domingo, 29 de agosto de 1993

Pelos caminhos do Continente 2

          Quando, em 1885, foi publicada La tierra purpurea, em Londres, as resenhas que sobre a obra apareceram foram pouco favoráveis, o público leitor não se interessou em adquiri-la e logo ela foi esquecida. Estas são informações dadas pelo próprio autor W. H. Hudson conforme refere Ruben Cotelo no prefácio da edição publicada em Montevidéu pela Ediciones de la Banda Oriental no ano de 1992.
          O destino da obra, porém, depois mudaria. Surgiram as edições espanholas, norte-americanas, argentinas e as francesas, venezuelana e uruguaia.
          No Uruguai, ainda segundo as palavras de Ruben Cotelo, La tierra purpurea foi pouco lida e pouco estudada embora seja uma obra sobre este país, suas paisagens, sua gente, suas lutas. E, são essas lutas sangrentas a origem do título: a terra púrpura, regada pelo sangue de seus filhos.
          Depois de percorrer a cavalo uma parte do país em busca de um trabalho que lhe permitisse sustentar sua jovem mulher, já de volta a Montevidéu, Richard Lamb, o narrador, conversa longamente com Demetria, fazendeira a quem a morte do irmão e a insanidade do pai deixaram sem proteção e que estava sendo salva por ele das garras de um capataz hipócrita e desonesto.
          Descansam à sombra de uma grande árvore e o inglês chama a atenção da companheira de viagem para a beleza das amplas paisagens banhadas de sol que têm diante de si. E, lhe confessa que nas longas noites de inverno pensa narrar suas andanças pelos campos do Uruguai, inclusive esse último cavalgar em busca de um refúgio para ela e dar a narrativa o título de La tierra purpurea. Que nome mais conveniente pode se encontrar para um país tão manchado pelo sangue de seus filhos? justifica.
          Embora no livro não apareçam datas, é sabido que W. H. Hudson esteve no Uruguai de meados de 1868 a março de 1869.
          No apêndice “História de la Banda Oriental” que acrescenta ao livro e em que, brevemente, faz a História do Uruguai ele esclarece que as andanças e aventuras descritas no livro se referem ao fim da década de 60 e começos de 70 quando o país ainda estava na mesma situação em que havia permanecido desde os dias coloniais quando o sítio de Montevidéu que durou dez anos não era ainda um acontecimento remoto e muitos daqueles que nele haviam tomado parte podiam ser encontrados.
          Ou seja, a sua presença no Uruguai coincide com esse momento de muitas lutas em que os caudilhos se alçavam em defesa do que entendiam por pátria e por liberdade.
          Richard Lamb, se encontra com um deles a quem no livro chama de Santa Coloma. Circunstâncias o levam a lutar a seu lado na batalha que denomina São Paulo, a única em que tomou parte, razão que, no seu entender justifica não ter feito dela uma descrição mais científica.
          Na verdade, pouco descreve da luta que se travou entre o grupo de Santa Coloma, uma facção dos “blancos”, poucos homens mal armados e indisciplinados e os inimigos “colorados”.
          Richard Lamb se detém na opinião do General sobre seus homens e sua estratégia e, rapidamente, narra como se desenrolou esse encontro.
          Entre os “blancos” ele pode ver o inimigo, uns setecentos homens alinhados e como se posicionavam as forças rebeldes e como, na iminência do combate os homens se puseram graves e silenciosos. E, também, como o General, cavalgando impetuosamente se dirigiria a cada uma de suas colunas para incitar à luta.
          Compartilhando o destino dos rebeldes, armados somente de lanças e sabres, juntamente com eles avança contra as linhas inimigas sendo recebidos com descargas de carabina. Que, no entanto, no dizer do narrador, não causaram danos: não vi, perto de mim, cavalos sem ginetes.
          Logo, a luta termina com a derrota da facção com a qual combatia e os vencidos e ele se puseram em fuga.
          A crueldade e as injustiças próprias das lutas, os mortos e os feridos não foram mencionados. Como se no melhor dos mundos o encontro dos inimigos pudesse resultar incruento e servisse apenas para decidir sobre as vitórias.
          Ou W. H. Hudson não viveu a luta que seu personagem descreve ou sua visão de mundo o impediu de fixar a crueldade das cenas que certamente ocorreram ao longo desses anos de combate em busca de caminhos.
          Assim, o título La tierra purpurea sintetiza a História de um povo cujos sofrimentos, sem terem sido ignorados, foram eludidos na narrativa na qual se sobrepuseram as imagens luminosas, a emoção diluída em leve e risonha ironia.
 
