domingo, 24 de abril de 1994

Deambulações

          Em 1934, a Companhia Editora Nacional criou o “Grande Prêmio de romance Machado de Assis”.

          Sessenta e seis obras inéditas concorreram e o juri, composto por Agripino Grieco, Gastão Cruls, Gilberto Amado, Herbert Moses, Moacyr Deabreu e Monteiro Lobato, en­tendeu que, dos quatro romances classificados, nenhum deles se destacava tanto dos demais que justificasse premiar apenas um deles. Distribui-lo entre os quatro autores, dignos do Primeiro Lugar, foi a decisão tomada que, não somente divi­dia, entre os autores, o valor material do Prêmio mas, tam­bém, lhes publicava a obra.

          Assim, em 1935, apareceram: Música ao longe de Érico Veríssimo, Marafa de Marques Rebello, Totonio Pa­checo de João Alphonsus e Os ratos de Dyonélio Machado.Este escritor gaúcho já havia publicado, em 1927, um livro de contos, Um pobre homem e, embora em 1942 tenha aparecido o seu segundo romance, O louco do Cati, foi sua obra premiada a que se tornou mais conhecida.
          Os ratos - aqueles que desaparecem diante de quem pretende pedir um favor ou os que procuram, a qualquer custo, conseguir o dinheiro que lhes falta ou, simplesmente, os que durante a noite denotam a presença na casa com seus pequenos barulhos de roedores - se inicia e termina com a en­trega do leite de manhã cedo na casa de Naziazeno Barbosa. Entre essas duas chegadas, o seu esforço no intuito de conse­guir a quantia necessária para pagar o leiteiro.

          Funcionário público, ganha a vida confinado numa sala compartilhada com outros, cada um executando roti­neira tarefa.Pressionado pela ameaça do leiteiro, procura obter a quantia que lhe deve e nisso passa o seu inglório e fracassado dia, lutando contra a vergonha, o medo, a submis­são à vontade alheia.Uma verdadeira peregrinação pelas ruas da ci­dade, pelos cafés, procurando a solução que não lhe é dada nem pela casa de penhores, nem pela mesa de jogo, nem pelos pedidos de empréstimo.

          Somente muito tarde, num complicado arreglo com outros dois ou três acostumados a viverem de expediente, consegue a importância necessária e um pouco mais, que lhe permite comprar um pacote de manteiga, um pedaço de queijo, um brinquedo para o filho.

          Ao chegar, finalmente, em casa, janta e num verdadeiro e ingênuo ritual coloca o dinheiro para o paga­mento do leite bem próximo à panela onde, na manhã seguinte, ele será vertido. Mas, já na cama, sua luta continua, ainda, no pesadelo que o atormenta noite adentro.

          É apenas quando percebe que o leiteiro encon­tra o dinheiro e derrama o leite no recipiente e com cuidado fecha a porta e o portão é que ele consegue dormir.

          As vinte e quatro horas que se passaram são o limite em que se encerra a narrativa, na aparência submissa ao modelo tradicional do relato onde - diz Regina Zilberman - há um conflito central que motiva a ação do protagonista, caracterizado então como herói-buscador. E seu desenvolvi­mento culminará no sucesso da empresa e a dissolução do con­flito.

          Deste padrão, no entanto, o relato de Dyoné­lio Machado se afasta, continua Regina Zilberman ao dele tra­tar no seu livro A Literatura no Rio Grande do Sul, uma vez que o conflito do protagonista apenas repete situações ante­riores - no decorrer da ação ele é referido como o que não paga ninguém - e o ter resgatado a dívida com o leiteiro so­mente significa um protelamento pois se compromete com outros e logo tudo irá recomeçar.

          Esse domínio narrativo, que permite ampliar-se o universo ficcional, irá igualmente se mostrar nas repen­tinas e brevíssimas lembranças de infância de Naziazeno Bar­bosa e nas breves e repentinas imagens que, vez por outra, se lhe impõem nesse seu dia de andanças.

          Da infância, esse momento mencionado a meias em que se vê figurinha marrom, no colo da mãe, encolhida, debulhada num pranto impotente e trágico por ter que, du­rante um ano, andar vestido de Santo Antonio para pagar a promessa feita por ela. E em que ouve uma voz, certamente fe­minina, dizendo: Mas tu não vês que é pior o sofrimento que tu dás a essa criança com semelhante coisa? Olha, se fosse meu filho, eu tirava já-já essa roupa, Deus que me perdo­asse...

