Publicado em 1986, pela José
Olympio Editora, para comemorar a passagem do 80º aniversário da expedição de
Euclides da Cunha ao alto Purus, Um paraíso
perdido é constituído de ensaios e cartas que o autor de Os sertões escreveu sobre a Amazônia.
Considerado o primeiro
intérprete da geografia, da história e da sociologia do Estado do Acre,
Euclides da Cunha, nestes textos coletados e organizados pelo historiador
Leandro Tocantins, mostra um Brasil que raros conhecem ao descrever o
luxuriante mundo da selva e ao constatar as relações antagônicas que reinam
entre seus habitantes.
Foi tanta a miséria e
tamanhas as injustiças que presenciou, ao penetrar nesses territórios, onde,
mais do que em nenhum outro, se impunha a lei do mais forte, que suas
revelações representam, também, uma denúncia.
No texto “Os caucheiros”,
publicado, originalmente, em A margem
da História, Euclides da Cunha, engenheiro, observa, registra, analisa e
se mostra, então, aquele escritor lírico,
profético, acusador de que fala Leandro Tocantins no ensaio que abre Um paraíso perdido.
Primeiro, ele situa,
geograficamente, o espaço em que se desenrola o drama: as terras onduladas da margem direita do Ucaiale para onde
convergiam, depois de atravessar os Andes e os plainos amazônicos, aventureiros
em busca da riqueza da mata.
Nunca se armou tão imponente cenário a tão pequeninos atores, sintetiza Euclides da Cunha, anunciando as palavras
com que irá definir os índios que habitam essas paragens e os que chegam para a
destruição da flora e o extermínio das gentes: os caucheiros.
Levam uma vida errante,
sempre em busca da castiloa elástica
que lhe fornece a borracha e que, extremamente frágil, no momento em que a
golpeiam, definha e morre. E o extrator a derruba inteira no afã de
aproveitá-la inteira, processo rude que em pouco tempo esgota o cauchal. E,
assim, se impõe um nomadismo que é responsável pela indiscriminada escravidão
e matança dos selvagens que habitavam essas matas.
E, a isso, os caucheiros chamavam de conquista,
invariavelmente subordinada à velha tática de sempre: tiros e ataques
extremamente rápidos. É incalculável o número
de minúsculas batalhas travadas naqueles sertões onde reduzidos grupos bem
armados suplantam tribos inteiras, sacrificadas a um tempo pelas suas armas
grosseiras e pela afoiteza no
arremeterem com as descargas rolantes das carabinas.
Evidentemente, a luta pela
riqueza que se instaura nos recessos da mata não resulta em vitória para todos
e um número infindo de homens trabalham solitários, durante anos a fio, no
mais absoluto abandono para então morrerem na miséria em que sempre viveram.
Os que vencem, criam no meio
da selva um pequeno território que imita algo do mundo civilizado: um entreposto comercial de qualquer cidade da costa com seu balcão
e seus empregados atentos, um calendário marcando os dias certos do ano,
jornais e até um fonógrafo.
Dentre os espoliados, a
inesquecível figura desse índio doente, disforme, mal parecendo um ser humano,
tentando se expressar numa língua incompreensível e que, por fim, num tremendo
esforço, levanta o braço para indicar distâncias e pronuncia a palavra amigo.
A insignificância desse
homem, a pequenez de seu destino são a origem de um texto cujo significado, profundamente
lírico, é tão grande quanto a sua intenção acusatória: Compreendia-se: amigos, companheiros, sócios dos dias agitados das
safras, que tinham partido para aquelas bandas, abandonando-o ali, na solidão
absoluta. Das palavras castelhanas que aprendera restava-lhe aquela única; e o
desventurado, murmurando-a, com um tocante gesto de saudade, fulminava sem o
saber - com um sarcasmo pugentíssimo - os desmandados aventureiros que àquela
hora prosseguiam na faina devastadora: abrindo a tiros de carabina e a golpes
de machete novas veredas a seus
itinerários revoltos e desvendando outras paragens ignoradas, onde deixariam,
como ali haviam deixado, no desabamento dos casebres ou na figura lastimável
do aborígene sacrificado, os únicos frutos de suas lides tumultuárias, de
construtores de ruínas...
A síntese que iniciara o
artigo mostra-se, pois, perfeita. E, entre os pequenos atores - deformados pela
febre, quase inumanos ou deformados pela falta de caráter que não os inibe de
massacrar seus semelhantes - e a vastidão e a grandiosidade da floresta houve,
ainda, lugar para previsões.
Um paraíso perdido foi o título do livro que Euclides da Cunha planejara escrever sobre a
Amazônia.