          A gesta foi enunciada e de forma tão inegavelmente precisa e verdadeira que pôde conduzir não somente àquela que se desenrolou no Uruguai mas a todas as heróicas e muitas vezes não mencionadas do Continente.

domingo, 22 de agosto de 1993

Pelos caminhos do Continente 1

          William Henry Hudson nasceu na Argentina e escolheu a Inglaterra para morar. Foi em Londres que escreveu e onde, em 1885, conseguiu publicar La tierra purpurea com o curioso título The purple land that England lost. Travels and adventures in the Banda Oriental. South America. Antes de ser traduzido em 1928 para o espanhol e publicado em Madrid, teve uma edição francesa e várias edições nos Estados Unidos. Novamente traduzido para o espanhol foi publicado em Buenos Aires e Caracas e, em 1992, pelas Ediciones de la Banda Oriental sob a rubrica do Instituto Nacional del Libro de Montevideu.
          Para Martínez Estrada, crítico argentino, citado por Ruben Cotelo que prefacia essa última edição de La tierra purpurea, o livro é uma argumentação em prol de formas primitivas e quase selvagens contra uma civilização que acredita ter elucidado todos os problemas pelo simples fato de haver vencido, sem consciência do mal que, por sua vez, ocasionava à natureza.
          O autor do relato é Richard Lamb, jovem inglês que, para se casar com a mulher amada deve tirá-la da casa de seus pais, em Buenos Aires, e fugir para Montevidéu.
          Era para os uruguaios, o desastroso ano de 1860 em que o país se degladiava em sangrentas lutas internas. Richard Lamb busca trabalho numa cidade que vive à espera de novas lutas. Na esperança de encontrar meios de sobreviver, com uma carta de apresentação ao capataz de uma distante propriedade rural, ele atravessa o país a cavalo.
          São os sucessos dessa viagem que ele, então, narra, descrevendo fazendas, tipos humanos e paisagens. Um universo primitivo.
          As plantas aí crescem sem cultivo e o estudioso naturalista que era William Henry Hudson irrompe no relato do seu personagem, entusiasmado diante da exuberância de um pomar cheio de pessegueiros, cerejeiras, ameixeiras cujo terreno era tomado pelas mais variadas flores: a alta malva rosa, as alegres amapolas, o inesquecível cravo, luzindo-se tão brilhante e aveludado como sempre.
          Casas toscas, rudes, desprovidas de tudo, abrigando a família, os empregados e os visitantes quase sempre na cozinha. Nelas, vivendo os mais diversos tipos que se tornam idênticos, porém, nessa obediência à lei sagrada que impera nesse país sem leis: a da hospitalidade.E, recebido pela gente do país, Richard Lamb muitas vezes com ela se identifica, desejando ter nascido entre eles, ser um deles em lugar de um inglês cansado e vagabundo que carrega o peso das armas e das armaduras da civilização, cambaleando como Atlas, levando sobre os ombros o peso de um reino sobre o qual o sol nunca se põe.
          E, ainda quando relata a crueza das lutas entre as diversas facções que assolavam o país com seus ideais ou com suas ambições ou quando menciona um gesto menos leal, suas palavras continuam construindo uma imagem elogiosa. O que não impede que, possa se constituir, também, um documento sobre a História que fez o país e sobre esse cotidiano igualmente tão importante e sempre tão ignorado.Um documento que descreve, interpreta ou inventa com inegável riqueza de expressão romântica mas que não se descuida, no entanto, de permanecer fiel à realidade na qual se inspira.
          Nas suas entrelinhas, cabe o Continente.

