domingo, 26 de setembro de 1993

Memórias do coronel Falcão: as lides

          Em “O regionalismo segundo Alcides Maya”, excelente artigo de Cyro Martins publicado na Zero Hora de Porto Alegre, no passado dia 11, o escritor e psicanalista gaúcho relaciona o auge do regionalismo na Literatura riograndense, que ele situa entre 1923 e 1930, com o momento político vivido entre as duas revoluções: as chispas da paixão política, alimentando uma criação literária - poemas e contos - de acentuada inclinação para a façanha.
         Exatamente como a literatura regionalista do Uruguai e da Argentina, girando em torno do gaúcho e das virtudes que lhe eram então atribuídas: a coragem, o orgulho, a rebeldia, o culto da liberdade.
         Ao escrever em 1936/37, Memórias do Coronel Falcão, publicado pela Movimento de Porto Alegre em 1974, para Aureliano de figueiredo Pinto, no entanto, o momento das crenças fora substituído por aquele em que já se delineiam outros significados.



         Assim, o personagem/narrador não mais se apresenta como o herói valente, autor de ousadas façanhas, mas como quem se submete às circunstâncias e por elas é derrotado.
         O coronel Falcão executa com maestria o trabalho campeiro mas, como patrão, recusa o elogio do subordinado; sente medo da entrevista política que deve ter com a mais alta autoridade do partido e ao estar na sua presença não se impõe, apenas se dedica a analisá-la: deixa partir a mulher por quem está apaixonado e, mais tarde, confessa, entre surpreso e despectivo que, assim como o marido, também ele fora traído por ela.
         Afastando-se desse protótipo que parece jamais temer, que enfrenta lances difíceis para se sobressair e nunca perdoa a traição feminina, ele se detém numa realidade que, na ficção regionalista foi sempre preterida em favor de atos mais afoitos e nutridos de proezas para recriar tipos profundamente humanos e solidários.
         É o velho Castro, curando as bicheiras do touro Paysandu com doçura de mão e palavras de alegre esperança: Agora, com este bruto sol quente do meio-dia, não dá pra chegar à Estância. Mas logo, com a fresca da noite e o clarão da lua, ao tranquito, você vai lá pra Cabanha, seu Paysandú. E no veranico de maio ainda vai arrumar uma porção de paysanduzinhos nas cadeiras das novilhas polpudas do gado manso”.
         São os tosadores que no estafante trabalho de manhã à noite, sol a sol, de cócoras, mal escorados, curvados, em forçada atitude, ao fim do dia ao escutar do patrão a ordem de parar, permanecem inclinados depois de terminar a tosquia do animal, que têm entre as mãos, tacitamente solidários na postura martirizante, e somente se erguem quando o último companheiro terminou a tarefa.
         Opõem-se, assim, figuras espontâneas e em acorde com o seu universo, àquelas que se degradam na perseguição do lucro e do poder que, finalmente, são as vitoriosas.
Citando Augusto Maya - o escritor nunca foge do que estava escrito dentro dele - Cyro Martins acrescenta que os fatos históricos, sobretudo as convulsões sociais, acarretam variações de tema e estilo nas literaturas.

Então, Aureliando de Figueiredo Pinto, o romancista dos campos gaúchos como o chama Carlos Jorge Appel, lembrando que nos poemas que antecederam seu romance ele havia se preocupado em mostrar os aspectos básicos da vida de campo  e não se cristaliza no saudosismo idealizador.

Afetivamente preso a sua terra - são magníficas breves referências que faz à paisagem - e a sua gente, não se impediu, porém de vê-la despida de suas históricas mistificações.

E, na linguagem que, por vezes, é feita de verdadeiros achados, no mostrar-se um conhecedor de almas, no ter sabido ver a grandeza em situações cotidianas, estão, também as razões que lhe concedem um lugar de excelência na literatura do Rio Grande do Sul.

domingo, 19 de setembro de 1993

Memórias do Coronel Falcão: o retrato

          Há vinte anos atrás é publicado pela Movimento de Porto Alegre o romance de Aureliano Figueiredo Pinto, Memórias do Coronel Falcão
          Escrito entre agosto de 1936 e março de 1937, o livro não havia, até então, sido publicado e quando isto aconteceu, seu autor já havia morrido quinze anos antes.
          A principal razão da obra ter permanecido inédita, segundo a Editora, talvez tenha sido o desejo de evitar dissabores uma vezque o período político que descreve permanecia, ainda, no tempo e na prática, muito próximo.
  
