O conto se chama “Sem rumo”.
É muito breve e feito de pouco: fugidias estampas dos campos do sul e as caminhadas
de Nilo em busca do animal perdido.
A paisagem, no anoitecer de
inverno, vai perdendo os contornos, mas não, ainda, o agitar da vida se expressando
no coaxar das rãs, no vôo dos quero-queros, no correr das ovelhas, na
inquietação dos cavalos. E, em meio às formas que se embaciam nas sombras, cada
vez mais densas, a emoção de Nilo vai ficando maior nesse medo que aumenta com
a escuridão da noite.
Caminhando nas poças d’água,
no chão molhado e se enfiando na sanga, tinha procurado a Bordada por todo o
piquete. E, com a noite, o medo aumentando: de apanhar de relho se voltasse
para casa sem a vaca, de enfrentar a noite nos campos vazios.
Querendo ajuda, enfrenta a
lonjura do rancho de seu Paulo. Chega de olho vermelho de chorar, perguntando
pela Bordada. E o velho repreende: Não deste um naco de fumo pra o Negrinho, não foi?
Expressão de uma crença que
se enraizara quando já homem feito, quase
velho, perdera o tobiano.
Procurara muito e por muito
tempo. Meses se haviam passado e só então ele se lembrara de deixar um naco de fumo debaixo de um espinilho, na
volta da estrada. Anoitecia. Cavalgando no campo de lua cheia muito clara, quatro léguas depois, ele viu o tobiano. Foi
um encontro de amigos: Que alegria a dos
dois! O pingo espichou baixinho o pescoço, entregue. E a mão do campeiro, mestre
de amanunsiar, correu pelas crinas, procurou graxa no cogote, alisou o lombo,
derrubou a fêlpa frouxa da anca, tudo como quem abraça um amigo velho.
E seu Paulo ensina: Toma leva este naco de fumo, dá pra ele, e sai
à toa nomais, que ele reponta pra tua frente o animal perdido.
O guri sai outra vez para a
noite. Escolhe o lugar para a oferenda. Toma, Negrinho, pra mim achá a Bordada
e avança na noite cheia de vida: Vaga-lumes
cintilavam múltiplos na noite sem estrelas. Acendiam longe as luzes minúsculas.
Subiam trançando curvas mínimas de claridade. Demoravam no ar ondulando
lentos. Simulavam quedas. E volviam em equilíbrio de vôo sereno para o alto,
para afinal declinarem rápidos cruzando pertinho dos olhos do guri, arregalados
de susto. E eram muitos, inumeráveis,
para todos os lados que se virasse, como nunca tinha visto. Os grilos gritando
agudo de todas as moitas. E o vozerio desigual dos sapos vindo das sangas,
asperejando o barulhinho sonoro das correntezas. Eram todas as vozes dispersas
do campo chegando juntas agora aos seus ouvidos, como um feixe penetrante de
sons.
Porém, para o menino,
atemorizado, só existe o desejo de se livrar do escuro e chegar em casa .Pequeno drama, fio condutor
da narrativa que, no entanto, é no espaço e no mítico que enovela: a paisagem,
vibrante, sonora, cheia de vida, se impõe. E a lenda, revive no gesto da
oferenda, na alegria do reencontro, na esperança.
“Sem rumo” é um dos contos
de Campo fora, livro de estréia de
Cyro Martins, publicado em 1934. Sua segunda edição foi em 1957 para a Coleção
Província da Editora Globo num volume, Paz
nos campos, do qual fazem parte, também Um menino vai para o colégio e Porteira
fechada.
Na pequena “Nota
explicativa”, que antecede os textos, Cyro Martins diz que estes que formam Campo fora, refletem as suas vivências
da infância e adolescência, passadas nos campos de fronteira.
São esses campos que vivem
em “Sem rumo” e, assim como a lenda do Negrinho do Pastoreio, estão na sua
origem.
Os dois personagens - o
velho que recebe o favor e o menino que pede lhe seja concedido achar o animal
que se perdera – talvez sejam figuras menores mas habitantes de um universo
que Cyro Martins, numa evocação bela e sentida, recupera e faz outra vez
existir.
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