domingo, 15 de agosto de 1993

Ulisses criolo

          Paródia campeira do regresso de Ulisses, assim definiu Sérgio Faraco a história de Ranulfo González.
          Deixado por morto num dos muitos combates do Continente, quando o inimigo se retirou, arrastando-se, ele chegou até as terras de um espanhol que, sabiamente, em brigas de galo e de uruguaios, se conservava neutro.E, então, o tratou, o curou e lhe deu trabalho para que pudesse comprar outro cavalo pois o seu, os vencedores da refrega haviam levado.
          Dois anos depois, Ranulfo González cavalga de volta para casa onde deixara mulher e dois filhos.
          Antes, porém, de chegar ao casario, perto da sanga, a boa estrela que o vinha acompanhando faz com que se encontre com a sogra que lavava roupa. Por ela sabe que tido por morto, outro homem já ocupara o seu lugar.
          Com cuidado, ele desencilha o cavalo, lava-lhe o lombo e o maneia com folga. E diz que a mulher deveria escolher entre os dois homens e que iria acampar ali mesmo para lhe dar tempo. Esperaria pela resposta na manhã do dia seguinte.
          Mario Arregui, o contista uruguaio o chama de Ulisses - o regresso de um combatente de guerra perdida - e chama de Penélope sua mulher que ao acreditá-lo morto, prontamente o substitui. Uma recriação que, no Continente, se enriquece por um sábio, ingênuo e espontâneo adaptar-se à vida.
          Os personagens de “O regresso de Ranulfo González” não se amesquinham diante da vida e de seus senões, como, em geral, sucede com os personagens dos outros contos de A cidade silenciosa do qual ele faz parte.
          Na melancolia de mundos sem perspectivas ou que estão a se acabar que prevalece na coletânea, irrompe esse amor pela vida que faz com que, pacientemente, Ranulfo González recuse a morte e recupere a mulher já nos braços de outro.
          Porque no dia seguinte chega-lhe a resposta: A Felipa te espera. Como sem se surpreender, ele ainda tomou uns mates, encilhou lentamente o tordilho e regressou ao rancho como se dele tivesse saído naquela mesma manhã. E tudo voltou a ser como era antes da guerra.
          Mas fora nela que Ranulfo González escapara de ser degolado e por horas ficara entre os mortos. E quando lhe haviam roubado as roupas e o cavalo. Em troca, ficara com uma bala alojada no corpo que o incomodava bastante, mas que, também, servia para anunciar chuvas e tempestades.
          Enquanto isso, um daqueles acordos de cavalheiros que nunca são cumpridos havia dado à guerra um ponto final, que não valia mais do que um ponto e vírgula.

A cidade silenciosa foi traduzida por Sérgio Faraco e publicada pela Movimento de Porto Alegre, em 1985.

domingo, 8 de agosto de 1993

Fábula moderna

          Em 1980, o Prêmio do Livro Infantil da Espanha foi outorgado à obra A pedra arde.
          A partir de uma idéia de Arkadi Gaidar, é o primeiro escrito de Eduardo Galeano dirigido às crianças. Na Espanha foi publicado pela editora Lóquez de Salamanca e no Brasil, pelas edições Loyola de São Paulo.  
           A pedra arde é uma breve história que envolve dois personagens: o menino Carassuja e o velho.
          Ao tentar roubar maçãs e escorregar muro abaixo, Carassuja encontra-se com o velho, guarda do pomar. Não recebeu dele reprimendas mas cuidados nos arranhões que se fizera ao cair.
          Outra arte - a de se perder no bosque - o leva a encontrar a pedra do rejuvenescimento. Carassuja quis tornar o velho feliz e lhe oferece o achado pois quem quebrasse a pedra em pedacinhos voltaria à juventude.
 
          Para sua indignada tristeza, porém, o velho não aceitou ficar jovem outra vez embora andasse curvado e fosse manco; embora tivesse no rosto uma cicatriz e dentes quebrados e o nariz torto.
 