Na apresentação do romance, o professor Carlos Jorge Appel se refere às cartas de Aureliano Figueiredo Pinto  nas quais incita seu amigo Antero Marques  a escrever sobre a situação de crise do Rio Grande do Sul. Assim, Vivências de um Estudante Revolucionário de Antero Marques, publicado em 1964, é semelhante a Memórias do Coronel Falcão : a história de um fazendeiro que circunstâncias e amigos induzem à disputa de um cargo político. Um suceder de quadros da vida campeira e de episódios relacionados com a trajetória que o leva da fazenda para a Prefeitura da pequena cidade.

          Cheios de vida e de veracidade na descrição dos tipos e das situações, pontilhados de ironias e de troças, esses episódios, com certeza poderiam ter sido matéria de desagrado para os que se vêem ali retratados.
          Como Borges de Medeiros, por exemplo, cujas manhas são expostas, sem rodeios, nesse admirável episódio em que o Chefe do Governo concede uma audiência à comitiva interiorana que busca na capital do Estado sua orientação política e seu apoio.


          Chegando à Capital, a comitiva se instala no Hotel Lagache à espera do dia e hora aprazados que somente eram conseguidos depois de dias de afãs e demandas. Porque se constituia parte dos protocolos de Sua Excelência fazer esperar essa politicada que pensava que era só chegar em Porto Alegre e Falar e se queixar e resolver. Mas o chefe, conhecendo seus rebanhos deixava-os esperando até recebê-los depois de espichados dias debilitadores das resistências.

          O candidato a Prefeito, como os demais correligionários,está com medo desse momento desconhecido. Que finalmente chega ainda que retardado pela meia hora de pé, esperando. Para que os eflúvios e filtros da Suma Autoridade bem nos impregnassem as teimosias municipais. E, ainda, para deixar registrado num livro o nome, a profissão, o município de origem e o objetivo da audiência e, ainda outra vez mais quinze minutos. Para, afinal, a porta se abrir e a Comitiva entrar e distinguir um vulto de homem todo cor de neblina.

          Narrador de suas memórias, o Coronel Falcão, que nunca estivera absolutamente convencido de seu papel de coronel distrital, pode vê-lo com a lucidez que parece não existir nos demais: Esperou de pé. O fraque cor de cinza, terrivelmente oblíquo para trás. O cavanhaque grisalho, rigidamente oblíquo para diante. E, entre essas duas obliqüidades cinzentas, a reta rígida, inteiriça, daquele tronco exíguo, mas dominador, de asceta e de caudilho. Colou o braço direito ao longo da linha axilar. Prendeu o cotovelo ao flanco. E oscilou o antebraço para a frente como o resvaladio movimento de uma alavanca.

          E observa-lhe os olhos azuis inquisidores, mudando de cor e de expressão ao se deterem num ou noutro rosto antes de escutar suas palavras guias e definitivas: Absolutamente contra o jogo e a libertinagem. Sobre a mais estrita pureza de costumes. Sobre os rigores do equilíbrio orçamentário. Nada de santuário. Sequer do supérfluo. Tolerância com os adversários. E, sobretudo, ter sempre, como fim colimado, em circunstâncias quais forem, os ensinamentos de Júlio de Castilhos, consubstanciados na Carta Magna do Estado. Não tergiversar os inobscurecíveis e impostergáveis deveres partidários. Com a submissão por princípio A ordem por base. E o progresso por fim...

          O Coronel Falcão chama essas palavras de aula de moral pública e privada. E é com seriedade que repete os conceitos ouvidos. Seriedade que é, no entanto, anulada por umas poucas palavras cujo intuito pareceria ser apenas informativo: registrar o gesto que acompanhava as palavras: o dedo indicador em riste e, depois, como essas palavras eram recebidas: Ouvimos, genuflexos ao sopé da montanha.

