, em abril de 1952, para uma singular viagem que jamais pensou pudesse acontecer: Rússia e Tchecoslováquia.

         Ainda não voltara ao Brasil e já estava dominado por essa necessidade de espalhar as lembranças, por esse se sentir no dever de narrar o que vira além das fronteiras proibidas. Viagem é disso o resultado. Livro póstumo que, entre 1954 e 1986, teve dezesseis edições pela Record.

         Tratando-se de países de fronteiras fechadas, é evidente que a viagem se realizou a convite e obedecendo roteiros e programas organizados pelos anfitriões com o objetivo de mostrar a prática do socialismo.

         Homem de esquerda, Graciliano Ramos se dispõe à objetividade e, objetivo ele se mantém ao longo das páginas em que faz o relato das visitas a fábricas, escolas, museus, creches e colônias de férias.

         Marcado pelas opiniões de homens sagazes e verbosos que, no Brasil, sem acesso a muitas informações negavam os avanços sociais da Revolução de outubro e as transformações implantadas na União Soviética, muitas vezes, se mostrou desconfiado diante do que via e até na expectativa de ver confirmada a prática da cortina de ferro no cotidiano que lhe era mostrado.

         Porém, não lhe foi possível deixar de ver que, além do usufruto do saber, da saúde, do divertimento, a grande conquista da Revolução foi permitir que o cidadão se reconhecesse como tal.
Constatando que trabalhadores da indústria do chá, ao jogarem xadrez num estabelecimento de férias onde desfrutavam de todo conforto, se mostravam firmes e seguros, isentos do habitual sentimento de inferioridade que soe acompanhar o trabalhador braçal, surgiu-lhe o paralelo em que, lamentável, se retrata o homem que pertence à classe obreira no Brasil: gestos esquivos, olhares suspeitosos, maneiras bovinas, indício de pensamento lerdo.

         Um paralelo que aparece também quando o escritor se vê diante do número de escolas e do número de crianças que à escola tem acesso. Lembra-se dos analfabetos do Brasil, dos pequenos vagabundos famintos que circulam nas ruas quase nus, a mendigar.

         E lhe parece excessivo, quase inacreditável, as trezentas e cinqüenta mil bibliotecas do Estado com setecentos milhões de volumes. E se pergunta: Não acharemos neste país um analfabeto? Saudades da nossa terra simples, onde os analfabetos engordam, proliferam, sobem, mandam, na graça de Deus.

         No ano seguinte, morria Graciliano Ramos. Na sua terra tão simples, os livros continuaram sendo muito poucos, as bibliotecas muito escassas, e a breve e ingênua ironia que se permitiu sobre ela foi como um retrato do futuro.