Richard Lamb tinha cerca de
vinte e cinco anos quando circunstâncias de sua vida o levaram a viajar pelo
interior de um Uruguai agitado por lutas entre facções políticas em busca de
ideais que, num país ainda em formação, por vezes, não se definiam claramente.
Inglês, Richard Lamb, que se
propõe contar o que lhe aconteceu nessas andanças, pouco chega a entender das
razões que estavam à origem dos conflitos e, tampouco, parece nutrir um grande
interesse em consegui-lo. Apaixona-se, na verdade, pela natureza ainda intocada
que se apresenta diante de seus olhos e pelos tipos humanos que vai conhecendo
no renovado pedido de pousada nesse mundo em que se adentra pela primeira vez.
Um mundo rústico e austero
que, embora dividido nas convicções, se iguala ao jamais recusar casa e comida
a quem chega o que o torna, então, transparente aos olhos do forasteiro.
Modelado por outros padrões
de comportamento, Richard Lamb registra esses encontros e constata, com real
simpatia, as diferenças do rito social e da filosofia de vida que separam seus
compatriotas desses habitantes do Novo Mundo.
Na primeira vez que pede
pouso, se admira das palavras de seu hospedeiro para o filho pedindo-lhe que
deixe em liberdade o vagalume que aprisionara pois ele servia de companhia para
as almas do outro mundo. Richard Lamb se congratula por ter encontrado no meio do
campo uma pessoa de coração tão manso e
compassivo. Opinião que dura até o momento em que essa mesma pessoa lhe
conta ter degolado, sem pena, um homem que, durante o sítio de Montevidéu, era
suspeito de ser um espião: Veja, senhor,
eu mesmo abri com meu punhal o pescoço daquele homem. Porque nesse mundo, se um
homem não se acostuma a derramar sangue, sua vida seria um peso para ele.
Velho desumano e assassino,
pensa o inglês, certamente ignorando que num território onde tudo era
indefinido - família, propriedade, moral - onde dificilmente chegavam outras leis,
imperava a do mais forte.
E, ignorando ou esquecendo
as reais razões de uma lei Bil Aberdeen, por exemplo, sob a égide da qual a
Inglaterra interferia - fazendo crer que por justiça e humanidade - no tráfico
negreiro que, sabidamente, lhe era prejudicial.
Noutro pouso, que lhe
propiciou conviver com uma família numerosa lamenta desconhecer os signos e os símbolos para expressar os sentimentos do coração.
Recebido com amabilidade, se
encanta com a comida abundante, com os cantos e danças ao som do violão. Ao
partir, recebe de presente um cavalo já que o seu estava cansado demais para
continuar a viagem. Só então, na despedida, se dá conta pelo olhar de uma das
filhas da casa que havia perdido um belo
e idílico pequeno flirt. E,
pesaroso se pergunta como poderia ter
começado um flirt levando-o até o
seu ponto culminante naquela sala pública, com todos aqueles olhos postos em
mim; com os cães, crianças e gatos enredados nos meus pés.
Conclui que os uruguaios vivendo todos juntos numa grande sala com seus filhos e animais
mimados, possuem como os antigos pastores ingleses, essa linguagem do
coração que ele ignorava e que deveria ter aprendido.
A cada fato que acrescenta a
seu relato, fica evidente também um aprendizado: o abrir dos olhos para o
mundo, o saber ver e aceitar outras formas de viver e de sentir.
E o seu relato iniciado com
terríveis críticas à gente do país - corruptas
naturezas, seus crimes ultrapassaram todos os demais - e uma
patriótica arenga lamentando ter a Inglaterra perdido essa parte do Continente
termina com uma apologia desse mesmo povo:os
fidalgos da natureza.
Partindo de uma frase de
Spinoza e de considerações sobre um Estado ideal, não somente ele aceita as
virtudes e os crimes que vicejam nessas terras do Novo Mundo, como formula votos
de que a seus futuros invasores aconteça o mesmo que no passado: sejam
repelidos. Oxalá o resplendor de nossa
civilização superior não caia nunca sobre tuas flores nem caia tampouco o jugo
de nosso progresso sobre teu pastor - descuidado, airoso, amante da música como
os pássaros - para fazê-lo mal humorado e abjeto camponês do Velho Mundo.
Cavalgar pelos campos do
Uruguai e conhecer a sua gente fizeram com que Richard Lamb fosse vencido pela
cordialidade - anos depois diria que mesmo o rosto dos que o haviam tratado mal
lhe parecia ter uma expressão amistosa - e pela admiração diante daqueles que,
no seu entender, eram homens absolutamente livres e iguais.
Ao contar suas aventuras,
convicto de pertencer a um mundo ultra-civilizado, talvez não tenha percebido
que também estava testemunhando sobre a trajetória de um aprendizado: aquele
que permite ao colonizador o se descolonizar.
A palavra lhe foi concedida
pelo inquieto W. H. Hudson, argentino que escrevendo em inglês, na Londres do
último quartel do século passado ou inventou ou reviveu essa trajetória vivida
no Continente. E lhe conferiu o sugestivo título de La tierra purpurea.
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