Há vinte anos atrás é
publicado pela Movimento de Porto Alegre o romance de Aureliano Figueiredo
Pinto, Memórias do Coronel Falcão
Escrito entre agosto de 1936
e março de 1937, o livro não havia, até então, sido publicado e quando isto
aconteceu, seu autor já havia morrido quinze anos antes.
A principal razão da obra
ter permanecido inédita, segundo a Editora, talvez tenha sido o desejo de
evitar dissabores uma vezque o período político que descreve permanecia, ainda,
no tempo e na prática, muito próximo.
Na apresentação do romance,
o professor Carlos Jorge Appel se refere às cartas de Aureliano Figueiredo
Pinto nas quais incita seu amigo Antero
Marques a escrever sobre a situação de
crise do Rio Grande do Sul. Assim, Vivências
de um Estudante Revolucionário de Antero
Marques, publicado em 1964, é semelhante a Memórias
do Coronel Falcão : a história de um fazendeiro que circunstâncias e amigos
induzem à disputa de um cargo político. Um suceder de quadros da vida campeira
e de episódios relacionados com a trajetória que o leva da fazenda para a
Prefeitura da pequena cidade.
Cheios de vida e de
veracidade na descrição dos tipos e das situações, pontilhados de ironias e de
troças, esses episódios, com certeza poderiam ter sido matéria de desagrado
para os que se vêem ali retratados.
Como Borges de Medeiros, por
exemplo, cujas manhas são expostas, sem rodeios, nesse admirável episódio em
que o Chefe do Governo concede uma audiência à comitiva interiorana que busca
na capital do Estado sua orientação política e seu apoio.
Chegando à Capital, a
comitiva se instala no Hotel Lagache à espera do dia e hora aprazados que
somente eram conseguidos depois de dias
de afãs e demandas. Porque se constituia parte dos protocolos de Sua Excelência
fazer esperar essa politicada que
pensava que era só chegar em Porto Alegre e Falar
e se queixar e resolver. Mas o chefe, conhecendo seus rebanhos deixava-os esperando
até recebê-los depois de espichados dias debilitadores das resistências.
O candidato a Prefeito, como
os demais correligionários,está com medo desse momento desconhecido. Que
finalmente chega ainda que retardado pela meia hora de pé, esperando. Para que os eflúvios e filtros da Suma Autoridade bem nos impregnassem as teimosias
municipais. E, ainda, para deixar registrado num livro o nome, a profissão,
o município de origem e o objetivo da audiência e, ainda outra vez mais quinze
minutos. Para, afinal, a porta se abrir e a Comitiva entrar e distinguir um vulto de homem todo cor de neblina.
Narrador de suas memórias, o
Coronel Falcão, que nunca estivera absolutamente convencido de seu papel de coronel distrital, pode vê-lo com a
lucidez que parece não existir nos demais: Esperou
de pé. O fraque cor de cinza, terrivelmente oblíquo para trás. O cavanhaque
grisalho, rigidamente oblíquo para diante. E, entre essas duas obliqüidades
cinzentas, a reta rígida, inteiriça, daquele tronco exíguo, mas dominador, de
asceta e de caudilho. Colou o braço direito ao longo da linha axilar. Prendeu o
cotovelo ao flanco. E oscilou o antebraço para a frente como o resvaladio
movimento de uma alavanca.
E observa-lhe os olhos azuis
inquisidores, mudando de cor e de expressão ao se deterem num ou noutro rosto
antes de escutar suas palavras guias e definitivas: Absolutamente contra o jogo e a libertinagem. Sobre a mais estrita
pureza de costumes. Sobre os rigores do equilíbrio orçamentário. Nada de santuário.
Sequer do supérfluo. Tolerância com os adversários. E, sobretudo, ter sempre,
como fim colimado, em circunstâncias quais forem, os ensinamentos de Júlio de
Castilhos, consubstanciados na Carta Magna do Estado. Não tergiversar os
inobscurecíveis e impostergáveis deveres partidários. Com a submissão por
princípio A ordem por base. E o progresso por fim...
O Coronel Falcão chama essas
palavras de aula de moral pública e privada. E é com seriedade que repete os
conceitos ouvidos. Seriedade que é, no entanto, anulada por umas poucas
palavras cujo intuito pareceria ser apenas informativo: registrar o gesto que
acompanhava as palavras: o dedo indicador
em riste e, depois, como essas palavras eram recebidas: Ouvimos, genuflexos ao sopé da montanha.
O gesto do falante,
autoritário, incisivo. A atitude dos receptores, submissa diante da magnitude
daquilo que ouviam, como se fosse as verdades das tábuas da lei. Para, logo
mais, na prática, fazer exatamente o contrário como se, nem por sombra,
existissem princípios norteadores.
Evidentemente, muitos dos
políticos contemporâneos de Aureliano de Figueiredo Pinto poderiam se
reconhecer nos personagens do romance e nas pouco elogiáveis atitudes de alguns
dentre eles.
Ter permanecido inédito
nesses anos todos poupou, então, muitos constrangimentos. Porque hoje, depois
de cinqüenta e seis anos, é como se tudo não fosse mais do que uma história de
ficção.
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