 
          Mas, não se recusou a romper o silêncio de tantos anos para explicar a Carassuja o porquê de não querer mudar: Estes dentes não cairam sozinhos. Foram arrancados à força. Esta cicatriz que marca meu rosto não vem de um acidente. Os pulmões... a perna... Quebrei a perna quando escapei da prisão ao saltar um muro alto. [...] Se quebro a pedra, estas marcas somem. E elas são meus documentos, compreendes? Meus documentos de identidade. Olho-me no espelho e digo: “Esse sou eu” e não sinto pena de mim. Lutei muito tempo. A luta pela liberdade é uma luta que nunca acaba. Ainda agora, há outras pessoas, lá longe, lutando como eu lutei. Mas minha terra e minha gente ainda não são livres e eu não quero esquecer. Se quebro a pedra cometo uma traição, compreendes?
          E, assim, se entrelaçaram o mundo da fábula - o menino que se perde no bosque, a solução encontrada para reencontrar o caminho que, para Carassuja foi rasgar a roupa e deixar pedaços pendurados nas árvores, o achado de uma pedra com poderes excepcionais - e o real, terrível mundo das torturas e prisões e mortes políticas que era, então, o mundo de muitos países latino-americanos.
          E, contrariando o desfecho da fábula, em que o mágico tudo soluciona e torna feliz aquele que recebeu seus benefícios, esse rejuvenescer sempre tão procurado pelos humanos, ao longo do tempo, foi desprezado em nome de princípios: não negar a marca da vida por cruel que ela tenha sido; não esquecer o destino dos seus que ainda continuam lutando pelos seus ideais.
          O final feliz da história se apresenta com o que, aparentemente há de mais simples: o menino e o velho caminhando pelo bosque de mãos dadas. E é a mão do velho que aquece a mão do menino e são suas palavras as que lhe transmitem uma visão de mundo dominada pela coerência diante de si mesmo e pela solidariedade.
          Reafirmações de crenças e de esperanças num texto cujas ilustrações do espanhol Luis de Horna criam, por sua vez, um encantador mundo feérico feito de belas plantas estilizadas, de flores, de animais risonhos e tranqüilos.
          Harmonia perfeita. Desejadamente instigadora ao se construir também, ou,  sobretudo da História do Continente que negada e escondida durante tantos anos, hoje, começa a ser finalmente contada.

domingo, 1 de agosto de 1993

Entre parêntesis

         Um dos grandes nomes da Literatura venezuelana de hoje, Salvador Garmendia, publicou em 1974 aquele que foi, então, considerado o seu mais brilhante romance: Memorias de Altagracia. Romance feito de histórias justapostas, como que independentes entre si e tendo, todas, como cenário Altagracia, uma pequena cidade interiorana, capital da província
         É nesse espaço que aparece uma verdadeira galeria de personagens, todos mais ou menos estranhos, mostrando-se, por vezes, irreais ao olhar curioso de um menino.
         Transformando-se de acordo com o tempo - o calor de julho, o frio que chega em agosto, os chuvisqueiros, os dias bruscos, os claros dias de abril, as chuvas fortes - ruas e casas e muito da imaginação infantil do narrador são o cenário onde se movem, quase sempre, fugindo às convenções, o tio, o aviador inglês, o castrador de bodes, o andarilho, o coronel.
         O relato que lhe diz respeito é antecedido de um texto cuja autoria não pertence à voz infantil dominante até então, mas à outra que diz ser a hora de molhar a pena nas risonhas tintas da crônica, para narrar os acontecimentos felizes que aconteceram há poucos dias.
         No entanto, a crônica desses acontecimentos felizes não se apresenta tão risonha quanto o prometido, pois as figuras que o povoam são todas, de uma ou outra maneira, degradadas e os sucessos narrados perfeitamente risíveis se considerados apenas uma realidade ficcional.
         Mas, sem dúvida, é de ficção que se trata: a tropa comandada por um general que de tão decrépito deve ser amarrado ao cavalo para não cair e cuja presença é imprescindível para conferir seriedade às ações militares por acontecer. Tropa formada para  combater subversivos revolucio-nários, não os encontrando após os dias de marcha, havia, assim mesmo, sob as ordens do general, livrado a grande batalha final cuja estrondosa vitória foi amplamente divulgada. Lida e colada por toda parte e até sabida de cor por alguns e, posta em música, cantada por outros: O facínora Venancio Contreras foi aniquilado! Depois de quatro horas de sangrenta batalha, as guerrilhas facciosas, dizimadas e desmoralizadas não obstante a sua superioridade numérica, fugiam em debandada, abandonando no campo de batalha 320 mortos, 862 feridos, duas peças de artilharia, 600 fuzis. Asseguram dessa maneira aos exércitos da república a vitória absoluta e definitiva sobre os insensatos e criminais empenhos daqueles que se insurgiram temerariamente contra o bem-estar da pátria.
         Para concluir, um belo desfile cívico cheio de brilho e música e entusiasmo patriótico. Também, uma data para festejar nos anos vindouros.
         No burlesco que domina toda essa crônica que se queria risonha, nos tipos caricaturais e nas situações aparentemente fantasiosas há, sem dúvida, a mesma clara intenção que animou outros ficcionistas do Continente.
         No romance de Salvador Garmendia é um texto que se insere, como o abrir de um parênteses, no insólito mundo infantil recriado. Como que sem intenção. Como que inocentemente.