domingo, 14 de novembro de 1993

Ir para lugar nenhum

          A dicotomia é conhecida: os ricos, que tudo podem e os pobres, a quem tudo é negado.
          Se o romance de Cyro Martins fosse estudado segundo o modelo que o pesquisador alemão Ulrich Ricken usou para a sua análise de Diderot, o resultado não seria dife­rente. Assim como em Le neveu de Rameau, também em Porteira fechada há os que possuem muito além do necessário e os que mal tem onde viver e quase nada para pagar o pouco com que se alimentam.
          Neste romance de Cyro Martins, publicado em 1944, o contraste, muito nítido, se estabelece em vários ní­veis: alimentação, vestuário, aspecto físico dos personagens e atitudes.
          Na mesa do café da manhã da prima rica que vive na cidade, a xícara fumegante, as bolachinhas, o bolo, a manteiga, o mel e o pão só lhe provocam um olhar enfasti­ado. No outro lado da cidade, na casa paupérrima da prima chegada do campo, faltava o essencial. Enquanto uma era bo­nita e tratada, a outra se perdia nos desgastes que os maus tratos da vida originam: emagrecida, as bochechas chupadas, os olhos encovados, as maçãs do rosto proeminentes.
          Mas é, sobretudo, nas atitudes dominadoras ou submissas dos personagens que os antagonismos se exasperam, adquirindo significados que ultrapassam a ficção para se constituir numa denúncia.
          João Guedes vivia com a família em campo alheio até o dia em que a terra foi vendida e teve que aban­doná-la. Obrigado a procurar sustento na pequena ci­dade, de homem capaz e trabalhador foi se degradando até se tornar bêbado e ladrão.Ele se cala diante do dono da terra, assim como na cidade sua mulher e suas filhas se calam diante da opulência das primas.
          E o título do romance se constitui a síntese do destino de João Guedes. Deve ir embora da terra que lhe proporciona o sustento mas o caminho que empreende, que é le­vado a empreender, não tem saída.
          Fronteira fechada se inicia com sua morte, bêbado, baleado, à beira de uma sanga. Enquanto se prolonga seu velório, essa migração que o destruiu, a miséria que se instalou no seu rancho da cidade, a morte de uma filha, a fuga da outra, vai sendo contada. Outras misérias de vidas igualmente em farrapos ou de vidas que se crêem vencedoras, se acrescentam. Já no fim do romance, o quadro mimético se completa com uma nova dicotomia.
          Enterrado João Guedes no cemitério da cidade, caem os primeiros pingos de chuva, de uma chuva que continua sem trégua, cerrada, uniforme, grossa.
          No campo, onde ele vivera, o dia termina se­reno. Onde fora o seu rancho agora era um rincão despovoado. Não se avistava um vulto de campeiro, não se ouvia um latido de cachorro numa porta de toca, não tremulava um pala endo­mingado, não chiava uma carreta, os arados não rompiam a terra. Ali o novo dono engordava os seus bois, justificando o latifúndio de arames farpados e porteiras fechadas impulsi­onadoras de um êxodo sem futuro.

Porteira fechada, juntamente com Campo fora e Um menino vai para o colégio foi publicado pela se­gunda vez num volume da “Coleção Província”, Paz nos campos, da Editora Globo, Porto Alegre, 1957.

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