domingo, 28 de novembro de 1993

Olhar para o norte 1

          “Constancia”, talvez seja um relato inti­mista. A paixão de Whitby por Constancia.
          Do sul da Espanha ele a levou a Savannah, ci­dade sulista dos Estados Unidos. Nela, Constancia construiu o seu mundo onde só ela cabia e, por vezes, o marido americano.
          Não aprendeu a falar inglês, não fez amigos, não leu os livros que havia na casa, repetindo o seu ritual cotidiano de Sevilha: se expor ao sol na praça, refugiar-se numa longa sesta do calor tórrido que em agosto dominava a cidade. E, assim, reencontrando pela imaginação, a água e o sol da Andaluzia nas ruas e praças de uma cidade do Novo Con­tinente, ela deixou escoar sua vida ao lado desse americano tranquilo.
          É ele o narrador desse viver harmonioso, que durante quarenta anos, escondeu um mistério. Antes de chegar a ele e a ele se submeter, Whitby pouco tem a dizer. Daí a importância desses diálogos eventuais e bizarros que mantém com o vizinho.
          Meros acasos o aproximam de Pletnikov, o re­fugiado russo, e as palavras que eles trocam entre si - so­bretudo prudentes na tentativa de não ferir suscetibilidades - reafirmam crenças e certezas.
          Whitby, convicto de que seu país é o que um maior número de imigrantes recebeu ao longo de sua história, se surpreende com as observações do exilado russo, cuja con­dição lhe permite captar nuanças que só o viver em terra alheia possibilita. E que o faz duvidar de que, além de bem-vindo, possa, também, almejar que a sua história e as suas lembranças e seu desejo de um dia regressar a seu país sejam igualmente aceitos. E acrescenta que a história americana é seletiva demais. A história do êxito branco, o que rejeita as outras realidades; a do passado índio, a do negro, a dos his­panos. Histórias todas que sempre ficam de fora.
          Como ficam de fora da vida de Whitby, um americano tranquilo, excelente profissional que vota com os democratas, esses outros que também fazem parte de seu país: Olho raramente para os negros de Savannah; só lhes falo o indispensável.
          Mas, sua boa consciência lhe permite perceber que os edifícios nobres da cidade são o símbolo de dois co­mércios: um famoso, o outro infame: algodão e escravos; ne­gros importados, brancas fibras exportadas. Isto o que ele chama a ironia cromática dessas trocas. Uma ironia que ainda é preferível, ele considera, às culpas que, de certa maneira, o perseguem pois não deixa de se perguntar até onde pode ou deve chegar a minha responsabilidade pessoal por in­justiças que não cometi?.
          Contudo, não são questões que ele aprofunda ao preferir proteger-se pela ironia e pela inexplicável indi­ferença ao surpreender sua mulher conversando, na praça, com um negro que lhe toma uma das mãos. E, embora se trate de uma cena exacerbadamente incomum em terra preconceituosa, ele não interfere e nem questiona.
          Publicado em 1990, “Constancia” faz parte de Constancia y otras novelas para vírgenes (México, Fondo de Cultura Económica) e foi escrito por Carlos Fuentes.
          Emir Rodriguez Monegal, o crítico uruguaio, seu amigo de muitos anos ao entrevistá-lo longamente disse, no introito a essa entrevista, que a ampla visão de Carlos Fuentes sobretudo, o torna diferente dos outros intelectuais latino-americanos em geral confinados ao estímulo das tradi­ções locais
          “Constancia” é um testemunho de que  seu in­teresse pode, efetivamente, se deslocar da problemática mexi­cana - sem dúvida, sua paixão - para outras, em aparência, diferentes.
          Assim, quando se aproxima das relações norte-americanas / negro ou norte-americanas / imigrante não está, sem dúvida, se afastando das relações latino-americanas com os negros ou com os imigrantes.
          Apenas indicando outros possíveis matizes para algo que ninguém desconhece.

