domingo, 4 de abril de 1993

O léxico da hipocresia

          Há vinte anos atrás , a Arca de Montevidéo publicava a nona edição de El país de la cola de paja. Na contra-capa, os Editores diziam tratar-se de um dos livros mais polêmicos e atraentes da última década.
 
          E o disseram com muita propriedade porque, antes de ser proibido pela ditadura que se instalou no Uruguai em 1973, quando de seu lançamento em 1960, já havia recebido severos e discutíveis julgamentos dos críticos ao considerá-lo um livro de sociologia.
 
          No entanto, não foi essa a proposta de Mario Benedetti. Romancista, poeta, dramaturgo, ensaísta e crítico literário, ao escrever El país de la cola de paja ele desejou apenas dizer de suas preocupações pelo que ocorria no país.
 
          O Uruguai era, então, considerado pelos europeus, a Suiça da América Latina. Uma asserção plenamente justificada em práticas inusuais nos demais países do Continente como ensino gratuito, separação entre Igreja e Estado, eleições corretas, analfabetismo quase nulo, eficazes leis sociais, inexistência de descriminação racial e religiosa, liberdade de imprensa.
          Mas, os doze artigos publicados nessa primeira edição e os oito acrescentados na edição de 1970, que tratam do relacionamento instituído entre o cidadão do Estado democrático e a Democracia vigente possuem um denominador comum: uma perspicácia crítica que lhe permite estabelecer reais fronteiras entre o que parece existir e o que realmente existe.
 
          Daí, tornarem-se certas verdades - aquelas  quase sempre  indiscriminadamente aceitas - passíveis de oportunos questionamentos.
 
          Mario Benedetti discute, por exemplo, a elogiosa situação do país quanto ao analfabetismo que no Uruguai, dessa época, praticamente não existia. Mas, acrescenta que saber ler não é, necessariamente, ler. Isto, de fato, leva à observações que se relacionam com as atividades editoriais, a qualidade da Imprensa e as possibilidades econômicas que serão definitivamente responsáveis pela ausência de leitores num universo de alfabetizados.


      O que, sem dúvida, impede que o estabelecido sofra qualquer ranhura - afinal os bons livros tem o defeito de serem intranquilizadores - ao deixar a maioria de seus cidadãos incapaz de cultivar uma visão mais cuidadosa e acurada que lhe dê condições de perceber toda a ambigüidade contida numa democracia - maravilhosa rede de aparências, diz Mario Benedetti, - praticada por democratas de superfície. Aqueles que acreditam “frivolamente” na autonomia da Universidade mas não percebem o interesse oficial em buscar meios para cerceá-la; ou que negam haver descriminação racial no país não ignorando que em Montevidéo existem cinemas e confeitarias onde negros são impedidos de entrar; ou que estão convictos da existência de uma consciência sindical embora saibam que uma ou outra agremiação profissional faça o jogo do patrão; ou que não duvidam que a imprensa seja realmente livre mesmo sem desconhecer que a matéria publicada é apenas aquela que não contraria interesses; e, assim, sucessivamente..

           Incongruências - das quais, certamente, não estão isentas democracias outras - que mostram quanto um conceito pode estar a serviço de inescrupulosas manipulações.
           Sobretudo em países do Continente onde a maior parte da população continua ingenuamente despreparada também para entender o léxico daquele que - “mais iguais do que os outros” - tem acesso à palavra e se serve dela para usufruto de privilégios.



 

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