A dicotomia é conhecida: os
ricos, que tudo podem e os pobres, a quem tudo é negado.
Se o romance de Cyro Martins
fosse estudado segundo o modelo que o pesquisador alemão Ulrich Ricken usou
para a sua análise de Diderot, o resultado não seria diferente. Assim como em Le neveu de Rameau, também em Porteira fechada há os que possuem
muito além do necessário e os que mal tem onde viver e quase nada para pagar o
pouco com que se alimentam.
Neste romance de Cyro
Martins, publicado em 1944, o contraste, muito nítido, se estabelece em vários
níveis: alimentação, vestuário, aspecto físico dos personagens e atitudes.
Na mesa do café da manhã da
prima rica que vive na cidade, a xícara
fumegante, as bolachinhas, o bolo, a manteiga,
o mel e o pão só lhe provocam um olhar enfastiado. No outro lado da
cidade, na casa paupérrima da prima chegada do campo, faltava o essencial.
Enquanto uma era bonita e tratada, a outra se perdia nos desgastes que os maus
tratos da vida originam: emagrecida, as
bochechas chupadas, os olhos encovados, as maçãs do rosto proeminentes.
Mas é, sobretudo, nas
atitudes dominadoras ou submissas dos personagens que os antagonismos se
exasperam, adquirindo significados que ultrapassam a ficção para se constituir
numa denúncia.
João Guedes vivia com a
família em campo alheio até o dia em que a terra foi vendida e teve que abandoná-la. Obrigado a procurar sustento
na pequena cidade, de homem capaz e trabalhador foi se degradando até se
tornar bêbado e ladrão.Ele se cala diante do dono
da terra, assim como na cidade sua mulher e suas filhas se calam diante da
opulência das primas.
E o título do romance se
constitui a síntese do destino de João Guedes. Deve ir embora da terra que lhe
proporciona o sustento mas o caminho que empreende, que é levado a empreender,
não tem saída.
Fronteira fechada se inicia com sua morte, bêbado, baleado, à beira de uma sanga.
Enquanto se prolonga seu velório, essa migração que o destruiu, a miséria que
se instalou no seu rancho da cidade, a morte de uma filha, a fuga da outra, vai
sendo contada. Outras misérias de vidas igualmente em farrapos ou de vidas
que se crêem vencedoras, se acrescentam. Já no fim do romance, o quadro
mimético se completa com uma nova dicotomia.
Enterrado João Guedes no
cemitério da cidade, caem os primeiros pingos de chuva, de uma chuva que
continua sem trégua, cerrada, uniforme,
grossa.
No campo, onde ele vivera, o
dia termina sereno. Onde fora o seu rancho agora
era um rincão despovoado. Não se avistava um vulto de campeiro, não se ouvia um
latido de cachorro numa porta de toca, não tremulava um pala endomingado, não
chiava uma carreta, os arados não rompiam a terra. Ali o novo dono engordava os seus bois, justificando o
latifúndio de arames farpados e porteiras fechadas impulsionadoras de um êxodo
sem futuro.
Porteira fechada, juntamente com Campo fora
e Um menino vai para o colégio foi
publicado pela segunda vez num volume da “Coleção Província”, Paz nos campos, da Editora Globo, Porto
Alegre, 1957.
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