domingo, 21 de março de 1993

As maluquices de Paula

          Mi música es para esa gente é o título de um pequeno livro de contos que apareceu, em 1970, pela Monte Ávila de Caracas. Seu autor, o argentino Daniel Moyano, dez anos antes já havia publicado Artista de variedades ao qual se seguiram La lombriz, Una luz muy lejana, El fuego interrumpido, El oscuro.

          Oito contos compõem Mi música es para esa gente e têm em comum o espaço (uma pequena cidade do interior), a intemporalidade (lembranças de um tempo como que suspenso, indeterminado) e personagens perdidos num mundo que parece não ser o deles, em busca de algo, um quase nada tão importante que lhes alimenta os dias: o cão seguindo o raio de sol que se desloca; os dois tipos que Daniel Moyano chama de “equilibristas” à espera, somente, de que os figos caiam de maduros; os outros dois que vivem apenas para a chegada do inverno.

          Nessa galeria, que é de desesperanças, se abre um parêntese luminoso: Paula, a adolescente, que percebe mais do que deve na cidade pequena onde os homens se dedicam a viver de suas rendas e as mulheres a tomar o solzinho nas calçadas.

          Para se libertar e poder olhar um mundo diferente daquele limitado e medíocre em que vive, ela rompe o equilíbrio reinante, ela altera a ordem que existe e que deve, para muitos, permanecer estática.

          O pai, a cada nova travessura, joga nela o que tem à mão. Dono de um restaurante na principal rua da cidade, lhe atira ou uma cebola, ou uma beringela ou colherinhas. Quando a travessura passou dos limites, uma moganga.Não existindo legumes maiores, agressões mais violentas não poderiam, advir. Então, Paula solta os pássaros do Conservatório onde devia estudar música, tira da fonte da praça todos os peixinhos que frita e come, espalha, pela cidade, balões coloridos, inclusive na estátua do touro da qual o pudor municipal havia despojado de sua parte mais nobre.

          Por fim, acabou desfilando nua - moderna Lady Godiva com os cabelos ao vento - pelas ruas centrais da cidade, pedalando uma bicicleta e acompanhada pelo amigo que a protegia do sol com uma sombrinha aberta.

          E é ele, o entregador de pão, que narra as peraltices de Paula. Espectador e companheiro, lhe serve de ajudante e segue as emoções que no seu rosto se deixam ver. Por seus olhos vemos a menina: cabelos soltos, pele branca, sentimentos assomando nos olhos, no ricto do rosto, no gesto.

          Paula, uma “discordância” na pequena cidade. Uma “filha assim” a desesperar o pai, um italiano que atravessara os mares para trabalhar. Uma pequena anarquista de ações gentilmente inofensivas como tomar de assalto o correio e organizar um show na sala principal decorada com selos.
          Ainda um menino, o narrador não compreende todo o significado das ações que ela inventa. Tampouco o alcance de suas palavras.
          Pobre, ele vive num bairro pobre de pátios áridos e crianças descalças. Paula, olhando para essa realidade, que não é a sua, diz: Minha música é para essa gente. E ele não pode entender - até porque Paula só tinha tido uma única lição de música. E essa gente, a qual Paula se refere, é diferente daquela com a qual ela convive e que mal aparece mencionada no relato: jovens que jogam baralho nos bares, Federico que empresta dinheiro a juros e que sai do Banco como um astronauta sai de sua cápsula, intacto e como recém nascido, as damas do Clube da Beneficiência.
         
          Contra eles é que se insurge Paula. Contra eles, lança as suas pequenas maldades, somente invólucros de uma revolta e ânsia de estar longe.
          Na verdade, nada de muito terrível, nada de verdadeiramente maldoso na ingenuidade da narrativa: simples, linear ao contar fatos; velada, por vezes, ao apontar sentimentos.
          Uma narrativa que não esconde, porém, uma intenção que pode parecer apenas levemente corrosiva mas que no conjunto dos contos de Mi música es para esa gente representa somente uma nuança. Um tom entre os mais fortes, os mais cruéis que Daniel Moyano sabe criar a partir da realidade do Continente.

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