          Lembrança que abre caminho para uma outra. A dessa noite, dum escuro fosforescente e sem mistério cheio de gritos de crianças. Olhava as brincadeiras dos guris na esquina e queria ir lá brincar mas é impedido pela mãe que o obriga primeiro a tomar leite. Quando chega a ir já não en­contra mais ninguém no canto da rua onde naquele momento pos­suiu o repouso feliz, o aconchego humano, seguro, imutável que ele jamais encontrou no seu mundo.

          Irreversível vergonha, irreparável solidão que o irão acompanhar nas deambulações em busca do dinheiro.

          Sabe-se diferente dos outros, dos que pagam suas contas. Quisera ser igual. Ver-se sentado à mesa de toa­lha branca e, alimentado, ficar feliz. Quisera poder pagar o leiteiro e começar outra vida de “cara aberta e exposta”.

          Pedaços de passado e futuro, vislumbrando um oscilar de fugidios claros-escuros, ampliando a dimensão do personagem que exibe, então, outras facetas.

          Definido por suas ações - velhaco, medroso, jogador -, as imagens do passado dizem de sua fragilidade; as imagens de suas aspirações - tão pequenas -, dizem desta im­possibilidade de usufruir de um mínimo imprescindível.

          Na paisagem urbana de uma Porto Alegre leve­mente esboçada, Naziazeno Barbosa persegue, por rotas escu­sas, soluções sempre adiadas. No passado, o doloroso preço pago para saldar a dívida materna espreita, impedindo o fu­turo de cara aberta e exposta, faz de seu presente um cami­nho marginal.
      Personagem que certamente hoje não se senti­ria tão longe de seus iguais.

domingo, 17 de abril de 1994

Literatura e compromisso

           Em 1970, Carlos Droguett já havia publicado quase todos os seus romances quando, no mês de outubro, rece­beu dois prêmios literários: o Prêmio Nacional de Literatura do Chile e o Prêmio Alfaguara na Espanha. Poucos meses depois, foi publicada, no El Mercurio de Santiago, uma entrevista sua que, no ano se­guinte, fez parte do livro Escrito en el aire, publicado pela Universidade Católica de Valparaíso. Sou um passional é o primeiro de vários textos, na sua maioria, originados das impressões que o ro­mancista chileno registrou ao longo de sua viagem por alguns países da Europa.
 
          Na breve nota que antecede esses escritos, Carlos Droguett afirma que eles fazem parte mais de sua vida que de sua literatura.Na verdade, vida e literatura se entrelaçam fortemente. Para mim a Literatura é um ato total que inte­ressa ao corpo e ao espírito do escritor, em termos teológi­cos como um sacramento, em termos psiquiátricos, como um sui­cídio. Ato total ao qual se acrescenta, ainda, a inabalável convicção de que a literatura somente pode existir a partir de um compromisso. E, para ele esse compromisso é com a jus­tiça. Daí a pertinência da resposta quando o jorna­lista lhe pergunta, após observar que a sua obra de ficção aparece marcada pelo sangue e pela violência, por que ele aprofunda o tratamento literário desses temas. Porque a História de nosso país aparece marcada pelo sangue e pela vi­olência.


          Sangue e violência que ele não pode eludir ao escrever os três romances sobre a Conquista do Chile pelos espanhóis ou ao escrever 60 muertos en la escalera em que re­cria, na ficção, o ocorrido em Santiago, no dia 05 de setem­bro de 1938, quando um grupo de jovens rebeldes, desejosos de mudanças políticas, foram sumariamente assassinados por tro­pas governamentais. Um episódio que o emocionou profundamente e lhe fez conhecer, como dirá quase trinta anos mais tarde, a sua capacidade de odiar.
 
          Seu entrevistador lembra essas palavras para inquirir se essa capacidade de odiar diminuiu, com o passar do tempo, ou se incrementou.Ironiza Carlos Droguett vejo-o muito preo­cupado pelo incremento ou diminuição de minhas paixões  an­tes de responder que qualquer pessoa normal deve sentir ódio diante das periódicas matanças de operários e estudantes em nosso país. E, então, por sua vez, pergunta: O Senhor, não?.Uma pergunta que evidentemente não foi res­pondida e da qual, com certeza, não era esperada uma res­posta. Porque parece ser de praxe no Continente, cultivar uma total indiferença das situações que não digam respeito aos interesses imediatos da classe que tem acesso à palavra e cujo olhar jamais se dirige para essas injustiças que são do cotidiano e estão presentes na falta de comida, de instrução, de saúde, de moradia, de lazer, fazendo com que a maior parte dos que habitam a América não se constituam de cidadãos.

          Também, muitas vezes, é de praxe marginalizar e perseguir os que ousam desejar transformações.
 
