domingo, 27 de março de 1994

O dizer mais forte

          Em 1839, Cirilo Villaverde publicou o pri­meiro tomo de Cecilia Valdés, considerado o melhor romance de costumes da literatura cubana. O segundo tomo viria à luz quarenta anos mais tarde quando foi, então, terminado. No prólogo que antecede a obra, Cirilo Villaverde esclarece as razões que determinaram a passagem desse lapso de tempo tão grande entre a composição dos dois tomos e como, finalmente, conseguiu levar a cabo a segunda parte o que impediu não se ter mantido na obra nem o mesmo ritmo narrativo, nem o mesmo nível lingüístico.

          Consciente disso e de que o sombrio dos qua­dros pudesse dar a impressão de que ele, fantasiosamente, se afastou da realidade do país, acredita dever uma explicação ao leitor. Então, afirma que, antes de mais nada, é um escri­tor realista e que em Cecilia Valdés procurou fugir dos per­sonagens e cenas inverossímeis (lembra das obras mais repre­sentativas da primeira ficção romântica, Atala, Paul et Vir­ginie) para copiar, “d’après nature”, aquilo que desejava fi­xar: os trajes, as falas, os caracteres, as situações do ho­mem cubano.

          E, verdadeiramente foi o que fez. Tipos popu­lares, cenas, costumes próprios de uma Havana cronologica­mente encerrada entre 1812 e 1831 são inscritos num romance que se inicia no mais acabado modelo romântico onde não fal­tam nem o mistério, nem o drama: um homem que faz uma visita a desoras e quer ficar incógnito, uma criança arrancada dos braços de sua mãe, o desenho de meia lua que lhe é feito no ombro antes de ser entregue à caridade das religiosas, o desepero materno.

          Do segredo instaurado a respeito da verda­deira identidade da criança, se origina o drama que nutrirá a ficção, um estereótipo de amores, de sedução, de tragédia ao qual se acrescentam as belas cenas que documentam o viver de uma sociedade ferozmente imbuída de racismo.

          E se o racismo e tudo o mais que dele advém foi a causa da desgraça de Cecilia Valdés, como já o fora também de sua mãe, ao ultrapassar as fronteiras da ficção, se constituiu um testemunho que procura, não apenas levar à emo­ção, mas, com certeza, também, a uma tomada de consciência.

          Se considerado em relação à História Literá­ria é evidente que Cecilia Valdés é uma obra estruturada de acordo com o que ordenam os cânones literários vigentes da época. Ao preferir, no entanto, o real ao fantasioso e ao questionar as posições ideológicas reinantes, as normas forâ­neas foram esquecidas muitas vezes, diante daquilo que mais importava ao escritor: representar um mundo sem as suas más­caras.

          Assim, o primeiro capítulo é disso uma sín­tese: não apenas é construído a partir de chavões românticos como se constitui uma amostra perfeita desse relacionamento que vigora no Continente entre as classes e que determinou a vida na Colônia.

          Uma dicotomia que permanecerá constante ao longo do romance apesar do tempo que se passou entre o início e o término da obra.

          Longe de Cuba, no seu exílio norte-americano, Cirilo Villaverde se manteve imune a quaisquer influências, permanecendo fiel a sua própria verdade.

          Muito mais do que aquelas que chegam de longe, elas estão perto do Continente.

domingo, 20 de março de 1994

Irredutíveis fronteiras

          Porque se os outros países his­pano-americanos são, para nós inacessíveis [...], no caso do Brasil - que precisa de traduto­res - a inacessibilidade adquire um caráter definitivo e total.É o que diz Rosario Castellanos num pequeno livro publicado em 1979 no México: Mujer que sabe latin... título que é certamente parte de um provérbio de antanho - mulher que sabe latim, não tem marido, nem tem bom fim - mas que, sem dúvida, continua sendo verdadeiro e normalizador em muitas latitudes ou, de uma forma ou de outra, em quase to­das.
          Rosario Castellanos é romancista. Neste seu livro, porém, congrega pequenos textos sobre mulheres. Na maioria, norte-americanas, algumas francesas, umas poucas la­tino-americanas. Entre elas Clarice Lispector a propósito de seu livro A paixão segundo G.H. traduzido para o espanhol. Algumas linhas a apresentam como uma das grandes narradoras da língua portuguesa e fazem referência a seus livros. Seguem-se os comentários sobre este que foi tra­duzido no México, comentários que se atêem somente ao texto em questão. No início de seu artigo, Rosario Castellanos já observara que um livro, um autor genial, não surgem no va­zio, mas num contexto formado tanto pela tradição herdada quanto pelas obras que lhe são contemporâneas. E o mundo de Clarice Lispector, a articulista desconhece como desconhece os demais mundos do Continente.
          Para que tal observação não seja considerada como uma crítica, se torna oportuno lembrar que, no mesmo ano em que era publicado Mujer que sabe latin..., Octavio Paz num programa de televisão mexicana, refletia sobre a veiculação de notícias na América Latina. Dependendo das agências noticiosas do Pri­meiro Mundo, os países do Continente só conseguem saber dos outros através da ótica daqueles que detém o monopólio das informações.

          Filtradas ou censuradas ou ignoradas, as no­tícias sobre fatos do Continente são preteridas pelas que in­formam sobre sucessos do Primeiro Mundo.

