domingo, 12 de dezembro de 1993

O caminho das lendas

          Passou a infância no interior do país e, ainda adolescente, foi para Montevidéu onde trabalhou como funcionário público durante trinta anos. E, lentamente, foi escrevendo o que a crítica define como valiosa contribuição à literatura nativista.
          Em 1974, Valentin Garcia Saiz morria aos oi­tenta anos, quando já se haviam passado cinco décadas da pu­blicação de seu primeiro livro Tacuari.
          Em alguns anos se seguiram Salvaje, Pilchas, Las Bóvedas, Leyendas y supersticiones del Uruguay e El nar­rador gaucho. 
          Este último, foi publicado em 1945 e reedi­tado pelo Ministério de Educação e Cultura do Uruguai em 1978. Congrega duas obras: a que lhe dá o título e uma anto­logia de contos feita pelo próprio autor.a
          El narrador gaucho que tem como sub-título novela en cuentos é feito dos relatos do tio Tucú, um índio velho [...] figura patriarcal e venerável no pago in­teiro.
          São relatos independentes entre si mas unidos por essa voz que elabora uma crônica dos costumes patriar­cais, minuciosamente registra o falar e modo de ser da gente do campo e, numa desafiante imaginação, reconstrói os causos do galpão.
          Tio Tucú vive numa fazenda em terras urugu­aias que fazem fronteira com o Brasil. Todos os dias, de tar­dezinha, chega, trazendo a lenha para o fogão. E, mal ele chega, a gurizada o rodeia, esperando a história.
          Resmungando, esquecendo ou se fazendo de es­quecido, Tio Tucú, feliz, conta e reconta, para um auditório atento que não lhe permite enganos ou qualquer mudança na história que já conhece e interpela, quando escuta, uma ou­tra, desconhecida.
          Numa tarde, encontra a gurizada em desespero pelo extravio de uma ovelhinha guacha. Para achar coisas per­didas, ele só conhece um remédio: acender uma vela para o Ne­grinho do Pastoreio, um santo remédio! E logo ele per­gunta: Nunca ouviram contar a história desse santinho tão adorado aqui no campo?
          E tomou a palavra para contar, com simplici­dade quase bíblica, o que sabia sobre o Negrinho do Pasto­reio.
          Começa se reportando à origem do Negrinho, achado no mato, perto de um arroio; aos maus tratos que rece­beu de quem o criou; ao extravio dos animais que estavam sob sua guarda e do castigo que recebeu; à pena que dele tiveram as formigas voadoras que levaram seu sofrido corpo para o céu onde foi feito, desde esse dia, um santo por Deus. O pequeno padroeiro das coisas perdidas.
          Na verdade, as variantes que existem entre essa versão de Valentin García Saiz e a de Simões Lopes Neto, explicadas pela origem popular da lenda, não atingem seus si­gnificados mais profundos.
          Assim, entre outros, essa crença numa justiça superior, que faz com que numa variante sejam as formigas que levam para o céu o corpo massacrado do Negrinho e na outra, ele seja conduzido por sua madrinha, Nossa Senhora.
          Ou seja, em ambos os casos, a solução encon­trada para a catarse foi apenas espiritual, permanecendo ig­norada a estrutura social, responsável pelo relacionamento escravo/proprietário.
          Em se tratando de uma região geográfica re­gida pelos mesmos princípios econômicos, mesmos estatutos da terra, mesmos regimes de trabalho, suas linhas oficiais de fronteira determinam uma separação artificial. Limites nega­dos por várias situações e, pela presença dos “causos”, su­perstições, provérbios, lendas que se desenvolvem indiferen­tes às barreiras nacionalistas como desconhecidos territórios do Continente.

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