          No ano de 1971, Carlos Droguett dizia que era para pessoas como ele que Leon Bloy tinha escrito: Se os que receberam a investidura da palavra se calam, quem falará pe­los mudos, pelos oprimidos e os fracos? O escritor que não escreve pela justiça, é um despojador dos fracos, um ladrão.
 
          No dia 1º de setembro de 1975, já derrubada a democracia no Chile, com os ouvidos cheios dos sussurros dos que não podiam ter voz, Carlos Droguett partia para o exílio.

domingo, 10 de abril de 1994

Os galos

           Foi escolhido como o melhor livro de viagem publicado na Inglaterra, em 1992, e logo se transformou em sucesso deste lado do Atlântico. Um ano na Provence de Peter Mayle. O relato de um inglês que decide deixar seu país para ir morar na Provence, região sul da França, onde o céu é azul e o sol brilha quando no restante da Europa é tempo de névoa, chuva e neve.
 
          Dividido em doze capítulos, correspondentes a cada um dos meses do ano, narra uma encantadora conquista: a de ir viver numa velha casa encravada na montanha à qual se acrescentaram outras grandes descobertas, sobretudo a de um modo de vida que ignora, quase sempre, o relógio e é regida pelos prazeres da mesa.
 
          Breves referências à paisagem de montanhas e vales do Luberon, uma simpatia bem humorada pelos tipos que vai conhecendo, seu trabalho, seus gestos, a maneira como se expressam, suas histórias.
 
          Entre elas, a do galo que, de madrugada, acordava com seu canto os novos vizinhos. Haviam comprado a casa para passar as férias. As reformas foram feitas e no ve­rão eles chegaram com os amigos. E o galo cantava. Os pari­sienses que desejavam acordar tarde reclamaram para o dono que, evidentemente, nada se dispôs a fazer. A forma jurídica usada para fazer o galo calar lhe deu ganho de causa e nas segundas férias em que não puderam dormir, vencidos, os pari­sienses puseram a casa à venda.
 
          Por intermédio de um amigo, o dono do galo comprou a casa por um bom preço. O rendoso negócio foi, então festejado com um jantar cujo prato principal foi um coq au vin.
 
          Lamentável fim para um galo que nada havia feito senão cantar nas horas em que é de praxe que os galos cantem.
 
          No extremo sul do Continente também o Prín­cipe, assim se chamava o galo, cantava.
 
          Só que sua história não tem por fim louvar espertos tinos comerciais mas, sim, a amizade estabelecida entre ele e seu dono.
 
          Brandino havia visto um galo-músico em São Francisco de Assis e quis ter um igual. Fez a encomenda para um carreteiro e de volta a seu vilarejo ficou esperando.
 
          O galo foi trazido um dia, pequeno e feio e mudo. Sem cantar ficou uns dias até que o novo dono, já desi­ludido, o soltou num terreiro entre os outros.
 
          Já crescera, já tinha uma bela plumagem, uma crista vermelha, esporas fortes e, entre os seus, fez o que dele se esperava. Na madrugada seguinte cantou como um galo-músico deve cantar. E, a partir de então, alegrou todas as madrugadas da Vila Nossa Senhora do Passo do Rosário e a ja­nela de Teresa onde o dono o levava para fazer serenata. Ga­nhava grão de milho na palma da mão da moça e, assim mimado e de papo cheio deixava a namorada de Brandino feliz e faceira.
 
          Quando casaram, Teresa e Brandino foram morar na fazenda e levaram o galo-músico.No princípio, a imensidão do terreiro e seus perigos - lagartixas, lagarotos, cobras, aranhas, gatos, ca­chorros - o amedrontaram. Mas, um dia ele reagiu empinou o papo, ergueu a crista, bateu asas e cantou.
 
          E forte e cantor foi temido e respeitado no enorme terreiro da fazenda até que numa noite de chuva foi surpreendido por uma raposa. Lutou para se defender, foi so­corrido pelo dono, mas já era tarde.
 
          E Brandino contava e repetia a história do Príncipe, suas façanhas amorosas, sua valentia para concluir: um consolo, porém, eu tenho: morreu como um bravo, lutando.
 
          De comum entre esses dois galos apenas o canto que alçam de madrugada. Se, do galo provençal tudo se ignora, salvo essa morte que lhe interrompe o canto, do personagem de Cyro Martins muito se conhece e também, o amor que lhes devotam os donos.No relato de Peter Mayle e n’O Príncipe da Vila de Cyro Martins são ambos pequenas figuras luminosas e comoventes nessa morte antecipada a que são condenados.Um morre na solidão própria do animal sacri­ficado; o outro como vítima das leis que a natureza impõe.
 