          O gesto do falante, autoritário, incisivo. A atitude dos receptores, submissa diante da magnitude daquilo que ouviam, como se fosse as verdades das tábuas da lei. Para, logo mais, na prática, fazer exatamente o contrário como se, nem por sombra, existissem princípios norteadores.

          Evidentemente, muitos dos políticos contemporâneos de Aureliano de Figueiredo Pinto poderiam se reconhecer nos personagens do romance e nas pouco elogiáveis atitudes de alguns dentre eles.

          Ter permanecido inédito nesses anos todos poupou, então, muitos constrangimentos. Porque hoje, depois de cinqüenta e seis anos, é como se tudo não fosse mais do que uma história de ficção.



domingo, 12 de setembro de 1993

Literatura nos trilhos

          Amanhã me digo já adormecendo, vou ouvir Borges chover no molhado com a sua sempre linda chuva, conta Thiago de Mello depois de ler infinidades de entrevistas do escritor argentino, concedidas à imprensa internacional, intrigado de que sempre, e ao longo dos anos, ele trata dos mesmos assuntos, repete as mesmas frases.       
          Tal constatação não o impediu, porém, de entrevistá-lo no seu apartamento de Buenos Aires em 1981 e em 1984.
          Seis anos depois, Thiago de Mello publica essas duas entrevistas no livro Borges na luz de Borges (Pontes Editores, Campinas) em que intercala comentários, baseados em fontes relacionadas no final da obra, às perguntas e respostas. E, estas são apresentadas por temas.
          Na rubrica “Borges professor”, o entrevistado fala de sua atuação como professor de literatura inglesa, na Faculdade de Filosofia e Letras de Buenos Aires, quando aconselhava os estudantes que não se preocupassem com a bibliografia sobre o autor e sim com sua obra.
          Talvez essa afirmação ele não a tenha repetido ou repetido tanto quanto outras que fazem parte de seus temas obsessivos. Porque, se mais conhecida e incorporada tivesse sido, certamente teria modificado essas aulas de literatura em que o professor não ousa ler ou propor a leitura de autores que não tenham recebido a aprovação da crítica ou da historiografia. Sobretudo aquela pautada por parâmetros forâneos, vindos de países considerados irradiadores da cultu
            Como nem sempre os países do Primeiro Mundo julgam pertinente se debruçar sobre a produção literária do Terceiro Mundo, que lhes fica, então, desconhecida, e como os Países do Terceiro Mundo não se voltam uns para os outros e sim para o Hemisfério Norte, obras de imenso valor permanecem limitadas a seu espaço geográfico.
          Dele apenas poderão sair se descobertas por esse acadêmico ou crítico do Primeiro Mundo que, para alguns, são os únicos que detém o poder de enunciar apreciações válidas.
          Ou, se houver nos seus próprios espaços geográficos, entre os que se ocupam da literatura, aqueles cujo acervo e discernimento lhe permitam emitir opiniões e conceitos que possam levar à apreciações modificadoras sobre o que é produzido em seus respectivos universos e nos demais que fazem parte do Continente que, até para o prazeroso ato da leitura, foi e continua sendo colonizado.
          Saindo dos trilhos traçados talvez seja feita a conquista para a liberdade.

