domingo, 19 de setembro de 1993

Memórias do Coronel Falcão: o retrato

          Há vinte anos atrás é publicado pela Movimento de Porto Alegre o romance de Aureliano Figueiredo Pinto, Memórias do Coronel Falcão
          Escrito entre agosto de 1936 e março de 1937, o livro não havia, até então, sido publicado e quando isto aconteceu, seu autor já havia morrido quinze anos antes.
          A principal razão da obra ter permanecido inédita, segundo a Editora, talvez tenha sido o desejo de evitar dissabores uma vezque o período político que descreve permanecia, ainda, no tempo e na prática, muito próximo.
  
Na apresentação do romance, o professor Carlos Jorge Appel se refere às cartas de Aureliano Figueiredo Pinto  nas quais incita seu amigo Antero Marques  a escrever sobre a situação de crise do Rio Grande do Sul. Assim, Vivências de um Estudante Revolucionário de Antero Marques, publicado em 1964, é semelhante a Memórias do Coronel Falcão : a história de um fazendeiro que circunstâncias e amigos induzem à disputa de um cargo político. Um suceder de quadros da vida campeira e de episódios relacionados com a trajetória que o leva da fazenda para a Prefeitura da pequena cidade.

          Cheios de vida e de veracidade na descrição dos tipos e das situações, pontilhados de ironias e de troças, esses episódios, com certeza poderiam ter sido matéria de desagrado para os que se vêem ali retratados.
          Como Borges de Medeiros, por exemplo, cujas manhas são expostas, sem rodeios, nesse admirável episódio em que o Chefe do Governo concede uma audiência à comitiva interiorana que busca na capital do Estado sua orientação política e seu apoio.


          Chegando à Capital, a comitiva se instala no Hotel Lagache à espera do dia e hora aprazados que somente eram conseguidos depois de dias de afãs e demandas. Porque se constituia parte dos protocolos de Sua Excelência fazer esperar essa politicada que pensava que era só chegar em Porto Alegre e Falar e se queixar e resolver. Mas o chefe, conhecendo seus rebanhos deixava-os esperando até recebê-los depois de espichados dias debilitadores das resistências.

          O candidato a Prefeito, como os demais correligionários,está com medo desse momento desconhecido. Que finalmente chega ainda que retardado pela meia hora de pé, esperando. Para que os eflúvios e filtros da Suma Autoridade bem nos impregnassem as teimosias municipais. E, ainda, para deixar registrado num livro o nome, a profissão, o município de origem e o objetivo da audiência e, ainda outra vez mais quinze minutos. Para, afinal, a porta se abrir e a Comitiva entrar e distinguir um vulto de homem todo cor de neblina.

          Narrador de suas memórias, o Coronel Falcão, que nunca estivera absolutamente convencido de seu papel de coronel distrital, pode vê-lo com a lucidez que parece não existir nos demais: Esperou de pé. O fraque cor de cinza, terrivelmente oblíquo para trás. O cavanhaque grisalho, rigidamente oblíquo para diante. E, entre essas duas obliqüidades cinzentas, a reta rígida, inteiriça, daquele tronco exíguo, mas dominador, de asceta e de caudilho. Colou o braço direito ao longo da linha axilar. Prendeu o cotovelo ao flanco. E oscilou o antebraço para a frente como o resvaladio movimento de uma alavanca.

          E observa-lhe os olhos azuis inquisidores, mudando de cor e de expressão ao se deterem num ou noutro rosto antes de escutar suas palavras guias e definitivas: Absolutamente contra o jogo e a libertinagem. Sobre a mais estrita pureza de costumes. Sobre os rigores do equilíbrio orçamentário. Nada de santuário. Sequer do supérfluo. Tolerância com os adversários. E, sobretudo, ter sempre, como fim colimado, em circunstâncias quais forem, os ensinamentos de Júlio de Castilhos, consubstanciados na Carta Magna do Estado. Não tergiversar os inobscurecíveis e impostergáveis deveres partidários. Com a submissão por princípio A ordem por base. E o progresso por fim...

          O Coronel Falcão chama essas palavras de aula de moral pública e privada. E é com seriedade que repete os conceitos ouvidos. Seriedade que é, no entanto, anulada por umas poucas palavras cujo intuito pareceria ser apenas informativo: registrar o gesto que acompanhava as palavras: o dedo indicador em riste e, depois, como essas palavras eram recebidas: Ouvimos, genuflexos ao sopé da montanha.

          O gesto do falante, autoritário, incisivo. A atitude dos receptores, submissa diante da magnitude daquilo que ouviam, como se fosse as verdades das tábuas da lei. Para, logo mais, na prática, fazer exatamente o contrário como se, nem por sombra, existissem princípios norteadores.

          Evidentemente, muitos dos políticos contemporâneos de Aureliano de Figueiredo Pinto poderiam se reconhecer nos personagens do romance e nas pouco elogiáveis atitudes de alguns dentre eles.

          Ter permanecido inédito nesses anos todos poupou, então, muitos constrangimentos. Porque hoje, depois de cinqüenta e seis anos, é como se tudo não fosse mais do que uma história de ficção.



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