domingo, 21 de novembro de 1993

Tirano Banderas

          É espanhol o autor do primeiro romance sobre o ditador latino-americano, Ramón del Valle Inclán, nascido em Pontevedra, na Galícia.
          Já era autor de muitos livros quando, em 1926, ano em que a Espanha adotou a jornada de oito horas de trabalho, publica Tirano Banderas. Tinha sessenta anos e a consciência exata de que tudo o que escrevera até então, não passava de musiquinha para violino. Tirano Banderas é o pri­meiro romance que escrevo. Meu trabalho começa agora são pa­lavras suas que Francisco Madrid, ao escrever-lhe a biogra­fia, registra.
          Na verdade, a crítica reconhece Tirano Bande­ras não apenas como sua melhor obra, cuja perfeita construção interna e provocativo manejo da linguagem se aliam a uma nova e inusual temática, mas como uma obra revolucionária no pano­rama literário de seu tempo e, sem dúvida, o primeiro romance esperpêntico.
          A palavra aparece pela primeira vez em 1920 na sua obra Luces de bohemia para designar uma nova estética baseada no absurdo de uma sociedade que se desagrega, no ho­mem que perdeu toda dimensão heróica para se converter em ca­ricatura de si mesmo. Para se converter num fantoche, num esperpento (espantalho).
          É certamente possível justificar essa esté­tica a partir dos acontecimentos sociais e políticos da Espa­nha em que Valle Inclán viveu. No entanto, ao criar um espaço imaginário - Santa Fé de Tierra Firme, o território síntese que permite a existência do Tirano, Valle Inclán o situa no Continente.
          E Tirano Banderas, é tido como o livro que antecedeu aqueles que anos mais tarde criariam, na ficção, a terrível figura do ditador latino-americano: El señor presi­dente, El otoño del patriarca, El recurso del método, Yo, el supremo. Brevemente, ele retrata o ditador e dilui a sua ação em discursos proferidos por outros, pretensamente políticos e em cenas ilustrativas daquilo que pode ocorrer em regimes de tirania: as tramas, as perseguições, as mortes.
          Tirano Banderas possui o poder alcançado pe­las armas com o qual manipula as elites e aqueles que lhe garantem a permanência no mando. Como preconiza a estética do esperpento é um personagem no qual se exageram rasgos que o aproximam de uma máscara, de um fantoche, de um animal, de algo inanimado.
          Nas primeiras linhas que o mostram imóvil e taciturno é assinalada a sua semelhança com uma caveira, de óculos negros e gravata de clérico. Tendo aprendido no Peru a mascar coca, tinha sempre na comissura dos lábios, uma sa­livinha verde. E múmia o chama o narrador quando dele se trata e de cruel e vesânico, alheio aos fuzilamentos que em todos os entardeceres eliminam os revolucionários que lhe perturbam o sossego.
          E, acreditando num domínio infindo é surpre­endido pela traição ou pela verdade dos outros. Há os que de­sejam justiça social; há os que mudam de campo e há os solda­dos que atiram para cima para não provocar baixa no campo inimigo.
          Então, Tirano Banderas é encurralado e morto.
          Para assim pagar seus crimes ou maldades ou apenas para que a História do Continente continuasse a ser feita pela substituição de um tirano - qualquer que seja o seu matiz - por outro.

domingo, 14 de novembro de 1993

Ir para lugar nenhum

          A dicotomia é conhecida: os ricos, que tudo podem e os pobres, a quem tudo é negado.
          Se o romance de Cyro Martins fosse estudado segundo o modelo que o pesquisador alemão Ulrich Ricken usou para a sua análise de Diderot, o resultado não seria dife­rente. Assim como em Le neveu de Rameau, também em Porteira fechada há os que possuem muito além do necessário e os que mal tem onde viver e quase nada para pagar o pouco com que se alimentam.
          Neste romance de Cyro Martins, publicado em 1944, o contraste, muito nítido, se estabelece em vários ní­veis: alimentação, vestuário, aspecto físico dos personagens e atitudes.
          Na mesa do café da manhã da prima rica que vive na cidade, a xícara fumegante, as bolachinhas, o bolo, a manteiga, o mel e o pão só lhe provocam um olhar enfasti­ado. No outro lado da cidade, na casa paupérrima da prima chegada do campo, faltava o essencial. Enquanto uma era bo­nita e tratada, a outra se perdia nos desgastes que os maus tratos da vida originam: emagrecida, as bochechas chupadas, os olhos encovados, as maçãs do rosto proeminentes.
          Mas é, sobretudo, nas atitudes dominadoras ou submissas dos personagens que os antagonismos se exasperam, adquirindo significados que ultrapassam a ficção para se constituir numa denúncia.
          João Guedes vivia com a família em campo alheio até o dia em que a terra foi vendida e teve que aban­doná-la. Obrigado a procurar sustento na pequena ci­dade, de homem capaz e trabalhador foi se degradando até se tornar bêbado e ladrão.Ele se cala diante do dono da terra, assim como na cidade sua mulher e suas filhas se calam diante da opulência das primas.
          E o título do romance se constitui a síntese do destino de João Guedes. Deve ir embora da terra que lhe proporciona o sustento mas o caminho que empreende, que é le­vado a empreender, não tem saída.
          Fronteira fechada se inicia com sua morte, bêbado, baleado, à beira de uma sanga. Enquanto se prolonga seu velório, essa migração que o destruiu, a miséria que se instalou no seu rancho da cidade, a morte de uma filha, a fuga da outra, vai sendo contada. Outras misérias de vidas igualmente em farrapos ou de vidas que se crêem vencedoras, se acrescentam. Já no fim do romance, o quadro mimético se completa com uma nova dicotomia.
          Enterrado João Guedes no cemitério da cidade, caem os primeiros pingos de chuva, de uma chuva que continua sem trégua, cerrada, uniforme, grossa.
          No campo, onde ele vivera, o dia termina se­reno. Onde fora o seu rancho agora era um rincão despovoado. Não se avistava um vulto de campeiro, não se ouvia um latido de cachorro numa porta de toca, não tremulava um pala endo­mingado, não chiava uma carreta, os arados não rompiam a terra. Ali o novo dono engordava os seus bois, justificando o latifúndio de arames farpados e porteiras fechadas impulsi­onadoras de um êxodo sem futuro.