          Na verdade, talvez seja irrelevante. Pequenos detalhes ficcionais neste mundo de homens tantas e tantas ve­zes tratados como animais.

domingo, 3 de abril de 1994

A incógnita

          A Vila de Nossa Senhora do Passo do Rosário era formada por uma dúzia de famílias de posse que moravam em casas com feitio de estância estendidas ao longo dum chapa­dão, de onde se avistava um belo rio, de margens arenosas. O resto era rancherio.
 
         E nos ouvidos dos que moravam nos ranchos nunca chegaram os rumores que circularam anos, num ir e vir medroso, jamais falado em voz alta: a presença de um homem emponchado e de chapéu que se aproximou da janela do quarto de Dona Luzia quando todos sabiam que o marido estava au­sente.
 
         Luzia, de elogiados olhos negros, mãe de cinco meninas e, depois, de um temporão que alguns da vila e ela mesma ignoravam quem fosse o pai. Seu nome era Brandino e muitos dos que pularam, naqueles meses de seca, a janela do quarto de Luzia imaginavam se dele não eram o pai.
 
         Mimado pela mãe e pelas irmãs e por esses possíveis olhares paternos que sobre ele se pousavam, Bran­dino vivia feliz.   Em torno dele, de sua pacífica vida se cons­trói O príncipe da vila, romance de Cyro Martins, publicado em 1992.

         Sem plano preconcebido, escrevendo, simples­mente, como ele disse para Abrão Slavutzky na longa entre­vista, origem do livro Para início de conversa, é, no en­tanto, um romance habilmente estruturado.
 
         Já disse o escritor Luiz Antonio de Assis Brasil que Brandino é uma exceção nesse meio ambiente ma­chista e conservador da pequena cidade: veste-se bem, é edu­cado, fala corretamente, não corre atrás de saias e não é visto no bordel.
 
         Mas, sua mãe, também, foge ao estereótipo fe­minino nesse limitado universo onde vivem. E, não menos ex­cepcional é esse acordo tácito e silencioso, estabelecido en­tre aqueles que, em alguma noite fortuita, usufruíram dos fa­vores de Luzia.

         Esses seus eventuais amores, vividos nos seis meses da grande seca enquanto o marido cuidava da estância se constituem um episódio construído a partir de um ponto de vista em que a onisciência do narrador - esse poder que lhe é conferido de, absolutamente, tudo conhecer de seus persona­gens - é cerceada, limitada pela própria ignorância da ver­dade que domina os personagens envolvidos.
 
         Ataliba, Alberto, Serafim, Juca e cada qual a sua maneira não rejeitam esse filho ocasional e desejariam ver elucidada a grande dúvida que, ao longo dos anos, os acompanha. De certa maneira, assumem a paternidade ao presen­tear Brandino continuamente e por qualquer motivo, sobretudo por ocasião de seu casamento quando um oferece a festa, outro o assado de terneira, outro o fogão.
 
         Mas, interrupções de conversas e respostas evasivas protegem o assunto proibido e o deixam intocável pois, com a honra duma pessoa não se bole, inda mais duma senhora. E, embora o narrador, onisciente, possa saber que o Ataliba considera essa aventura de uma noite como campeirada macanuda ou que se dá conta de certa qualidade de Luzia; ou também como o bravo pulo janela adentro de Se­rafim foi conseqüência desse riso de luz que passa entre o corpo de um homem e de uma mulher; ou a maneira de Alberto ser atraído até a casa de Luzia para lhe dar consolo - ele é vencido pelas barreira femininas.

         Luzia se embaraça diante de certa inconse­qüente pergunta do filho; sente uma batida no peito ao pensar que a última filha da casamenteira não puxou pelo pai; sabe que os presentes dados ao filho lhe são devidos; vagamente recorda aqueles tempos bons de gente boa quando se podia dor­mir com a janela aberta ou apenas encostada; e, com remorso, lembra sua peraltice com o padre José: um olhar, um gesto am­bíguo e, principalmente, tê-lo enganado confessando-lhe tudo pela metade.
 
         Se ela sabe ou não quem é o pai de seu filho, isso não a apoquenta. E o narrador não lhe surpreende os pen­samentos. Onisciente em relação aos outros personagens (sabe mais do que eles), em relação a Luiza, ao saber menos do que ela, torna-se eqüisciente.
 
         E mal a esboçando, mal se ocupando dela, cria um acabado tipo de mulher que não se deixou dominar por prin­cípios ou por verdades religiosas mas que em aparência a eles se submetendo, mansamente, foi sendo feliz.