Mi música es para esa gente é o título de um pequeno
livro de contos que apareceu, em 1970, pela Monte Ávila de Caracas. Seu autor,
o argentino Daniel Moyano, dez anos antes já havia publicado Artista de variedades ao qual se
seguiram La lombriz, Una luz muy lejana, El fuego interrumpido, El oscuro.
Oito contos compõem Mi música es para esa gente e têm
em comum o espaço (uma pequena cidade do interior), a intemporalidade
(lembranças de um tempo como que suspenso, indeterminado) e personagens
perdidos num mundo que parece não ser o deles, em busca de algo, um quase nada
tão importante que lhes alimenta os dias: o cão seguindo o raio de sol que se
desloca; os dois tipos que Daniel Moyano chama de “equilibristas” à espera,
somente, de que os figos caiam de maduros; os outros dois que vivem apenas para
a chegada do inverno.
Nessa galeria, que é de desesperanças, se abre um
parêntese luminoso: Paula, a adolescente, que percebe mais do que deve na
cidade pequena onde os homens se dedicam a viver de suas rendas e
as mulheres a tomar o solzinho nas calçadas.
Para se libertar e poder olhar um mundo diferente
daquele limitado e medíocre em que vive, ela rompe o equilíbrio reinante, ela
altera a ordem que existe e que deve, para muitos, permanecer estática.
O pai, a cada nova travessura, joga nela o que tem à
mão. Dono de um restaurante na principal rua da cidade, lhe atira ou uma
cebola, ou uma beringela ou colherinhas. Quando a travessura passou dos
limites, uma moganga.Não existindo legumes maiores, agressões mais violentas não
poderiam, advir. Então, Paula solta os pássaros do Conservatório onde devia
estudar música, tira da fonte da praça todos os peixinhos que frita e come,
espalha, pela cidade, balões coloridos, inclusive na estátua do touro da qual o pudor municipal havia despojado de sua parte mais nobre.
Por fim, acabou desfilando nua - moderna Lady Godiva
com os cabelos ao vento - pelas ruas centrais da cidade, pedalando uma
bicicleta e acompanhada pelo amigo que a protegia do sol com uma sombrinha
aberta.
E é ele, o entregador de pão, que narra as peraltices
de Paula. Espectador e companheiro, lhe serve de ajudante e segue as emoções
que no seu rosto se deixam ver. Por seus olhos vemos a menina: cabelos soltos,
pele branca, sentimentos assomando nos olhos, no ricto do rosto, no gesto.
Paula, uma “discordância” na pequena cidade. Uma
“filha assim” a desesperar o pai, um italiano que atravessara os mares para
trabalhar. Uma pequena anarquista de ações gentilmente inofensivas como tomar de assalto o correio e organizar um
show na sala principal decorada com selos.
Ainda um menino, o narrador não compreende todo o
significado das ações que ela inventa. Tampouco o alcance de suas palavras.
Pobre, ele vive num bairro pobre de pátios áridos e crianças descalças. Paula, olhando para essa realidade,
que não é a sua, diz: Minha música é para
essa gente. E ele não pode entender -
até porque Paula só tinha tido uma única lição de música. E essa gente, a qual
Paula se refere, é diferente daquela com a qual ela convive e que mal aparece
mencionada no relato: jovens que jogam baralho nos bares, Federico que empresta
dinheiro a juros e que sai do Banco como
um astronauta sai de sua cápsula, intacto
e como recém nascido, as damas do Clube da Beneficiência.
Contra eles é que se insurge Paula. Contra eles, lança
as suas pequenas maldades, somente invólucros de uma revolta e ânsia de estar
longe.
Na verdade, nada de muito terrível, nada de
verdadeiramente maldoso na ingenuidade da narrativa: simples, linear ao contar
fatos; velada, por vezes, ao apontar sentimentos.
Uma narrativa que não esconde, porém, uma intenção que
pode parecer apenas levemente corrosiva mas que no conjunto dos contos de Mi música es para esa gente representa somente uma nuança. Um tom entre os mais
fortes, os mais cruéis que Daniel Moyano sabe criar a partir da realidade do
Continente.
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