          E assim como só se acredita ter importância o que no Primeiro Mundo acontece, também na literatura somente tem valor o que no Primeiro Mundo é produzido pois, na sua grande maioria, é esta convicção colonialista que norteia, quase sempre, a política editorial do Continente. E que irá explicar que dos vinte e três artigos que formam Mujer que sabe latin... apenas três versem sobre escritoras da América hispânica: Maria Luiza Bombal, do Chile; Silvina Ocampo, da Argentina e Ulalume Gonzalez de Leon, uruguaia, mas vivendo no México.
 
          Ou seja, não é o saber latim que levará a es­critora latino-americana ao ostracismo, originado da falta de leitores. Mas também o se expressar em espaços historicamente induzidos ao isolamento.

domingo, 13 de março de 1994

Entrefechada rosa

          Foi dito que Maria Carpi começou a escrever muito cedo. Que se deixou absorver por uma profissão cujos caminhos podem ser luminosos como aquele que escolheu : lutar pelos direitos da criança e pelo acesso dos pobres à justiça. E que se desfez de seus primeiros textos para reiniciar sua obra poética, já na maturidade.
         Há muito pouco tempo esta obra está vindo à luz. Em 1990, o seu livro de estréia, Nos gerais da dor, pu­blicado pela Movimento recebeu o prêmio “Revelação Poesia da Associação Paulista dos Críticos de Arte” e o prêmio “Érico Veríssimo” da Câmara dos Vereadores de Porto Alegre.
         No ano seguinte, a mesma editora lançou Desi­derium/Desideravi ou como se esclarece na folha de rosto, o desejo de desejar-te.
         Um livro construído em oito cantos cada um deles possuindo um número desigual de poemas. Os seis primei­ros têm como título elementos da natureza que, no entanto, não se constituem o cerne do poema, mas elementos invocados para expressar o que o pudor da voz poética torna indizível.
         O amor, o amado, o ato amoroso, os caminhos da alma emergem desses versos de Maria Carpi tão profunda­mente puros que é como se somente palavras fortemente suges­tivas - árvore, água, fruta, pedra, fogo, luz - pudessem ser deles o símbolo.        
         Sem dúvida, um eu feminino que se revela no hermetismo buscado em distantes versos barrocos e na concisão que regulamenta o exibir dos sentimentos.
         Na prisão das palavras encobridoras, a ânsia da entrega, o entrelaçamento perfeito do corpo e da alma, o se sentir chegar às origens da vida se deixam, no entanto, perceber.
         As palavras se combinam, perfeitas, e cada verso constrói um mundo de certezas e de dúvidas girando em torno do amor, do erotismo, da procura e do encontro de si mesma e do outro.
         A voz de quem, ainda que amando profundamente não abdica de pertencer ao mundo e de conhecer-lhes as leis e que, ao se levantar, não fica encerrada nos limites do indi­víduo mas alcança tons que podem ser de todos.
O grande suplício não está nas trevas do corpo. Mas nas chagas da luz. O grande suplício não está no amor que se afasta. Mas no afastado que permanece. O grande suplício do que parte com a permanência e do que fica com a vacância. Num só fruto.

domingo, 6 de março de 1994

O peso da verdade


Ilustração do Livro: POVO KAINGÁNG
          Em 1993, em co-edição da UNOESC - Campus de Chapecó e do Secretariado Diocesano de Pastoral foi publicado O peso da cruz: conquista e religião.


          Cinco autores - Adair Tedesco, Arlene Renk, Eliane Oliveira, Juracilda Veiga e Wilmar d’Angelis - subs­crevem os trabalhos: “A religião como idioma de identidade faccional entre brasileiros no oeste catarinense”, “Em que crêem os Kaigangs”, “A Igreja católica na América Latina”, “Nova Evangelização”. Resultantes de uma atividade de exten­são do Departamento de História da UNOESC organizada em 1492 para pensar e repensar, sob diferentes aspectos, a fricção entre a cultura européia e as culturas nativas que, a partir da chegada dos ibéricos se tornou uma constante na América Latina são trabalhos que significam uma busca de sentido.

          Um desejo de entender certas questões cuja origem se inscreve no passado mas cujas conseqüências - assim o diz Pedro Uczai ao apresentar a obra estão ao nosso redor, desafiando-nos e exigindo respostas em níveis de produção acadêmicas e de práticas sociais, das quais não podemos nos furtar.

          Assim, é o interesse em retomar essa questão primeira - a inexorável presença da Igreja Católica no Conti­nente - onde se encravam as outras; a passagem do rito indí­gena para aquele imposto pelos conquistadores; a oposição conduzida por razões sócio-econômicas que pode se instaurar no interior da Igreja Católica oficial; as novas formas de evangelização.

          Temas ligados por um fio condutor - a reli­gião como um meio para o exercício do domínio - buscando, so­bretudo, respostas para as interrogações que surgem espontâ­neas quando consideradas as relações entre a verdade pregada e sua prática.

          Mas, embora seja feito de inquietações, O peso da cruz é um pequeno livro alimentado de esperanças pois na provocação de um diálogo espera dar ensejo às imprescindí­veis mudanças. E é certamente, de mudanças que o Continente necessita.