domingo, 11 de abril de 1993

As memórias de Silvio Astier

           Tinha Roberto Arlt vinte e seis anos quando o seu primeiro romance El juguete rabioso foi publicado.

 
           Narrado numa primeira pessoa que rotula os seus escritos de memorias, nele são fixados, no entanto, apenas quatro episódios: a rápida aventura de uma gangue juvenil que no primeiro susto com a polícia, correndo em perseguição de um de seus membros, se dissolve; a experiência de um emprego, também de curta duração, numa sórdida loja de livros usados; o fracasso como candidato a aprendiz de mecânico na Escola Militar de Aviação; uma ação traidora aparentemente sem causa.

           Cada um dos quatro episódios constitui um capítulo do romance e a técnica narrativa com que é construído dá, a cada uma dessas partes, um sentido que não necessita das demais para se completar sem que isso impeça que formem um todo.
 
            Nos quatro capítulos, “Los ladrones”, “Los trabajos y los dias”, “El juguete rabioso” e “Judas Iscariote” domina Silvio Astier, o narrador. Revela, na sua narrativa, suas angústias de adolescente, por vezes a sua esperança nesse caminho de pobreza que precisa percorrer em busca de um lugar ao sol.
 
           Incipiente ladrão, explorado trabalhador, fracassado aspirante a mecânico, vendedor medíocre ele quebra essa prisão de um destino vulgar, por um maldoso ato de traição.

           Não será traindo, porém, que Silvio Astier irá, obter o que teria desejado - dinheiro, glória, amor - e a infelicidade daquele que traiu somente vai servir para obter uma promessa da pessoa beneficiada pela sua traição: eu o ajudarei e lhe conseguirei um emprego em Comodoro. O que poderia ser um final feliz para as suas atribuladas andanças: ir para o Sul, para onde haja gelos e nuvens ... e grandes montanhas. Mas, nos episódios anteriores, as promessas que recebera resultaram sempre vãs, cortando-lhe, sempre, a alegria sentida ao vislumbrar uma luz que mudasse a sombria vida de órfão obrigado a ajudar a mãe viúva e pobre. E, agora, esses trinta dinheiros podem significar apenas mais uma esperança perdida.
 
           Por vezes patético ou cínico, infantilmente ingênuo por vezes, é um personagem de intensa riqueza que se move num mundo lúgubre onde existem personagens grotescos mas profundamente humanos.
 
           Em breves momentos, ele vislumbra algo do que é possuido por aqueles que pertencem à outra classe: jardim florido, lustre de cristal, móveis, quadros. Acenos de uma outra vida que, entretanto, só existe para alguns e que jamais será atingida por essa maioria que vive a realidade vulgar de um imutável cotidiano. Neles é que se fixa Roberto Arlt.
 
           E, toda uma visão crítica da sociedade de Buenos Aires é feita em surpreendentes textos que rompem com a narrativa da época.
 
           Em 1926, ano de publicação de El juguete rabioso, também foram publicados Cuentos para una inglesa desesperada de Eduardo Mallea e Don Segundo Sombra de Ricardo Güiraldes que indagavam sobre essa mesma Argentina que está presente na obra de Roberto Arlt.
 
           Mas, se Eduardo Mallea e Ricardo Güiraldes buscavam explicações ou evocavam, o autor de El juguete rabioso constatava um mundo descoberto nos vários humildes ofícios que desempenhou. O que significa que esse seu mundo se inscreve em qualquer espaço do Continente.

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