domingo, 5 de setembro de 1993

Pelos caminhos do Continente 3

          Richard Lamb tinha cerca de vinte e cinco anos quando circunstâncias de sua vida o levaram a viajar pelo interior de um Uruguai agitado por lutas entre facções políticas em busca de ideais que, num país ainda em formação, por vezes, não se definiam claramente.
          Inglês, Richard Lamb, que se propõe contar o que lhe aconteceu nessas andanças, pouco chega a entender das razões que estavam à origem dos conflitos e, tampouco, parece nutrir um grande interesse em consegui-lo. Apaixona-se, na verdade, pela natureza ainda intocada que se apresenta diante de seus olhos e pelos tipos humanos que vai conhecendo no renovado pedido de pousada nesse mundo em que se adentra pela primeira vez.
          Um mundo rústico e austero que, embora dividido nas convicções, se iguala ao jamais recusar casa e comida a quem chega o que o torna, então, transparente aos olhos do forasteiro.
          Modelado por outros padrões de comportamento, Richard Lamb registra esses encontros e constata, com real simpatia, as diferenças do rito social e da filosofia de vida que separam seus compatriotas desses habitantes do Novo Mundo.
          Na primeira vez que pede pouso, se admira das palavras de seu hospedeiro para o filho pedindo-lhe que deixe em liberdade o vagalume que aprisionara pois ele servia de companhia para as almas do outro mundo. Richard Lamb se congratula por ter encontrado no meio do campo uma pessoa de coração tão manso e compassivo. Opinião que dura até o momento em que essa mesma pessoa lhe conta ter degolado, sem pena, um homem que, durante o sítio de Montevidéu, era suspeito de ser um espião: Veja, senhor, eu mesmo abri com meu punhal o pescoço daquele homem. Porque nesse mundo, se um homem não se acostuma a derramar sangue, sua vida seria um peso para ele.
          Velho desumano e assassino, pensa o inglês, certamente ignorando que num território onde tudo era indefinido - família, propriedade, moral - onde dificilmente chegavam outras leis, imperava a do mais forte.
          E, ignorando ou esquecendo as reais razões de uma lei Bil Aberdeen, por exemplo, sob a égide da qual a Inglaterra interferia - fazendo crer que por justiça e humanidade - no tráfico negreiro que, sabidamente, lhe era prejudicial.
          Noutro pouso, que lhe propiciou conviver com uma família numerosa lamenta desconhecer os signos e os símbolos para expressar os sentimentos do coração.
          Recebido com amabilidade, se encanta com a comida abundante, com os cantos e danças ao som do violão. Ao partir, recebe de presente um cavalo já que o seu estava cansado demais para continuar a viagem. Só então, na despedida, se dá conta pelo olhar de uma das filhas da casa que havia perdido um belo e idílico pequeno flirt. E, pesaroso se pergunta como poderia ter começado um flirt levando-o até o seu ponto culminante naquela sala pública, com todos aqueles olhos postos em mim; com os cães, crianças e gatos enredados nos meus pés.
          Conclui que os uruguaios vivendo todos juntos numa grande sala com seus filhos e animais mimados, possuem como os antigos pastores ingleses, essa linguagem do coração que ele ignorava e que deveria ter aprendido.
          A cada fato que acrescenta a seu relato, fica evidente também um aprendizado: o abrir dos olhos para o mundo, o saber ver e aceitar outras formas de viver e de sentir.
          E o seu relato iniciado com terríveis críticas à gente do país - corruptas naturezas, seus crimes ultrapassaram todos os demais - e uma patriótica arenga lamentando ter a Inglaterra perdido essa parte do Continente termina com uma apologia desse mesmo povo:os fidalgos da natureza.
          Partindo de uma frase de Spinoza e de considerações sobre um Estado ideal, não somente ele aceita as virtudes e os crimes que vicejam nessas terras do Novo Mundo, como formula votos de que a seus futuros invasores aconteça o mesmo que no passado: sejam repelidos. Oxalá o resplendor de nossa civilização superior não caia nunca sobre tuas flores nem caia tampouco o jugo de nosso progresso sobre teu pastor - descuidado, airoso, amante da música como os pássaros - para fazê-lo mal humorado e abjeto camponês do Velho Mundo.
          Cavalgar pelos campos do Uruguai e conhecer a sua gente fizeram com que Richard Lamb fosse vencido pela cordialidade - anos depois diria que mesmo o rosto dos que o haviam tratado mal lhe parecia ter uma expressão amistosa - e pela admiração diante daqueles que, no seu entender, eram homens absolutamente livres e iguais.
          Ao contar suas aventuras, convicto de pertencer a um mundo ultra-civilizado, talvez não tenha percebido que também estava testemunhando sobre a trajetória de um aprendizado: aquele que permite ao colonizador o se descolonizar.
          A palavra lhe foi concedida pelo inquieto W. H. Hudson, argentino que escrevendo em inglês, na Londres do último quartel do século passado ou inventou ou reviveu essa trajetória vivida no Continente. E lhe conferiu o sugestivo título de La tierra purpurea.