domingo, 19 de dezembro de 1993

Oferendas

          O conto se chama “Sem rumo”. É muito breve e feito de pouco: fugidias estampas dos campos do sul e as ca­minhadas de Nilo em busca do animal perdido.
          A paisagem, no anoitecer de inverno, vai per­dendo os contornos, mas não, ainda, o agitar da vida se ex­pressando no coaxar das rãs, no vôo dos quero-queros, no cor­rer das ovelhas, na inquietação dos cavalos. E, em meio às formas que se embaciam nas sombras, cada vez mais densas, a emoção de Nilo vai ficando maior nesse medo que aumenta com a escuridão da noite.
          Caminhando nas poças d’água, no chão molhado e se enfiando na sanga, tinha procurado a Bordada por todo o piquete. E, com a noite, o medo aumentando: de apanhar de re­lho se voltasse para casa sem a vaca, de enfrentar a noite nos campos vazios.
          Querendo ajuda, enfrenta a lonjura do rancho de seu Paulo. Chega de olho vermelho de chorar, perguntando pela Bordada. E o velho repreende:  Não deste um naco de fumo pra o Negrinho, não foi?
          Expressão de uma crença que se enraizara quando já homem feito, quase velho, perdera o tobiano.
          Procurara muito e por muito tempo. Meses se haviam passado e só então ele se lembrara de deixar um naco de fumo debaixo de um espinilho, na volta da estrada. Anoi­tecia. Cavalgando no campo de lua cheia muito clara, quatro léguas depois, ele viu o tobiano. Foi um encontro de amigos: Que alegria a dos dois! O pingo espichou baixinho o pescoço, entregue. E a mão do campeiro, mestre de amanunsiar, correu pelas crinas, procurou graxa no cogote, alisou o lombo, der­rubou a fêlpa frouxa da anca, tudo como quem abraça um amigo velho.
          E seu Paulo ensina:  Toma leva este naco de fumo, dá pra ele, e sai à toa nomais, que ele reponta pra tua frente o animal perdido.
          O guri sai outra vez para a noite. Escolhe o lugar para a oferenda.  Toma, Negrinho, pra mim achá a Bor­dada e avança na noite cheia de vida: Vaga-lumes cintilavam múltiplos na noite sem estrelas. Acendiam longe as luzes mi­núsculas. Subiam trançando curvas mínimas de claridade. Demo­ravam no ar ondulando lentos. Simulavam quedas. E volviam em equilíbrio de vôo sereno para o alto, para afinal declinarem rápidos cruzando pertinho dos olhos do guri, arregalados de susto. E eram muitos, inumeráveis, para todos os lados que se virasse, como nunca tinha visto. Os grilos gritando agudo de todas as moitas. E o vozerio desigual dos sapos vindo das sangas, asperejando o barulhinho sonoro das correntezas. Eram todas as vozes dispersas do campo chegando juntas agora aos seus ouvidos, como um feixe penetrante de sons.
          Porém, para o menino, atemorizado, só existe o desejo de se livrar do escuro e chegar em casa .Pequeno drama, fio condutor da narrativa que, no entanto, é no espaço e no mítico que enovela: a paisagem, vibrante, sonora, cheia de vida, se impõe. E a lenda, revive no gesto da oferenda, na alegria do reencontro, na esperança.
          “Sem rumo” é um dos contos de Campo fora, li­vro de estréia de Cyro Martins, publicado em 1934. Sua se­gunda edição foi em 1957 para a Coleção Província da Edi­tora Globo num volume, Paz nos campos, do qual fazem parte, também Um menino vai para o colégio e Porteira fechada.
          Na pequena “Nota explicativa”, que antecede os textos, Cyro Martins diz que estes que formam Campo fora, refletem as suas vivências da infância e adolescência, passa­das nos campos de fronteira.
          São esses campos que vivem em “Sem rumo” e, assim como a lenda do Negrinho do Pastoreio, estão na sua origem.
          Os dois personagens - o velho que recebe o favor e o menino que pede lhe seja concedido achar o animal que se perdera – talvez sejam figuras menores mas habitantes de um uni­verso que Cyro Martins, numa evocação bela e sentida, recu­pera e faz outra vez existir.

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