Porteira fechada, juntamente com Campo fora e Um menino vai para o colégio foi publicado pela se­gunda vez num volume da “Coleção Província”, Paz nos campos, da Editora Globo, Porto Alegre, 1957.

domingo, 7 de novembro de 1993

Eloy, quarenta anos depois

          Em 1945, Carlos Droguett escrevia Eloy, ro­mance baseado num fato real ocorrido três anos antes: a morte de um perseguido chileno pela polícia.
          Publicada na Espanha em 1959, seguiram-se as edições da Argentina, Chile e Cuba e as traduções para o ita­liano, alemão, dinamarquês, holandês, tcheco, polonês, fran­cês e português.
          Sem dúvida, é a obra do romancista chileno que mais interesse provocou.Inclusive, a versão cinematográ­fica, realizada em 1968.
          Embora os primeiros críticos tenham se fixado mais no assunto da obra - as últimas horas vividas pelo per­sonagem, cercado de polícias - a crítica posterior, segundo Teobaldo Noriega, iria observar que certos procedimentos nar­rativos, no momento em que a obra foi escrita, ainda eram desconhecidos no Chile.
          Mas, ainda assim, as diversas edições e os múltiplos trabalhos sobre o romance não foram suficientes para que Eloy e os demais romances de Carlos Droguett se tor­nassem conhecidos no seu país. E isto só foi acontecer, quando em 1970, ele recebeu o Prêmio Nacional de Literatura.
          Alguns anos depois, em entrevista concedida a Teobaldo Noriega, em Berna, onde se exilara depois do golpe de Estado ocorrido no Chile, comentando o significado do Prê­mio, ele diria: O Prêmio Nacional de Literatura mais do que a mim, afetou os críticos e os professores de Literatura que se viram obrigados a declarar essa data como a de meu nasci­mento.
          Na verdade, a não ser a sua “trilogia da con­quista”, Supay el cristiano, Cien gotas de sangre e docientas de sudor e El hombre que trasladaba las ciudades, todos os seus romances foram publicados fora do Chile e fora do Chile se publicaram os trabalhos dedicados a sua obra.
          Agora, na véspera dos quarenta anos da gênese de Eloy, é preparada nova edição da obra revista pelo autor.
          Escrita em quinze dias, depois de guardar du­rante três anos a emoção sentida naquela manhã em que soube que Eloy tinha sido morto pela polícia, esta revisão que efe­tua, agora, se constitui, certamente, um documento literário de enorme importância. Tanto no que se refere às modificações formais efetuadas, quanto a visão do escritor em relação a seu personagem.
          O cotejo de uma página do romance revista com a página correspondente da edição publicada em 1959 mostra que não somente foram muitas as modificações como ocorreram em diferentes níveis.
          Houve mudanças de pontuação e acréscimos de palavras e troca de palavras. Modificações que, por um lado, agilizaram o texto ao substituir, por exemplo, as conjunções aditivas por vírgulas e, por outro, intensificaram o emotivo quando as mudanças se relacionaram com os nomes.
          O que ocorreu na substituição da palavra pan­talón de niño (calça de criança) pelo seu diminutivo, panta­loncito, sugerindo uma criança menor e, portanto, tornando mais cruel a sua morte. Ou, ao substituir o adjetivo suave, que se referia à madeira da carabina por mansa, lhe confere uma qualidade (ou defeito) humana.
          O fato do romancista ter se proposto a efe­tuar a revisão de Eloy e, ao fazê-lo, sentir necessidade de tantas modificações - somente na primeira página foram dezes­seis - possui, certamente, muitos e importantes significados que a análise do cotejo dos dois textos irá mostrar.
          Mas, além dos estudos que dão prioridade à forma e daqueles que se ocupam dos procedimentos literários, da gênese dos textos e da relação do tema com o seu autor, essa nova edição de Eloy irá reafirmar a atualidade da obra. Quer no que se refere à questão do indivíduo, que diante das circunstâncias deve fazer uma opção, quer no que se refira à circunstâncias que levam o indivíduo à determinadas opções.
          Eloy era um artesão que um momento de tensão transformou em marginal e como marginal foi caçado e morto pela polícia.
          Certamente a sua história num Continente de misérias e de traumas sociais não pertence ao passado.